Vivemos tempos surdos. Nos quais cada um, imbuído de uma verdade sua e única, tenta em vão confrontar o mundo e seus disparates, tenta sobrepor o horror e a comicidade grotesca das notícias com alguma coisa que possa restituir a alegria e a calma, perdidas em algum canto de nossas vidas.

Recentemente me mudei para um outro apartamento, no qual abaixo das janelas existem vários aparelhos de ar condicionado de um estabelecimento comercial que emitem um barulho alto e contínuo. O proprietário do apartamento alega que nunca alguém antes de mim tenha reclamado do barulho. Um dos vizinhos afetados me conta que realmente o barulho é ensurdecedor, porém como o afeta apenas parcialmente, lacrou uma de suas janelas e instalou um ar-condicionado ele mesmo, para não se incomodar.

O outro, no qual dentro da casa o barulho deve ser enlouquecedor, não se incomoda… deixa a televisão ligada o dia inteiro, emitindo um barulho mais alto do que o do aparelho. O velho síndico entra em minha casa, e literalmente grita: “você vai ter que se acostumar”. Eu, algumas manhãs em que me sinto menos forte para lidar com a falta de silêncio, me pergunto: sou eu a única a ter ouvidos aqui?

O que mais me chama a atenção não é propriamente as fugas que cada um empreende para não lidar com o óbvio, com o mundo, com os fatos, com a materialidade do real que literalmente atravessa as portas e janelas e se instala no interior de nossas casas. É a incapacidade crônica de nossa sociedade de não prestar atenção no entorno. Estamos tão afastados do convívio coletivo que podemos viver todos os golpes políticos e sociais e ainda assim achar que não é conosco. Que tudo isso está acontecendo com algum outro, que não me importa, que eu não conheço, que eu não convivo, que eu sequer vejo.

Estou lendo um livro impressionante de Svetlana Aleksievitch, chamado O fim do homem soviético. Na obra, a autora colhe depoimentos pessoais daqueles que viveram a transição da queda do comunismo para a entrada no capitalismo na ex-URSS. O que me chama a atenção não são os grandes fatos, as figuras políticas, os acontecimentos que levaram à grande mudança, mas como cada pessoa viveu a sua vida íntima nos anos de transição. “A nossa amizade foi a primeira coisa a desaparecer. Todos estavam de repente muito ocupados, era preciso ganhar dinheiro. Dantes parecia que esse dinheiro…não tinha qualquer poder sobre nós…” (p. 156), descreve uma mulher. Depoimentos contraditórios, paradoxais e extremamente humanos tecem o verdadeiro retrato de uma época, o de como as pessoas atravessaram os acontecimentos políticos e sociais que marcariam suas vidas de forma definitiva.

Lendo esse livro me pergunto como vamos digerir todas as mudanças que estamos permitindo que se faça para a perda de uma soberania nacional em prol do privilégio de alguns poucos. Se vamos suportar, daqui há trinta anos, ver nossos amigos e parentes sem conseguir se aposentar, trabalhando doentes ou já desesperançados, para apenas comer ou pagar o aluguel. Mesmo que se consiga uma aposentadoria, ver seu irmão ou sua melhor amiga não conseguirem, e tomar as decisões necessárias para conviver com a disparidade social que cada vez mais vai se acentuar. Como vamos lidar com os suicídios das pessoas próximas que não suportarem. Assistir nossos filhos, sobrinhos ou netos trabalharem muitas horas por dia sem nenhuma garantia social, sem direito à educação ou saúde em qualquer nível, tendo literalmente roubado deles a chance de viver uma vida mais digna. Ver cada vez mais pessoas do seu próprio convívio descerem a linha da pobreza, e muitas outras tornarem-se miseráveis, tendo que cada vez mais endurecer o coração ao atravessar as cidades e sua população de moradores de rua. Teremos estômago para viver um mundo sem perspectivas, conseguiremos nós olhar para o rosto de nossos filhos e contar que fomos nós que roubamos a sua paz de espírito?

Recentemente fui a uma reunião em que professores da universidade discutiam a possibilidade de abaixar o salário dos professores que estivessem por vir, em novos contratos. A discussão sobre o salário dos professores, neste texto, não vem ao caso. O que vem ao caso é a frase que ouvi ao tentar argumentar: “não se preocupe querida, o seu salário não será afetado, apenas o dos que virão depois de você”. Foi como se uma pedra caísse em meu estômago.

Vamos perceber, porém muito tarde, que se não há bem estar mínimo para todos, ninguém consegue viver bem: você pode lacrar a sua janela para não ver algo, mas também fechará o seu acesso ao mundo, nunca mais conseguirá ver o sol e aproveitar o cheiro da chuva, e isso se transformará em uma perda irreparável. Você pode aumentar o volume dentro de sua casa e tornar-se surdo ao exterior, centrar-se em sua própria vida, e terá perdido a capacidade de ouvir qualquer coisa que não seja aquilo que você reconheça, e isso também será uma perda irreparável. Você pode denunciar, tentar mobilizar os vizinhos, chamar o síndico e ainda assim vai acordar uma manhã cansada, vai sentar no meio de sua vida e chorar diante da impotência de um mundo surdo. E isso também será frustrante.

No último domingo acordei e havia faltado luz. Havia silêncio. Por alguns minutos de um domingo, houve silêncio e eu aproveitei cada segundo com a sofreguidão de quem sabe que vai perder algo valioso, a qualquer momento. Talvez seja assim que os nossos tempos têm nos ensinado a viver: sorvendo com alegria cada momento do dia em que se possa sentir-se vivo e completo.

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  • Barbara Biscaro

    Barbara Biscaro é atriz/cantora e pesquisadora nas áreas do teatro e da música. É Doutora em Teatro pela UDESC e coorden...

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