Assassinato do congolês Moïse Kabagambe se soma ao genocídio negro que ocorre no Brasil

A família de Moïse Kabagambe migrou em 2014 do Congo para o Brasil para fugir da guerra e da fome. Oito anos depois, Moïze, agora com 24 anos, estudava Arquitetura. Em 24 de janeiro deste ano, ele foi espancado até a morte depois de cobrar o pagamento por dois dias de trabalho, R$200, em um quiosque perto do Posto 8 na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. 

Para Monica Cunha, ativista ligada à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), o assassinato do congolês evidenciou a violência sofrida pela população negra no Brasil e, em especial, no estado do Rio de Janeiro.

“Nesse exato momento, o Rio é o estado mais violento para pessoas pretas viverem, seja elas nascidas no Brasil, nesse estado e nessa cidade, ou não, que tenham vindo de fora para continuarem vivos, para continuarem a sonharem e terem expectativa e acabam encontrando da pior forma, o que nunca imaginaram encontrar”, ressalta a ativista.

Moïse foi agredido durante 15 minutos por cinco homens que, segundo testemunhas, usaram pedaços de madeira e um taco de beisebol. Câmeras de segurança do quiosque registraram o crime. “Amarram ele junto com as pernas e mãos. A polícia veio depois de 20 ou 40 minutos”, disse Djodjo Baraka Kabagambe, irmão de Moïse. 

A causa da morte do congolês, segundo o laudo do Instituto Médico-Legal (IML), foi traumatismo do tórax, com contusão pulmonar, causada por ação contundente, ou seja, uma lesão provocada pela pressão de batidas e choques em partes do corpo humano. Segundo relatado por Yannick Kamanda, primo de Moïse, ao portal G1, que teve acesso às gravações da câmera de segurança que registrou as agressões, o dia de trabalho no quiosque prosseguiu normalmente, mesmo com a morte do congolês.

Os parentes de Moïse só souberam da morte na manhã seguinte (25) quase 12 horas depois do crime. No IML, os órgãos de Moïse foram retirados, sem autorização da família. “Quando a notícia chegou até nós, fomos ao IML na terça de manhã e a gente já encontrou ele sem órgão nenhum, sem autorização da mãe, nem autorização dele de ser doador de órgão. Onde estão os órgãos? Nós não sabemos. Em menos de 12h ele foi dado como indigente. Infelizmente, a gente vive aqui, mas estamos na insegurança”, relatou a prima de Moïse, Faida Safi, ao portal G1.

O caso ganhou repercussão no último sábado (29), após protestos da família e amigos que pediam informações e denunciavam o crime cometido.

“Meu filho cresceu aqui, estudou aqui. Todos os amigos dele são brasileiros. Mas hoje é uma vergonha. Morreu no Brasil. Quero justiça”, afirmou Ivana Lay, mãe de Moïse.

Após a repercussão, agentes da Delegacia de Homicídios do Rio ouviram o dono do quiosque Tropicália, em 1º de fevereiro. A defesa do proprietário afirma que ele não conhece os cinco homens que espancaram e mataram Moïse. Além disso, ele nega que o quiosque possuía dívidas trabalhistas com o congolês. No mesmo dia, a Delegacia prendeu três homens suspeitos do crime, um deles funcionário do quiosque Biruta, onde Moïse trabalhava atualmente e cujo dono é o Policial Militar Alauir Mattos de Faria. As investigações do crime seguem em sigilo.

Repercussão

A Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária (CDHAJ) da Ordem dos Advogados do Brasil (OABRJ) presta assistência jurídica à família de Moïses. A presidente da Seccional, Luciano Bandeira afirma, em nota publicada pela OAB, que a Ordem cobrará a apuração do crime. “É um compromisso da nossa gestão atuar, dentro das possibilidades institucionais da OABRJ, contra o racismo que assola a nossa sociedade”, assinala.

Em entrevista à CNN, a embaixada da República Democrática do Congo afirmou que Moïse é a quinta vítima congolesa assassinada no Brasil desde 2019, três delas no Rio de Janeiro, uma em São Paulo e uma em Brasília.

As equipes do PARES Cáritas Rio de Janeiro, da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e da Agência da ONU para Migrações (OIM) divulgaram uma nota conjunta em que lamentam a morte de Moïse, prestam condolências à família e afirmam que irão acompanhar as investigações do caso.

Nas redes sociais, a hashtag #justicaparaMoise foi compartilhada por diversas personalidades. A cantora Ludmilla destacou que o assassinato de Moïse é mais um exemplo das violências sofridas pela população negra.

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Imagem: Reprodução.

A imigrante Salamu ressaltou que apesar do Brasil ser conhecido internacionalmente como um país acolhedor, não é o cenário encontrado por parte dos estrangeiros que chegam até o Brasil.

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Imagem: Reprodução.

O Deputado Federal pelo Rio de Janeiro, David Miranda, também manifestou revolta frente ao caso.

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Imagem: Reprodução.

Uma manifestação pedindo justiça por Moïse está organizada para o próximo sábado (5), a partir das 10h, em frente ao quiosque em que o assassinato ocorreu, na Barra da Tijuca.

