O caso de Mirian Bandeira, mulher indígena de 35 anos que morreu no parto após ter a interrupção de gravidez negada no Paraná é citado em um dos relatórios-sombra que recomenda à Organização das Nações Unidas (ONU) uma série de medidas para garantir acesso ao aborto legal no Brasil.

O documento foi elaborado pelas Defensorias Públicas do Paraná, São Paulo, Santa Catarina, Roraima e Mato Grosso do Sul, pela Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pela Rede Feminista de Saúde. 

As políticas adotadas pelo Brasil em relação aos direitos de meninas e mulheres serão analisadas, nesta quinta-feira(23) pelo Comitê da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw). Será a primeira revisão do país em 12 anos. 

A 88ª sessão da Cedaw começou em 13 de maio e segue até o próximo dia 31, em Genebra, Suíça. A Delegação Oficial Brasileira, liderada pela Ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, apresentará o relatório oficial, enquanto 90 entidades da sociedade civil e instituições de direitos humanos colaboraram com 42 relatórios-sombra. Os documentos  analisam de maneira crítica e independente como e se o país tem cumprido suas obrigações em relação ao tratado e oferecem um contraponto ao relatório oficial. 

A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) é o mais importante acordo internacional de promoção dos direitos das mulheres, ratificado por quase 200 países, entre eles o Brasil desde 1984. 

Ela data de 1979 e é resultado da luta dos movimentos feministas de diversos países, articulados internacionalmente, e que conseguiram pautar as discussões da Primeira Conferência Mundial sobre as Mulheres, no México, em 1975. A Convenção concretizou os compromissos assumidos nessa conferência. 

Anne Teive Auras, coordenadora do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública de Santa Catarina, explica que o principal objetivo é erradicar toda forma de discriminação contra as mulheres nos Estados-parte.

“Ela define a discriminação, estabelece obrigações para eliminá-la em todas as áreas econômicas e sociais, assegura avanço dos direitos das mulheres e sua participação pública e política. Também requer mudanças culturais e eliminação de estereótipos de gênero, possibilita ações afirmativas e garante igualdade de direitos no casamento e em decisões reprodutivas, entre outros aspectos”, completa.

O Comitê é formado por um grupo de peritos internacionais para examinar os relatórios periódicos apresentados pelos Estados-parte, formular sugestões e recomendações gerais, dentre outras atribuições. 

Segundo Auras, o documento que traz o caso de Mirian apresenta algumas das principais dificuldades enfrentadas pelas mulheres brasileiras ao buscar interromper uma gravidez dentro das circunstâncias legais, evidenciando uma violação sistemática dos direitos reprodutivos. 

“Escassez de serviços especializados, falta de informações precisas, deficiência na capacitação dos profissionais de saúde, vulnerabilidade específica de vítimas de estupro de menores de idade, estabelecimento arbitrário de um limite gestacional de 22 semanas sem respaldo legal, exigência de documentação e procedimentos desnecessários (como registro de ocorrência policial), entre outros pontos”, elenca.

Caso emblemático 

O caso de Mirian Bandeira é classificado como emblemático no relatório entregue ao Comitê da Cedaw e revela o quanto a imposição do tempo gestacional reforça a vulnerabilidade das pessoas que procuram pelo cuidado em aborto legal. Mirian descobriu a gravidez com 20 semanas, na Unidade Básica de Saúde de Guarapuava, a cerca de 250 quilômetros de Curitiba. Ela relatava ter sido vítima de violência sexual e já era mãe de duas crianças.

“Foi um caso evidente de uma mulher que tinha direito de acesso ao aborto legal porque foi vítima de violência sexual. Ela procurou um serviço e se deparou com diversas barreiras, além da idade gestacional, para não realizar o aborto no estado”, afirma Mariana Nunes, coordenadora do Nudem do Paraná.

