Escrevo aqui algumas palavras que me chegam sem preocupações com aspectos historiográficos ou com uma narrativa linear detalhada. Tomei coragem de fazer isso após refletir ao longo de alguns anos de estudos feministas e sei que muitas outras autoras já o fizeram com primor antes de mim. Nas palavras que se seguem fiz uso de uma prática muito incentivada por estas mesmas autoras e tentei me libertar da culpa e do julgamento, apenas deixei a minha voz sair, deixei fluir meus pensamentos sem procurar desculpas e fugas para não o fazer acreditando que tudo já foi dito sobre isso e aquilo. Quero aqui fazer apenas um sobrevoo evolucionário pelos tempos.

Então começo dizendo que o tempo evolui e junto com ele vai levando a humanidade. O tempo passa e junto com ele os pensamentos, ações e modos de ver o mundo vão sendo criados. Na segunda década do século XXI o mundo está vivendo um momento de trevas, uma grande onda de obscurecimento toma conta de muitos lugares onde existem pessoas com medo, apegadas a um antigo modo de viver e pensar suas vidas e suas existências. Para muitas pessoas só há espaço para o medo e onde há medo há muito espaço para a violência, para a doença, para a desconfiança generalizada, para a busca excessiva de uma sensação de segurança que não existe.  

Recursos escassos em todos os sentidos possíveis fazem com que as lideranças mundiais também tenham medo de perder poder e influência, sucumbindo assim a essa sede incontrolável de poder que faz com que se siga a mesma cartilha em vários países do mundo que pregam o nacionalismo exacerbado, único recurso dos medíocres, pregam o ódio aos imigrantes e tudo aquilo que é diferente, criminalizam corpos, cerceiam liberdades e direitos já conquistados e impedem que outros direitos justos ainda por conquistar se tornem realidade. 

Nesses tempos de trevas o que ocorre é a disputa de uma cosmovisão que vai definir de fato os rumos que a humanidade irá tomar dali em diante. Uma enorme força está puxando a humanidade para trás, desejando um retrocesso ainda maior e anterior ao tempo que se vive hoje.

Já uma outra força, desconhecida por muitos, que exige dedicação e compaixão para ser compreendida, está tentando puxar o mundo para mais adiante, rumo a um futuro mais inclusivo, mais respeitoso com as vidas existentes na natureza, entendendo que os seres humanos são parte dela, propondo uma visão mais consciente, global, sem fronteiras para lidar com o clima planetário e com os desafios deste tempo, com ampla garantia às liberdades e direitos humanos e com propostas para a distribuição mais justa dos recursos, das fontes de vida, da bioeconomia e do desenvolvimento humano rumo ao conhecimento e à consciência. 

Trevas significam, nesse tempo atual, a falta de conhecimento em um mundo cercado de informações inúteis. Trevas significam a negligência para com os saberes, a ignorância como escolha e a preguiça como prática. Trevas significam estacionar a si e aos outros naquilo que já passou, naquilo que já vencemos, em um tempo que nossa consciência coletiva já não quer mais.

Mas esse não querer não é consenso, pois paira no ar a crença de que o antigo modelo era melhor e alguns se apegam nisso com unhas e dentes. Para eles havia benefícios que lhes foram tirados, mesmo que isso significasse a opressão de tantos outros, portanto, eles o querem de volta e não saberão viver sem tais benefícios. Para alguns é inaceitável que as mudanças da humanidade ao longo dos tempos os tenham retirado privilégios perante outros seres não só humanos. É simplesmente inaceitável. 

Estamos falando aqui do patriarcado como cultura secular, estamos falando de um modelo que se impôs ao longo de muitos e muitos anos. Por tempo demais, a ponto de nos fazer esquecer tudo que já existiu antes e antes e antes. Nesse contexto, as ideias e as práticas sociais que privilegiaram os homens foram sendo distribuídas e aceitas, foram sendo sedimentadas e normalizadas. E nitidamente isso não teria sido possível sem a conivência e a aceitação de algumas mulheres.

O grande pacto das mulheres com o patriarcado se origina no medo e principalmente na escassez provocada por guerras e pestes. Bem no seu primórdio, se origina também naquela enganosa ideia de seguridade que elas teriam ao se render ao “novo” modelo cultural de sociedade. Algumas mulheres aceitaram esse grande acordo acreditando que assim seriam “salvas”. Existiram muitas de nós que se deixaram comprar com essa ideia e aceitaram a condição submissa que lhes era reservada como única saída possível para a sua própria sobrevivência. Foram compradas em corpo, em mente e em alma. 

E muitas mulheres sucumbiram nesse processo

Muitas se deram conta que não suportariam o preço a ser pago e pouco a pouco foram definhando por completo ao perceber que foram, na verdade, traídas. Outras resistiram um pouco mais, reproduzindo, portanto, o modelo imposto por gerações e gerações.

A traição ali foi inaugurada pelos homens mais próximos das mulheres, ou seja, pais, irmãos, maridos, parentes e isso marcou profundamente a alma feminina ao longo de eras, séculos e séculos.