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Imagem: Reprodução.

Não é um caso isolado

“O Estado não matou Moïse, mas tem responsabilidade nisso. Porque quando pessoas cometem esse tipo de assassinato, elas têm a certeza da impunidade”, destaca a ativista Monica Cunha, que é fundadora do Movimento Moleque. Em 2020, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, 76% das pessoas mortas intencionalmente foram negras, uma porcentagem 20 vezes maior do que os 56% que representam a população negra no Brasil.

A ativista cita como exemplo o caso de João Alberto Silveira Freitas, espancado e morto por dois seguranças brancos de uma unidade do mercado Carrefour em Porto Alegre (RS), em novembro de 2021. Outra jovem negra assassinada no ano passado foi Kathlen Romeu, morta aos 24 anos e grávida de quatro meses, atingida por um tiro  de fuzil disparado por policiais militares no Rio de Janeiro. “Eu percebo que as pessoas estão chocadas como se fosse um caso novo, mas não é”, fala a ativista.

Um estudo da Casa Fluminense aponta que na região metropolitana do Rio de Janeiro, a diferença da expectativa de vida de uma pessoa branca para uma negra pode chegar a 23 anos. Monica ressalta que a morte do jovem negro foi naturalizada no país.

“Enquanto esse país e principalmente o estado do Rio de Janeiro, não entender que a gente tem que se levantar por qualquer um que seja assassinado, por qualquer jovem negro que seja assassinado, por qualquer mãe negra, por qualquer criança negra, essas coisas não vão deixar de acontecer”, declara. 

A ativista também relaciona a normalização da morte do jovem negro com os representantes políticos e falta de punidade para os assassinatos. “A população botou no poder uma criatura que tem horror à população negra, que a todo momento ele fala ‘mata’, ‘encarcera’, ‘deixa morrer de fome’, ‘deixa morrer de covid’, tá aí, é por isso que o proprietário de um ‘trailer’, nem ficou com medo de perder a sua concessão”. 

O assassinato de Moïse, ao cobrar uma dívida de trabalho, é explicado pela herança escravocrata presente no Brasil, como exemplificado por Monica: “Que ousadia é essa que você trabalhou e você tem que vim cobrar? A gente tem que te pagar se quiser, porque vocês não recebiam, porque vocês não são seres humanos que têm direito ao trabalho e ao recebimento pelo trabalho. Ou seja, você tem direito ao trabalho, mas é um trabalho escravizado, é um trabalho que sempre foi feito pelos corpos como o de vocês e que não têm direito a reclamar, a cobrar”. Em 2006, Monica perdeu um filho para o racismo, assassinado aos 20 anos pela Polícia civil.

“O que me diferencia da Dona Ivana, que é a mãe do Moïse, é só a nacionalidade. Somos duas mulheres negras que sofremos racismo e conhecemos o racismo da pior forma que poderia ser. Tivemos os nossos filhos arrancados das nossas vidas dessa forma brutal que o racismo faz”, relata.

Foi após o assassinato do filho que Mônica se tornou ativista. “Nós mães negras fazemos do nosso luto a luta que agora a Dona Ivana está fazendo, porque não temos outra. Nós precisamos demonstrar na luta que a gente não quer que mais nenhuma mãe sofra com essa dor que dilacera e que rasga da mesma forma que o filho dela foi dilacerado e rasgado a paulada”.

Comboio de defesa dos Direitos Humanos

Monica Cunha integra um comboio de ações de Direitos Humanos no Rio de Janeiro, formado pela Defensoria Pública do estado, Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. “Nós sentamos, nos organizamos e temos ido a toda e qualquer favela no estado, verificar qualquer núcleo de violação”, explica a ativista sobre a atuação do Comboio. Em algumas poucas ações, o Ministério Público (MP) atuou em conjunto.

Uma das atuações do comboio ocorreu durante a  Chacina do Jacarezinho, em maio de 2021, considerada o maior massacre promovido pela polícia do Rio de Janeiro, quando vinte e nove pessoas foram mortas.

Naquele momento e posteriormente, o comboio atuou em favor das vítimas. “Conseguimos entrar na hora do tiroteio, e não só tirar os policiais de lá, mas dar início a um processo que nunca foi pensado e acreditado que uma coisa dessa poderia acontecer, que quase todas as pessoas que foram assassinadas, jovens negros, com algum tipo de envolvimento ou não, tendo direito a justiça de não morrer dessa forma”, aponta Monica.

Porém, a ativista destaca que da mesma forma que a morte de Moïse foi um crime, a comunidade do Jacaré sofre com a ocupação integrada na comunidade, comandada pelo governo do estado. “A integração da ocupação é unicamente com o próprio governador e sua campanha política. Não foi integrada com a prefeitura do Rio de Janeiro, nem com os moradores do local”, ressalta. Além disso, os moradores enfrentam abusos diariamente.  “Todos os dias têm absurdo, todos os dias eles entram dentro da casa das pessoas dentro do Jacarezinho, invadem, furtam, roubam… Tem um menino que levou facada, outro que foi quase abusado”, conta.

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