Na época, o Catarinas apurou que Mirian foi acolhida por uma assistente social da Rede de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres do município em 18 de agosto de 2023. Em seguida, o caso chegou ao Nudem estadual através dessa profissional. 

A Defensoria procurou o Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, que se recusou a fornecer atendimento devido à idade gestacional avançada. Apesar da legislação brasileira não colocar limite para interromper gestações avançadas, a maior parte dos serviços não faz abortos acima da 20ª ou 22ª semana de gestação, podendo variar desde que o feto tenha até 500 gramas.

Com a negativa, a Defensoria contactou o Projeto Vivas, organização que ajuda pessoas que gestam a terem acesso ao aborto legal no Brasil ou no exterior, que conseguiu uma vaga através do Sistema Único de Saúde (SUS) para a interrupção, agendada para o dia 28 de agosto. 

Rebeca Mendes, fundadora e diretora executiva do Vivas, conta que ela seria encaminhada para o Hospital Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, a unidade que é referência no serviço de aborto legal, mas desde dezembro de 2023 teve o programa suspenso pela prefeitura. No entanto, nesse meio tempo, Mirian foi procurada por agentes públicos de assistência social de sua cidade, que teriam lhe alertado de que ela poderia sofrer represálias caso realizasse o procedimento.

No Brasil, o aborto é previsto em lei em três situações: quando coloca em risco a vida da pessoa gestante, quando o feto não desenvolve o cérebro (anencefalia) e quando a gravidez é resultado de um estupro. 

Mendes recorda que a primeira pessoa a lhe contactar foi uma servidora da Secretaria Municipal de Saúde de Guarapuava com uma série de dúvidas sobre como funcionava o projeto.

“Para nós era uma questão simples. Como qualquer outra mulher de fora que precisa viajar, já sabíamos como seria. Mas para eles, como era a primeira vez, havia muitos questionamentos”, lembra.

A diretora executiva do Vivas estranhou também as constantes reuniões realizadas entre Mirian e a Secretaria Municipal de Saúde de Guarapuava. Após uma delas, Mirian que, até então estava decidida a realizar a interrupção, começou a demonstrar preocupação em ser processada. 

Mesmo com a fundadora do Vivas lhe explicando que ela não estava fazendo nada de ilegal, ela desistiu do aborto e parou de responder ao Nudem. Mirian optou pela entrega voluntária para adoção. Mas, no dia 15 de novembro, faleceu durante o parto devido a uma embolia pulmonar. 

“A revolta maior é que as pessoas que, entre aspas, estavam tentando ajudar foram as pessoas que criaram barreiras e que estão diretamente ligadas à essa morte”, afirma Mendes. 

Ainda de acordo com Mendes, a exposição da história gerou perseguição tanto para as defensoras públicas envolvidas quanto para o Projeto Vivas. A organização recebeu um ofício da Secretaria Municipal de Saúde de Guarapuava cobrando explicações sobre a divulgação do ocorrido. No entanto, ela reafirma que é importante jogar luz sobre o caso e resgatar a memória de Mirian Bandeira. 

Além disso, ela acrescenta que o caso reforçou a necessidade da organização de orientar as mulheres a cuidarem da própria saúde, buscarem apoio psicológico e também realizarem o pré-natal, considerando os riscos pré-existentes que uma gestação pode trazer para o corpo da mulher. 

“Hoje temos essa preocupação de conversar, pedir para falar com uma psicóloga, de ter esse tipo de orientação mesmo. Ficou uma lição. Essas mulheres que chegam e desistem, pode ser que alguma delas vire mais uma Mirian. Para nós é bem complexo lidar com isso”. 

Segundo Mariana Nunes, o Nudem do Paraná tem prestado assistência à família e vai ingressar com uma ação indenizatória. Também há uma perícia preliminar feita pela Defensoria Pública, que vai passar por uma perícia oficial, que aponta para uma morte materna evitável. 

