A luta travada por especialistas em direitos humanos das mulheres pela legalização do aborto no Brasil ganhou força, ontem, com a decisão da primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de revogar da prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam numa clínica clandestina de aborto em Duque de Caxias (RJ). Os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Edson Fachin, que formaram a maioria, entenderam que o aborto nos três primeiros meses de gestação não pode ser caracterizado como crime, porque longe disso, trata-se de um direito.

Em seu voto, Barroso defendeu que os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto no primeiro trimestre de gestação violam direitos fundamentais das mulheres: à autonomia, integridade física e psíquica, sexualidade e reprodução, igualdade de gênero e igualdade social. “A criminalização da interrupção da gestação no primeiro trimestre vulnera o núcleo essencial de um conjunto de direitos fundamentais da mulher. Trata-se, portanto, de restrição que ultrapassa os limites constitucionalmente aceitáveis”, afirmou Barroso em seu parecer.

Decisão afastou prisão preventiva de acusados da prática de aborto/Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
Decisão afastou prisão preventiva de acusados da prática de aborto/Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Leia a íntegra do voto do ministro (não há vídeo disponível porque só ocorre transmissão de plenárias)

“Barroso qualificou esse efeito perverso da lei criminal como discriminação às mulheres pobres, para quem o aborto clandestino é prática de muito risco e sofrimento. Não houve nada de ativismo judicial no voto de Barroso: aborto é uma questão constitucional e é dever da corte enfrentá-la à luz dos direitos fundamentais”, analisou a pesquisadora Débora Diniz em seu texto publicado hoje na Carta Capital. 

“Passamos a ter uma decisão da mais alta corte do país que afirma que a criminalização rompe com os direitos fundamentais das mulheres. A decisão produz uma baliza jurídica favorável às mulheres em um momento em que se acumulam no Congresso ações para retroceder no acesso legal ao aborto, isto é, nos casos em que a lei brasileira já garante a interrupção”, avaliou Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UNB).

Carmen Lucia Luiz, representante do movimento de mulheres no Conselho Nacional de Saúde (CNS), também concorda que a decisão abre precedente para casos semelhantes, além de pautar o tema na sociedade. “O fato de abrir o debate na câmara federal é vantajoso para as mulheres porque põe o tema na mídia. Qualquer possibilidade de ampliar direitos de mulheres, nestes tempos de retrocessos tão descarados, é bem vinda”, afirma.

Termômetro para outras ações
A advogada Tamara Amoroso, especialista em direitos humanos, explica que a decisão de uma turma (parte do colegiado do tribunal) em um habeas corpus abre precedente importante, porém não tem efeito geral e vinculante, por se tratar de uma decisão em um caso concreto. Ou seja, a decisão não obriga a todos, mas apenas apenas as partes envolvidas. É diferente da manifestação do pleno da corte em uma ação que discute uma norma jurídica em abstrato, como ocorreu na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF) – que tornou possível a interrupção da gestação em caso de feto anencéfalo -, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) ou mesmo Ação Direta de Constitucionalidade (ADECON) – como a que garantiu a constitucionalidade da Lei Maria da Penha. Nesses casos, a decisão se torna válida e vinculante de forma geral para toda a sociedade.

“Juízes de instâncias inferiores podem ou não acatar esse precedente. Mas, indiscutivelmente é um precedente importante e inclusive um sinalizador de como a Corte pode julgar a ação do Zika e microcefalia porque essa decisão deu visibilidade a como esses juízes que votaram enxergam o tema. É termômetro para a outra ação”, afirma.

Criminalização não diminui a prática
Em seu parecer, Barroso apontou para a responsabilidade do Estado na oferta de medidas que evitem a ocorrência do aborto por “meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas. A medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios.”

O ministro apresentou dados que indicam que a criminalização do aborto é ineficaz para inibir a prática. Segundo ele, enquanto a taxa anual de abortos em países onde o procedimento pode ser realizado legalmente é de 34 a cada 1 mil mulheres em idade reprodutiva, nos países em que o aborto é criminalizado, a taxa sobe para 37 a cada 1 mil mulheres. Em sua argumentação, enfatizou a discriminação social e impacto desproporcional sobre mulheres pobres. “Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas sem qualquer infraestrutura médica ou a procedimentos precários e primitivos, que lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito”.

Visão romantizada da maternidade
No texto, Barroso cita trechos de tratados internacionais considerados marcos para os direitos humanos das mulheres, como a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), realizada em 1994, conhecida como Conferência do Cairo, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em 1995, em Pequim. “O tratamento penal dado ao tema, no Brasil, pelo Código Penal de 1940, afeta a capacidade de autodeterminação reprodutiva da mulher, ao retirar dela a possibilidade de decidir, sem coerção, sobre a maternidade, sendo obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada. E mais: prejudica sua saúde reprodutiva, aumentando os índices de mortalidade materna e outras complicações relacionadas à falta de acesso à assistência de saúde adequada”.

Para o ministro, a criminalização traduz-se em quebra da igualdade de gênero e é fruto da histórica posição de subordinação das mulheres em relação aos homens “que institucionalizou a desigualdade socioeconômica entre os gêneros e promoveu visões excludentes, discriminatórias e estereotipadas da identidade feminina e do seu papel social”.

“Há, por exemplo, uma visão idealizada em torno da experiência da maternidade, que, na prática, pode constituir um fardo para algumas mulheres. Na medida em que é a mulher que suporta o ônus integral da gravidez, e que o homem não engravida, somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir acerca da sua manutenção ou não”.

Ele citou ainda posição do Ministro Carlos Ayres Britto que se valeu da defesa histórica do movimento feminista, “se os homens engravidassem, não tenho dúvida em dizer que seguramente o aborto seria descriminalizado de ponta a ponta”.

Trecho do Relatório da Conferência do Cairo:
“Esses direitos se baseiam no reconhecido direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de seus filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais alto padrão de saúde sexual e de reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos”.

 

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  • Paula Guimarães

    Paula Guimarães é jornalista e cofundadora do Portal Catarinas. Escreve sobre direitos humanos das meninas e mulheres. É...

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