“Abraçando-a com força, ele passou os dedos pelos cabelos dela e, querendo muito que ela acreditasse, disse: ‘porque eu te amo’.

Ela fechou os olhos. ‘E o que foi feito delas?’

‘De quem?’

‘Das outras pessoas a quem você disse a mesma coisa’” (Truman Capote/ Contos, p. 106).

Este não é um texto sobre o amor. Este é um texto sobre a estranheza. Sobre a sensação de inadequação. Sobre o medo. Sobre qualquer coisa, menos sobre o amor. O amor continua aí, movendo montanhas, reunindo e separando casais apaixonados, gerando filhos, netos e bisnetos. O amor em si, nunca morre, pois é invenção nossa que nos inventa todos os dias. O viver o amor, no cotidiano da vida, é o tema desse meu texto, talvez. O que me intriga não é o amor em si; mas as possibilidades que temos de vivê-lo em sua versão mais café com pão, mais ‘meu bem, a máquina de lavar quebrou’.

Nós vivemos no mundo, e às vezes dá medo de não fazer parte dele. Talvez muitas pessoas sintam esse senso de inadequação latente, esse sentimento que aparece no cantinho da alma depois do almoço do domingo, quando na casa silenciosa, sente-se alguém respirando pesadamente ao seu lado enquanto dorme e você, de olhos bem abertos, se pergunta “onde eu estou?”.

Virginia Woolf, Clarice Lispector, tantas mulheres escreveram sobre sua inadequação ao casamento. Suas personagens eram essas mulheres que arrumam a sala impecável, com as flores e cortinas perfeitas, mas carregam uma pequena sombra na alma: a sombra do desejo de não ter que corresponder a nada disso, a desejarem ser que nem bicho solto, a associarem a união do casal à privação da própria liberdade. Daí se assombram com o mundo lá fora, mas vivem essa realidade como uma proibição, sempre retornando a esse lar levemente torto e sem esquadro que a moldura do casamento impõe. Imagino que homens se sintam assim também. Os deveres, as obrigações desse viver juntxs que não conseguimos repropor o modelo pesam em todxs nós, pois somos, em última análise, ótimos conservadorxs.

Um relacionamento é feito da combinação de pessoas únicas, em um tempo específico e em um espaço restrito. Por mais que estejamos (quase) todxs tentando viver bem essas relações, séculos e séculos de história ligada ao patriarcado e aos papeis esperados de mulheres e homens no jogo amoroso e suas variações fazem das nossas gerações esse grande tubo de ensaio: não precisamos mais respeitar regrar rígidas e violentas do passado recente, mas também não estamos totalmente desconectados das ideologias, moralidades e das formas de organizar nossos sentimentos sob certos modelos duros de “relacionamento” ou do “amor”. Ainda vivemos segundo preceitos herdados de uma sociedade visivelmente doente como a nossa.

Vejo que eu e muitas mulheres da minha idade, ao meu redor, fomos incentivadas a buscar a liberdade a qualquer preço. Uma liberdade impensada por nossas mães e avós, uma conquista notável. Porém, eu, por exemplo, cresci pensando que relacionamentos podem ser prisões e que o jogo amoroso é uma armadilha de perder a mim mesma. Com pouquíssimas referências boas de relacionamentos em minha infância ou adolescência, eu cresci vendo homens e mulheres odiarem-se e agredirem-se mutuamente na aparente calma de seus lares. Eu cresci prometendo nunca, nunca mesmo, dormir todos os dias ao lado de alguém que me machuca apenas para manter as aparências, com verdadeiro horror àqueles almoços de domingo em que o casal briga no restaurante, briga no carro, briga na porta da casa e depois vai dormir como se nada estivesse acontecendo. Eu cresci com um ímpeto de fuga. Eu cresci desejando uma liberdade de uns seiscentos anos em meu seio de mulher. Tornei-me uma inadequada crônica? Haja lágrimas e terapia.

Muitas mulheres não querem essa “liberdade” para apenas transar com outras pessoas e depois voltar ao cenário do lar como quem volta de uma cena de batalha (esse é um mito um tanto masculino, na verdade). São liberdades muito menores e mais subjetivas, como a de respeitar o próprio ritmo, a de sair e não dizer que horas volta, a de ter um quarto todo seu para se trancar nas noites em que a insônia e os pensamentos revolvem o corpo. Como viver o mito do amor romântico, aquele amor-fusão em que minha vida se mescla na sua com essas liberdades? Vira amor-amizade, amor-companheiro? Não sou uma entendedora de Roland Barthes, mas uma amiga filósofa é, e me ensinou os conceitos de idiorritmia e heterorritmia em sua obra sobre o viver juntos.

A heterorritmia seria uma espécie de compartilhamento de ritmos em comum, um viver juntxs que pressupõe que se façam coisas em tempos parecidos. Essa história já conhecemos: sentir fome ao mesmo tempo, sentir sono ao mesmo tempo, sentir necessidade de fazer aquela caminhada espiritual que durará três meses nas montanhas ao mesmo tempo. Ou seja, o tempo de alguém será desrespeitado na heterorritmia, pois nem sempre nossos ritmos se ajustam. Pulsar no ritmo dx outrx é uma delícia, por um tempo. Pulsar o resto da vida no ritmo dxs outrxs pode ser enlouquecedor.

Já a idiorritmia é este ritmo que respeita os ritmos individuais de cada um. Cada pessoa pode escutar o seu desejo e o seu pulsar. A convivência com x outrx respeita esses relógios diferentes, essas fomes distintas, esses sonos desencontrados. Talvez a idiorritmia seja uma miragem, uma hipótese a ser perseguida, já que se de difícil bastam os encontros, que diremos dos desencontros, não é mesmo? Além do mais, na idiorritmia a ideia de espera ou ausência se transforma: na tentativa de viver plenamente a si, não há mais donzela trancada na torre esperando príncipe encantado. Há uma vida real que procuramos tecer com inteireza a cada dia, errando e acertando na medida do possível.

Não há resposta. Há aquele amor velho como o tempo, movendo as montanhas ao redor e todxs nós, aos trancos e barrancos, tentando retraçar essa nova geografia do viver juntxs.

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  • Barbara Biscaro

    Barbara Biscaro é atriz/cantora e pesquisadora nas áreas do teatro e da música. É Doutora em Teatro pela UDESC e coorden...

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