Ao final, o relatório sombra sugere ao Comitê Cedaw que adote algumas recomendações ao Estado brasileiro, como a revogação de normativas que restringem o acesso ao aborto legal, a elaboração de norma com diretrizes e orientações aos serviços de aborto legal baseadas nas melhores evidências científicas, a ampliação dos serviços de referência e a garantia de acesso à informação, dentre outras medidas.

Mortalidade Materna continua um desafio

Outro informe enviado ao Comitê Cedaw reforça que a falta de uma política clara de acesso à saúde em relação aos direitos sexuais e reprodutivos contribui para que o aborto inseguro continue sendo uma das principais causas evitáveis de morte materna no Brasil. 

O documento, apresentado por 13 organizações que atuam em defesa da justiça reprodutiva, traz um recorte étnico-racial sobre o cenário nacional, destacando que as mulheres e as meninas negras são as mais afetadas dentro das injustiças reprodutivas. 

“Fatores como o medo de ser maltratada e a falta de dinheiro para transporte retardam o acesso ao serviço, colocando-as em maior risco. As mulheres negras são mais expostas aos riscos do aborto clandestino, correspondendo a 47,9% das internações e 45,2% dos óbitos por aborto, contra 24% e 17% das mulheres brancas, respectivamente”, aponta o relatório. 

Mariane Marçal, assistente de coordenação de projetos e incidência política de Criola, uma das organizações que assina o documento, afirma que a taxa de mortalidade materna revela que a qualidade da assistência em saúde brasileira está muito aquém do necessário para garantir saúde e dignidade, sobretudo para as mulheres e meninas negras. 

Ela destaca que a mortalidade materna é uma questão grave de saúde pública e, embora o Brasil seja signatário de várias convenções e conferências internacionais, está longe de arcar com o compromisso de reduzir o problema.

Dados do Observatório Obstétrico Brasileiro trazidos no documento mostram que a razão de mortalidade materna no país saltou de 55,31 para 107,53 a cada 100 mil nascidos vivos entre 2019 e 2021, índice é similar aos números da década de 1990.

“Esse panorama se agrava cada vez mais com essa falta de acesso à justiça reprodutiva, aos direitos sexuais reprodutivos, especialmente em relação ao aborto que tem sido um tema de muita dificuldade para debate e discussão no contexto brasileiro atual”, afirma. 

O relatório ressalta a distância dos serviços como uma das principais barreiras de acesso ao direito e penaliza as mais vulnerabilizadas, como aquelas que moram em regiões rurais ou periféricas, negras e indígenas, com deficiência, mães e cuidadoras e pobres. Levando essas mulheres à busca por opções clandestinas e inseguras para realizar o procedimento.

“E ainda tem a população LGBTQIA +, homens trans, não binários, pessoas transmasculinas com útero que podem gestar e que sequer são citadas nesse contexto de mortalidade”, completa. 

Brasil vive epidemia de gravidezes forçadas na infância e adolescência

A Criola também ajudou a construir um relatório que trata especificamente da gravidez na infância ou na adolescência, que estão diretamente associadas ao crime de estupro de vulnerável, quando a vítima é menor de 14 anos.

O documento traz informações do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 que constatou o maior número de registros de estupro e estupro de vulnerável da história, com 74.930 vítimas. Destas, 6 em cada 10 vítimas são vulneráveis com idades entre 0 e 13 anos, violadas por familiares e outros conhecidos.  

Segundo o Código Penal, por terem sido vítimas de estupro de vulnerável, essas crianças e adolescentes deveriam ter acesso ao aborto legal. No entanto, uma criança é mãe a cada 30 minutos no país, de acordo com Estudo Meninas Mães 2023, realizado pela Rede Feminista de Saúde.

“Há crianças menores de 14 anos sendo estupradas e, consequentemente, com gestações frutos desses estupros que estão parindo sem garantia do acesso ao direito. Há estudos que mostram que temos, em média, 102 abortos legais para essa faixa etária para mais de 20 mil partos. É muito discrepante”, avalia Mariane Marçal. 