A primeira mulher traída nesse caminho deixou uma marca, uma ferida presente das mais diferentes formas. São feridas modernas e feridas ancestrais que carregamos ainda hoje conosco. As mulheres foram cerceadas em suas roupas e vestimentas que as impediam de correr livremente, tiveram os seus movimentos contidos, seus corpos colocados a serviço do prazer masculino e do serviço doméstico. Serviço este que muitas vezes envolveu relações sexuais não consentidas.

Houve uma época em que as mulheres deveriam parir filhos homens, pois colocar mais meninas no mundo não era bem aceito, não era desejado. Só os filhos homens são valorizados em muitas culturas até hoje. Uma menina na família pode ser considerada uma fraquejada. As mulheres se tornaram, então, propriedade masculina, assim como uma casa, uma terra, uma fazenda e a prole de filhos. Como garantir que os filhos eram mesmo daquele homem patriarca? Colocando toda sorte de cabresto nas mulheres, privando-as de seu livre trânsito pela existência feminina. O útero passa também a ser uma propriedade masculina.

As famílias mudaram, as roupas mudaram, os cabelos, as maquiagens da moda, mas uma coisa nunca mudou: o modelo patriarcal. Não se engane com a modernidade que vemos passar diante de nossos olhos, de baixo para cima em um eterno feed de coisas banais.

Mesmo as mulheres conquistando tantos direitos como os de votar, trabalhar fora de casa porque dentro elas sempre o fizeram, ter seu dinheiro, ter a guarda dos filhos, comprar imóveis, viajar sozinhas, falar em público, escolher o próprio marido para aquelas que optaram pelo casamento e escolher se querem ou não ter filho. Mesmo com tudo isso as nossas feridas seguem abertas. Podemos nos enganar, fingir que não é com a gente. Podemos escolher não saber de nada disso para assim continuar fazendo parte do grande acordo que nos dá conforto e segurança até a página dois. Porém, é tudo em vão. O patriarcado nunca foi e jamais será bom para as mulheres. Nenhuma delas. Mesmo aquelas que fazem parte de sua sustentação social no ambiente público e no privado.

Quantas vezes, ainda menina, uma mulher vinha correndo alegre e sorridente, quando outra mulher mais velha da sua família abruptamente a parou e censurou perante sua atitude ingênua de ser livre? Comigo também aconteceu isso. Lembro-me perfeitamente do adjetivo de “assanhada” que me deram quando era criança por estar em um momento de extrema euforia. Eu deveria ter apenas uns 6 ou 7 anos e quando ouvi essa palavra achei que naquele momento eu deveria estar descabelada ou algo assim, achei que minha aparência não estava agradando e, portanto, achei que eu estava “errada” de alguma maneira. Aquela palavra proferida na frase de uma tia – “deixe de ser assanhada, menina” –, entrou em mim como um bloqueio instantâneo da minha espontaneidade feminina infantil. 

Também eram recorrentes os tapas e beliscões para que eu me sentasse de pernas fechadas. Movimentos contidos e dóceis – era isso que se esperava de mim ainda menina, com toda a minha força selvagem brotando como uma semente de Baobá dentro de meu coração. Inevitáveis são as lágrimas quando me recordo do tapa que levei na boca no dia que eu proferi a frase “eu quero ser livre”. Mas o que é isso? Uma mulher direita, honesta, não pode querer ser livre. Onde já se viu isso? Liberdade não foi feita para mulheres respeitáveis. Uma violência física como essa e tantas outras deixaram marcas que estão presentes em cada uma de nós. Lá no fundo todas nós temos inúmeros desses exemplos em nossas famílias, ambiente onde supostamente se reúnem as pessoas “de bem”, “respeitáveis” e doentes. 

Desde muito, muito jovem me causava raiva e revolta o fato de que o mundo estava aos pés dos homens em todos os sentidos. A liberdade era (e ainda é em certa medida) reservada a eles e apenas a eles.

Nunca vi na minha vida de criança os meninos serem retirados das suas brincadeiras para aprender a fazer arroz, varrer uma casa, lavar um banheiro. Também nunca vi a sexualidade feminina ser instigada, fomentada, colocada em um patamar de algo normal a ser aceito pela sociedade. Ao contrário, meninas e jovens mulheres deveriam ser puras, recatadas, desconhecer completamente o funcionamento de seus corpos e esconder e reprimir os seus desejos físicos de libido. 

Ao passo que os meninos e jovens rapazes tinham total aval para exercer a sua sexualidade, seja pela masturbação ou sendo levados desde muito jovens aos bordéis das cidades. Gostando disso ou não, aos homens era ofertado os corpos de mulheres “livres”, “da vida”, para que eles se lambuzassem. Eles podiam sair, ficar até tarde, beber, fumar, se divertir à vontade e sem nenhuma censura.

