O óbvio foi reafirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ): é ilegal a violação de sigilo médico. A obrigação de não dispor sobre as informações do paciente, que recai sobre os profissionais de saúde, está prevista nos códigos profissionais e decorre da proteção constitucional à intimidade e à privacidade.
Apesar de ser uma obviedade, essa obrigação é constantemente violada quando se trata de direitos sexuais e reprodutivos. São inúmeros os casos nos quais uma mulher, procurando atendimento de saúde, tem sua intimidade violada por profissionais de saúde que ignoram o dever de sigilo médico.
Se há suspeita de aborto, enfermeiros, técnicos de enfermagem e médicos repassam informações de pacientes para autoridades do sistema de justiça que, por sua vez, dão andamento a investigações e ações penais mesmo diante de evidente ilegalidade das informações. A atuação dos profissionais de saúde não é menos reprovável do que a dos operadores do sistema de justiça, promotores, delegados, policiais e juízes que constroem a perseguição a mulheres a partir de provas evidentemente ilegais.
O caso decidido pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça retrata exatamente essa situação: uma mulher procurou atendimento médico e foi denunciada por aborto diante de suspeita de profissionais de saúde. E, apesar de ser conduta ilegal, autoridades policiais, membros do Ministério Público, juízes e desembargadores levaram o caso adiante.
Segundo informações divulgadas pelo tribunal, “de acordo com o processo, a paciente teria aproximadamente 16 semanas de gravidez quando passou mal e procurou o hospital. Durante o atendimento, o médico suspeitou que o quadro fosse provocado pela ingestão de remédio abortivo e, por isso, decidiu acionar a Polícia Militar.
Após a instauração do inquérito, o médico ainda teria encaminhado à autoridade policial o prontuário da paciente para comprovação de suas afirmações, além de ter sido arrolado como testemunha. Com base nessas informações, o Ministério Público propôs a ação penal e, após a primeira fase do procedimento do tribunal do júri, a mulher foi pronunciada pelo crime do artigo 124 do CP”.
A decisão do STJ, além de reafirmar o óbvio direito constitucional de mulheres à privacidade e à intimidade – e do correspondente dever de sigilo imposto aos profissionais de saúde sobre suas informações médicas – tem outros dois pontos muito relevantes.
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O primeiro deles é o reconhecimento contundente da ilegalidade da prova obtida a partir da violação do sigilo médico. Neste ponto, a decisão é um recado sobretudo aos operadores do sistema de justiça: o processo baseado em provas ilegais será invalidado.
É especialmente chocante que membros do Ministério Público, instituição incumbida constitucionalmente da proteção da ordem jurídica, ignorem as violações ao sigilo médico e transformem seus cargos em instrumento de perseguição ilegal a mulheres.
O segundo deles é o recado dado a médicos – e por extensão a todos os profissionais de saúde – que violarem o dever de sigilo. A decisão do STJ determinou ao Ministério Público e ao Conselho Regional de Medicina que investiguem a conduta do médico e que o responsabilizem pela violação dos direitos da paciente. Se a lei não tem sido razão suficiente para que profissionais de saúde preservem o sigilo médico, que uma possível punição ética e criminal o sejam.
Neste ponto, há um potencial pedagógico na decisão que deveria repercutir em todos os conselhos profissionais de saúde, como uma orientação clara: violar sigilo médico de mulheres que buscam atendimento de saúde por suspeita de aborto é ilegal e pode gerar a devida responsabilização daquele que o viola.
Há, entretanto, um debate menos óbvio e mais urgente que ressoa no Judiciário sobre a inconstitucionalidade do crime de aborto. A Primeira Turma do STF já julgou um caso concreto determinando que a interrupção voluntária da gestação até a 12ª semana não é crime por se tratar de um direito. O STJ, entretanto, absteve-se de analisar a questão por ainda estar pendente de julgamento, no STF, uma ação ampla sobre a incompatibilidade do crime de aborto com a Constituição de 1988.
Além da perseguição ilegal a mulheres no momento do atendimento de urgência em saúde, há outros enormes desafios no campo dos direitos reprodutivos das mulheres: os remédios para interrupção da gestação possuem tratamento normativo equivalente ao dado ao crack, os protocolos de atendimento para aborto legal estão desatualizados, os locais de atendimento são insuficientes e médicos se recusam a atender demandas, as organizações que disponibilizam informações sobre métodos de interrupção de gestação chancelados pela Organização Mundial de Saúde são atacadas e passam por assédio judicial. Há um verdadeiro direito de exceção quando se fala em direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Tudo isso seria resolvido com o julgamento que reconhecesse a inconstitucionalidade da criminalização do aborto: tema essencial para conferir, ainda que tardiamente, igual dignidade e cidadania às mulheres. Enquanto isso não acontece, mulheres permanecem tendo que defender o óbvio e torcendo para que os tribunais reconheçam as constantes violações a seus direitos.