No direito internacional dos direitos humanos, há consenso de que obrigar uma criança ou adolescente a continuar uma gravidez resultante de violência sexual pode ser equiparado à tortura. Isso porque, devido ao desenvolvimento fisiológico incompleto e inadequado para uma gestação saudável, qualquer gravidez nesses períodos representa um risco significativo à vida da pessoa que gesta.

Organizações alertam Comitê sobre ataques ao direito 

As organizações também destacam os recentes retrocessos em relação ao acesso ao direito, como a resolução nº 2.378/2024  do Conselho Federal de Medicina (CFM), que proíbe médicos de realizarem interrupção de gestação com mais de 22 semanas em caso de estupro, e o fechamento do serviço de aborto legal do Hospital Vila Nova Cachoeirinha. 

“Tudo isso está para além de uma ação pontual contra direitos sexuais e reprodutivos, contra a injustiça reprodutiva. É um ataque à democracia. Isso impede a nossa cidadania, a dignidade, a vida. São ataques coordenados em várias esferas”, avalia Mariane Marçal. 

Para Camila Mafioletti Daltoé, coordenadora estadual da Rede Nacional de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, no Paraná, essas barreiras vêm sendo colocadas como uma resposta ao avanço das discussões sobre o tema, tanto em relação à discussão da descriminalização social do aborto – a percepção pública de que mulheres e pessoas que gestam não devem morrer por acessar o aborto clandestino  – quanto em relação à discussão perante o Supremo Tribunal Federal, com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 989.

“Inclusive a nota [técnica] do Ministério da Saúde que foi revogada, mas que foi uma manifestação da pasta de que essa barreira em relação à idade gestacional não é cabível. Esses ataques se localizam numa onda de avanço e é importante que a gente reconheça para sabermos que tem avanço acontecendo a partir da contribuição dos movimentos feministas, dos profissionais que têm compromisso com as evidências científicas, etc”, afirma. 

A coordenadora destaca o estigma da criminalização do aborto como um fator central nesse cenário. Além disso, ressalta que a persistência no uso de técnicas menos ultrapassadas, já superadas por estudos científicos, representa mais uma barreira para a realização do procedimento de maneira segura.

“Existem normativas que limitam esse acesso e geram insegurança, como é o caso da normativa sobre as 22 semanas. No caso da Mirian, conseguimos observar na prática, traduzido num caso muito simbólico e triste, porque se não existisse essa barreira imposta em relação à idade gestacional, pode ser que estivéssemos contando outra história”, diz. 

Próximos ações do Comitê Cedaw

Depois das discussões da 88ª sessão, o Comitê Cedaw apresentará suas recomendações ao Brasil e elas são importantes como instrumento de pressão para fomentar a adoção de políticas públicas, a edição de leis e medidas administrativas coerentes com o direito internacional dos direitos humanos. 

Além disso, o Comitê também monitora a implementação das recomendações, inclusive podendo avaliar o seu cumprimento em uma próxima revisão. Assim, uma recomendação do Comitê Cedaw contribuiria para o reconhecimento internacional da violação sistemática dos direitos reprodutivos das mulheres no país e para fortalecer a luta pela ampliação e facilitação do acesso das mulheres à interrupção da gestação.

“A pressão internacional, visibilizar essa falta de acesso, são medidas cruciais nesse momento em que toda ajuda é necessária e bem-vinda porque estamos sofrendo vários ataques. São muitas forças contrárias à possibilidade de avanço dessa discussão, então, essa conversa internacional tem um potencial”, ressalta Daltoé.

Procurada para um posicionamento sobre o caso Mirian Bandeira, a Prefeitura de Guarapuava não respondeu até o fechamento desta reportagem.

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  • Kelly Ribeiro

    Jornalista e assistente de roteiro, com experiência em cobertura de temas relacionados a cultura, gênero e raça. Pós-gra...

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