No início de março, uma Comissão Independente constituída pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal, entregou o relatório final sobre a análise de denúncias públicas feitas por 13 pesquisadoras e de mais 34 denúncias anônimas, reconhecendo a existência de “padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES1.”

Dias depois da divulgação do documento, as 13 pesquisadoras divulgaram uma carta em que elogiaram o relatório da Comissão, pelo “rigor, detalhes e evidências” nele apresentados, virando, assim, “a página do negacionismo do assédio e do abuso de poder”. O material ali reunido, mais do que provas de um conjunto de fatos, segundo elas, eram “as histórias das nossas vidas”.

Em entrevista publicada mais recentemente, elas detalharam os fatos, oferecendo condições para que pudéssemos entender mais sobre o contexto em que eles aconteciam.

As violências e os assédios, segundo elas, eram parte intrínseca ao cotidiano acadêmico de interação e de trabalho com o “professor-estrela” e com outras pessoas que dispunham de algum tipo de poder sobre elas no CES.

Eu já conhecia boa parte dos relatos ali reunidos e venho compartilhando material sobre o caso em minhas redes virtuais desde quando vieram a público as primeiras acusações, em março de 2023. Todavia, a leitura da entrevista me conduziu a  um percurso reflexivo diverso desta vez. Isso não aconteceu apenas comigo. Muitas amigas das minhas bolhas virtuais, também professoras e pesquisadoras do campo do direito, expressaram-me um sentimento afim. Ali estavam as histórias delas e parte da nossa também.

Não quero aqui trivializar as vivências narradas pelas 13 pesquisadoras. Tampouco pretendo comparar meus antigos professores, colegas de turma, de departamento ou coordenadores de projetos de pesquisas ao “professor-estrela”. Esse não é um texto-denúncia e não é sobre vocês. É sobre nós: as denunciantes, as minhas amigas de geração e sobre mim também. Quero abordar algumas das desilusões de nossa trajetória acadêmica e tentar caminhar um pouco para além delas.

Minhas amigas e eu estamos hoje com cerca de 40 anos. Fizemos graduação em direito no fim dos anos 90, fomentadas pelo novo contorno constitucional conquistado em 1988, que garantiu às mulheres, pela primeira vez, a cidadania jurídica plena. Oriundas de classes médias e baixas, tínhamos orgulho pelo pioneirismo na família – fomos as primeiras mulheres de nossas famílias a ingressar em uma faculdade. Sentíamo-nos como herdeiras diretas das utopias que embalaram as lutas pela redemocratização do país. Compartilhamos, portanto, um senso de responsabilidade por contribuir com transformações mais profundas na sociedade brasileira e nas instituições jurídicas.

Dividimos as cadeiras das salas de aula com estudantes homens em percentuais equilibrados, próximos a 50%. Naquele momento, ainda eram poucas as pessoas negras ali e o debate institucional sobre políticas afirmativas nas universidades era incipiente. Os nomes na grade horária dos cursos de direito que frequentamos e nas referências bibliográficas que nos chegavam, na maioria, eram de homens brancos.

Para nós que tínhamos pressa em mudar o mundo, as aulas pareciam, quase sempre, um convite a requentar o passado ou a organizar a realidade por conceitos abstratos já puídos pelo tempo. Que inútil parecia ser a tal da dogmática. Esse veredicto ganhava reforço pela falta de didática e de carisma de quem estava sob a incumbência de nos apresentá-la. A facticidade que ilustrava os conceitos e argumentos jurídicos nos manuais mais prestigiados não parecia corresponder ao tempo presente.

Não me recordo de ter categorizado nenhuma das inúmeras condutas de meus ex-professores como sendo machistas, misóginas, racistas, violentas, discriminatórias ou assediadoras. Esse vocabulário não circulava livremente entre nós nos anos 1990. As classificações mais usuais e que utilizávamos para rotular nossos professores: conservadores ou progressistas, direita ou esquerda, positivistas/jusnaturalistas ou críticos.

Apesar de estarem, quase sempre em minoria, minhas amigas e eu prestávamos mais atenção em atividades acadêmicas conduzidas por professores progressistas, de esquerda ou críticos. Foi por esse alinhamento que acabamos por conhecer os livros do sociólogo português.

Os textos sob sua assinatura no campo da sociologia jurídica eram vibrantes, um respiro de ânimo, porque tomavam de apoio o mundo presente, em crise ou em transição paradigmática, e nós éramos agentes dessas transformações.

Seus livros ofereciam uma gramática criativa, compatível com nossos anseios por mudanças e privilegiava a nossa ação política, povos do Sul Global, para a superação da crise global política, societal e na própria produção do conhecimento. Além de análises complexas e instigantes, os ensaios organizavam “lições” e “tarefas” para serem assumidas por quem quisesse também promover as tantas mudanças necessárias. Cabia a nós segui-la.

Esse era o modelo de escrita compartilhada por muitos outros autores brasileiros engajados com a transformação social. Os textos traziam listas de orientações normativas para a promoção do novo, apesar de serem, geralmente, escassos em empiria sobre as dinâmicas sociais brasileiras. É uma literatura, em geral, menos disposta a interpretar o mundo, mais interessada em transformá-lo, parafraseando Marx.

Minhas amigas e eu não somente levamos a sério o estudo de todas as obras publicadas pelo “professor-estrela”. Éramos difusoras fervorosas das ideias presentes nos seus livros em nossos próprios textos, teses, camisetas e bonés.

