Na próxima quarta-feira (13) um projeto de lei que legaliza o aborto será votado pelo Congresso Nacional da Argentina. Hoje, o procedimento é permitido no país apenas em caso de risco de morte da mãe e de estupro. A primeira votação ocorre na Câmara: serão necessários 129 votos a favor, entre os 257 deputados. Se aprovado, o projeto segue ao Senado. Mesmo contrário à mudança na legislação, em fevereiro deste ano, o presidente Mauricio Macri pediu que o Congresso avaliasse o projeto, proposto pela campanha “Aborto legal, seguro e gratuito” que recebeu a assinatura de várias deputadas.
As mobilizações pela legalização tiveram seu auge no último 4 de junho, quando Buenos Aires foi tomada por uma maré verde, formada por cerca de 300 mil manifestantes com o lenço verde que simboliza a luta nacional pelo direito ao aborto. O ato comemorou os três anos da primeira marcha Ni Una Menos, que impulsionou o começo da quarta onda do feminismo massivo e popular, como assinalou Cecília Palmeiro, integrante do Coletivo. A ativista nos enviou um artigo em que trata da celebração do aniversário e da mobilização contra a violência econômica às mulheres e pelo aborto legal, seguro e gratuito.
#VamosYa #YoVotoAbortoLegal #HaganHistoria #SinAbortoLegalNoHayNiUnaMenos #QueSeaLey são algumas das palavras de ordem usadas na rede para reivindicar a aprovação do projeto de lei. No próximo dia 13, a maré verde volta às ruas para pedir “aborto legal já!”.
Confira o texto de Cecília Palmeiro:
Ni Una Menos no terceiro aniversário da maré feminista
“Organizar marchas de centenas de milhares de pessoas não é uma tarefa fácil, contrariando a opinião daqueles que supõem que as marchas feministas são espontâneas e apolíticas. Como um movimento político como o feminismo, que procura mudar tudo poderia ser apolítico? (Mistérios da teoria do senso comum abonado pela mesquinhez da mídia hegemônica). Esta encarnação da marcha Ni Una Menos se mostrou com tanta força quanto as anteriores e com duas consignas evidentes de conjuntura: aborto legal já e desendividadas nos queremos. Nesta articulação é possível perceber como a marcha NiUnaMenos, as construções de mulheres das greves e reuniões feministas são o lugar onde é formulada a borda da luta política é formulada em seu sentido mais amplo e profundo: a transformação de vida, e não apenas a burocracia estatal. Do ponto de vista da vida, enfrentamos a dívida e o aborto como a dívida da democracia.
O poder de nossa engrenagem está ligado ao fato de que estamos cientes de que #NosMueveElDeseo, e desejamos uma força política esmagadora, uma ética de vida que tem como utopia o bem viver e o bom governo. Nosso objetivo não é apenas a igualdade, mas a felicidade de todos os seres, incluindo a Mãe Terra: defendemos nossos corpos-territórios.
Nossa luta pelo aborto é fundamental para nossa autonomia e nossa saúde, mas também tem a ver com o fato de pensarmos nossos corpos como territórios de prazer e não como fábricas ou prisões, nesse sentido lançamos a campanha #Orgasmatón para erotizar a política e politizar o prazer. Porque nós não somos mais apenas vítimas, mas sujeitas de desejos e direitos.
No ano passado, o coletivo Ni Una Menos trabalhou duro na relação entre nossas vidas (nós nos amamos) e a dívida estatal como uma forma específica de violência financeira contra nós. De lá vieram ações diretas como “As insubmissas das finanças”, uma performance do ano passado contra o banco central, e seu remake na ArteBA este ano, vinculado à violência financeira, o mercado de arte e sua relação com o governo.
A consigna desendividadas, no contexto do iminente e já assinado acordo com o FMI, teve muito eco entre as bandeiras das diferentes colunas que marcharam neste 4 de junho, justamente para complexizar o exercício e o enredo da violência.