Há lugares no mundo, como o Irã, por exemplo, onde a virgindade feminina antes do casamento é considerada importante para muitas meninas e suas famílias — um valor profundamente enraizado no conservadorismo cultural. Às vezes, homens exigem um certificado de virgindade — uma prática que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera contra os direitos humanos. “Se uma garota perde a virgindade antes do casamento, ela não pode ser confiável. Ela pode deixar o marido por outro homem”, diz Ali, um eletricista de 34 anos de Shiraz.

Esqueceram de dizer ao Ali que uma garota pode deixar o marido por outro homem ou pelo motivo que ela quiser a qualquer momento. “As normas sociais aceitam que os homens têm mais liberdade do que as mulheres”, continua Ali, o homem que já fez sexo com 10 mulheres e exigiu virgindade da sua noiva.  Esse é o ponto.

Logo que me dei conta disso, uma raiva muito grande tomou conta de mim. Houve um tempo em que eu não queria ser uma menina. Odiava o fato de ser mulher no contexto social que vivi e por tabela eu tinha ódio de outras mulheres que permitiam que isso acontecesse, que aceitavam essa condição caladas sem nada fazer. Tinha raiva de qualquer mulher que deveria ser para mim um modelo, uma mentora na vida. Isso me deixou com marcas ainda maiores no peito. Só muito mais tarde eu pude olhar para isso, ressignificar e tentar nutrir compaixão por essas mulheres que de modo inconsciente me traíram pactuando com esse grande acordo patriarcal de nossos tempos. Esse não foi um processo sem dores para mim. E ainda não é.

Isso não significa que eu esteja salva das minhas cicatrizes e das marcas dessa traição, mas elas também foram traídas pelas que vieram antes e pelas outras que vieram antes e antes. “Você quer estudar? Você quer escolher seu marido? Você quer escolher a sua roupa? Você quer sair sozinha? Como ousa? Quem você pensa que é? Melhor do que eu? Que audácia achar que você pode fazer diferente de mim, eu que sofri e amarguei tanto para chegar até aqui, eu que fui humilhada para fazer o meu dever de mulher nesse mundo, como você é capaz de achar que pode ser diferente disso?”, disseram todas elas em outros tempos e ainda hoje bradam no interior de seus corações. 

Demorei muito tempo para me reconciliar com as mulheres da minha família e comigo mesma, demorei muito tempo para aceitar a minha mãe com as limitações humanas e suas escolhas. E me afastei de tudo que me fazia mal no seio familiar assim que pude, carregando a culpa pelas acusações de negligência, sendo acusada de fugitiva e tendo que lidar com todo julgamento cruel que uma família é capaz de proferir contra as mulheres.

Demorei um tempo até entender que está em minhas mãos a cura do meu corpo e da minha alma machucada, ferida, traída. E não só a cura das minhas dores de agora, desse tempo atual em que vivemos, como também aquelas muito mais antigas do que esse corpo que eu habito hoje. Me curar das escolhas erradas que fiz baseadas na raiva profunda e coletiva que me fez despertar, me curar da autossabotagem, de todo silenciamento que eu mesma me impus ao longo de tanto tempo. 

O feminismo existe primordialmente para salvar outras mulheres dessa prisão que elas se encontram, seja de uma forma consciente ou não. O feminismo existe e foi criado por outras mulheres que vieram antes de nós e que se levantaram para ousar criar um mundo diferente daquele que se conhecia até então.

O feminismo é perseguido e combatido simplesmente porque promove uma revolução interna em toda e qualquer mulher que ousa deixar de lado o acordo enganoso que ela e gerações inteiras de mulheres antes dela fizeram com o patriarcado.

O feminismo gera medo nas mentes mais endurecidas, embrutecidas e preguiçosas. O feminismo convida a sair de toda zona de conforto e olhar para o lado, para o mar de sangue de nossas irmãs e companheiras de caminhada. 

O preço que pagamos é alto por nossas escolhas, mas sem elas só nos resta a morte. Temos, portanto, uma responsabilidade com as revoluções, temos um enorme compromisso para com as próximas gerações de meninas e mulheres assim como aquelas que vieram antes tiveram para que nós pudéssemos estar aqui hoje. Temos uma longa caminhada diante de nós e precisamos contar umas com as outras sem vendar nossos olhos e nos enganar que está tudo bem. Não. Não está tudo bem. Tenha coragem de dizer alto que enquanto a sociedade patriarcal existir, nada vai estar tudo bem. 

No Irã de 2022 – Mahsa Amini, uma menina de 22 anos é morta apenas por usar de forma incorreta um lenço. Ela foi detida em Teerã pela “polícia da moralidade iraniana” pelo uso incorreto do hijab, vestimenta religiosa. O regime de Ali Khamenei impôs às mulheres uma restrição das suas vidas públicas e uso obrigatório do hijab. Cerca de 60 pessoas já foram mortas pela polícia após protestos desencadeados no país a partir desse fato. 

Esse texto é sobre o compromisso que devemos ter com as mudanças sutis e revolucionárias. É sobre a força para viver e a fraqueza de definhar aos poucos, ambas dormem dentro de nós à espera da escolha sobre qual delas despertar. 

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  • Aline Cristina Souza

    Natural do Norte de Minas Gerais, é jornalista e Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF)...

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