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Uma marcha como a de Ni Una Menos não é apenas sobre o evento em si, mas sobre o processo, sobre o que acontece antes, durante e depois: o tecido militante, a experiência e o saldo organizativo. No caso da quarta edição da marcha “Una Una Menos”, desta vez no dia 4 de junho e não no dia 3 (data perdida na segunda-feira para interromper o desenvolvimento normal do dia mais pesado da semana), sua estrutura é muito ligada à construção coletiva da 8M Greve Internacional Feminista e seu processo de assembleias, bem como as lutas pela legalização do aborto. Pode-se dizer que aquelas que agitamos fortemente a maré feminista, como chamamos o sujeito coletivo, histórico e político que as mulheres do mundo estamos compondo manifestações as oceânicas que ocorrem no mundo desde 2015, viemos em trabalho contínuo desde janeiro.
As assembleias feministas convocadas pelo coletivo Ni Una Menos ressoam todas as lutas e todos os conflitos das mulheres: desde as lutas territoriais passando pelo aborto à violência econômica e financeira, demissões e perseguição política às trabalhadoras. Nossas frentes envolvem-se no tecido social de um movimento novo e poderoso que transborda as organizações de dentro e de baixo e que é construído horizontal e transversalmente. E esta organização se traduz em um modo particular de ocupar o espaço público. O que inclui cortar o trânsito nós mesmas, uma vez que a prefeitura não cooperou com a administração do trânsito como havia se comprometido a fazer. Pelo menos, depois de conversas mediadas pela Ouvidoria, desta vez eles não foram nos caçar em incursões ilegais, como fizeram no 8 de março de 2017, a primeira greve internacional feminista. Graças aos nossos esforços, o protesto, em sua tensão entre o luto por aquelas que não estão lá e a celebração de nossos corpos vivos, terminou em paz.
E foi uma festa de corpo inteiro com muita dança, música, canto e riso, a partir da qual aproveitamos a força para imaginar e praticar a vida que queremos viver (e para mudar o mundo em que não queremos viver). Para o 3 aniversário da maré, algumas companheiras de Ni Una Menos nos enviaram um conceito esclarecedor: Aliança Mundial Ni Una Menos. E nós entendemos algo importante sobre nossa revolução sensível: é algo que acontece conosco no corpo e no mundo.
É importante tornar-se visível, para o mundo e para nós mesmas, nas ruas como o lugar onde medimos o poder de nossos desejos e nossa capacidade de mudar tudo. Como a nossa canção diz que desde o Encontro Nacional de Mulheres ressoar ao longo da coluna: “Agora que estamos juntos, agora eles nos vêem, para baixo o patriarcado (e o governo) vai cair, vai cair”. Em centenas de milhares, cantamos todas um canto comum, porque na maré não há propriedade privada.
Soltar as amarras da produção do pensamento individual é a primeira lei da maré: a nossa inteligência coletiva é muito mais poderosa e atrevida ao nutrir-se de tudo, é a fonte de uma nova forma de fazer política (embora os remanescentes da velha política ainda impeçam o fluxo do que desejamos). Nada é alheio à revolução feminista, e isso se mostra na forma de manifestação dos corpos na rua, como nos vestimos, como nos alimentamos, com quem dormimos, como nós nos apaixonamos, como trabalhamos, como nos cuidamos, como celebramos e como protestamos: dançando e cantando, com músicas e baterias de tambores feministas.
Uma maré tingida de verde organizada em mais de 30 colunas desfilando da Praça de Maio transbordou o Congresso exigindo a liberdade de decidir sobre nossos corpos e a liberdade de não ter dívidas. Porque, para estarmos vivas, precisamos ser livres e sem dívidas e, para isso, exigimos o fim do patriarcado, o que implica o fim do capitalismo. E assim a maré nos coloca à frente da história e nos torna uma vanguarda global anticapitalista.
É assim que estamos nos construindo como sujeito político que é abrigo e sororidade, na qual não estamos mais sozinhas e em que nossas lutas estão ligadas e se multiplicam. Um espaço de interseccionalidade e diversidade, como visto nas oradoras que falaram no palco: o documento comum escrito coletivamente em assembleia foi lido por uma trabalhadora do metrô em conflito, um ativista trans, uma migrante e uma afrodescendente. O feminismo em sua complexidade é uma perspectiva do mundo que você não pode mais voltar. É uma viagem só de ida para a beleza e felicidade.
Frente ao mandato de maternidade ou prisão e o confinamento obrigatório aos termos da dívida, pessoal e estadual, dizemos: nos move o desejo de outro mundo possível. Nem uma a menos, vivas, livres e sem dívida nos queremos. Sem o aborto legal, não há Nem Uma a Menos.”