Além de obras críticas, em linguagem cativante e na língua portuguesa, o professor português vinha ao Brasil para participar de diversos eventos com relativa frequência. Víamos ele como amigo de quase todo o campo progressista brasileiro, dentro e fora da academia, o que aumentava nossa percepção de estarmos do lado certo das forças históricas. Era fundamental garantir que um número cada vez maior de pessoas tivesse acesso às ideias dos seus livros.

Esse papel de difusoras do pensamento alheio já não era lá muito estranho para nós, mulheres em cursos de direito nos anos 1990. Por motivos e circunstâncias variadas, minhas amigas e eu passamos uma parte significativa de nossa trajetória acadêmica lustrando a carreira e a produção acadêmica de alguns dos nossos professores do direito do mesmo campo político, ainda que não fossem lá tão competentes ou sérios academicamente.

Fomos pouco ou nada críticas em relação a algumas circunstâncias de abusos ou de machismos perpetradas por eles, seja para não sermos acusadas de divisionistas, seja porque a crítica a eles poderia abrir um flanco aos ataques vindos do espectro político conservador. Sabíamos, também, que nosso futuro na universidade, em alguma medida, dependia da tarefa de defender nossos ícones.

Podemos dizer que isso tudo constitui a divisão sexual do trabalho acadêmico e, também, uma espécie de currículo oculto sobre as hierarquias e papéis de gênero a serem desempenhados no mundo jurídico acadêmico.

De modo geral, além de “acadêmicas secretárias”, e “acadêmicas sexualmente disponíveis”, também fomos ensinadas a nos comportar como “acadêmicas sentinelas” dos sistemas hierárquicos de poder acadêmico e dos homens que o corporificam.

Como sentinelas é que talvez fosse possível conquistar algum prestígio acadêmico, como ser professora, poder sentar-se ao lado deles em mesas de palestras ou ter a produção bibliográfica própria minimamente reconhecida.

A entrevista com as 13 pesquisadoras denunciantes dos casos de assédios e de abusos no CES nos atravessou profundamente, não porque somos vítimas diretas dos mesmos fatos. Na realidade, as entrevistadas passam a limpo, sob a gramática feminista agora emergente no debate público e já institucionalizada pelo direito, alguns tipos de interação acadêmica entre nós e nossos ídolos que podem ser considerados característicos de nossa geração.

As pesquisadoras detalham as consequências de terem vivido mais diretamente os efeitos de um “sistema de servidão acadêmica”, de “extrativismo intelectual”, com ares de “seita religiosa”. Poderia ter sido qualquer uma de nós. Minhas amigas e eu sabemos que sistemas como o descrito por elas poderiam facilmente ganhar forma em torno de muitas outras figuras do direito brasileiro, aspirantes a “professor-estrela” e que a maneira como fomos socializadas nos cursos jurídicos, ao menos até o fim dos anos 1990, favorece nossa participação em tais arranjos.

Por tudo isso, sentimos na nossa pele os relatos contidos na entrevista aqui citada. Experimentamos alguns simulacros ou encenações menores desses arranjos em nossos percursos universitários. Os relatos que elas fizeram sobre o abandono dos seus sonhos em seguir a vida acadêmica foram particularmente dolorosos. Foi como se elas tivessem realizado o que minhas amigas e eu ensaiamos por inúmeras vezes.

Muitas de nossas teses estão engavetadas e várias pesquisas não foram concluídas por não nos sentirmos tão originais ou produtivas como o sociólogo ou como outros aspirantes jurídicos a corpos celestes. Presenciamos ou passamos por humilhações, assédios sexuais e esquemas de exploração intelectual perpetrados por professores dos dois espectros políticos, esquerda e direita.

Não quero oferecer aqui a sentença final da justiça portuguesa ou dos órgãos administrativos da Universidade de Coimbra, declarando o sociólogo e seus “aprendizes” como culpados. Do que soube, os processos estão em fase inicial e em uma democracia, todas as pessoas devem ter os direitos ao contraditório e à ampla defesa assegurados.

Novamente, estou aqui abordando a angústia que minhas amigas e eu sentimos ao ler a entrevista mais recente com as pesquisadoras. É tudo muito familiar. Por isso, mais do que um detalhamento dos fatos, a entrevista nos oferece condições para um diagnóstico melancólico das desventuras da minha geração no meio jurídico acadêmico, aqui no caso, do campo progressista dos anos 1990.

Esse diagnóstico sugere um abandono do campo progressista? Em hipótese alguma. Falo aqui sobre um modelo de formação acadêmica que, nos termos de teóricos críticos como Theodor Adorno, parece ter se configurado em um tipo de semiformação, que se aproxima-se de interesses próprios das sociedades capitalistas e dos regimes de colonialidade, ainda que se proponha a superá-los.

Poucas de nós fizemos à época leituras de pensadoras feministas, tais como Alexandra Kollontai, Flora Tristán, Rosa Luxemburgo, Emma Goldman, bell hooks, Heleieth Saffioti, Lelia Gonzalez, Sueli Carneiro e tantas outras, mais e menos próximas de nós no tempo e espaço, que abordaram os limites de qualquer práxis ou pensamento progressista ou emancipador que não seja comprometido com a superação também do patriarcado e do racismo que modelam as dinâmicas sociais e as instituições formais no Brasil e no mundo.

Ler mulheres parecia, nos cursos jurídicos até os anos 1990, uma perda de tempo. Todavia, hoje percebo, nós é que perdemos tempo em não as conhecer naquele tempo.

Algumas das minhas amigas que ainda citavam até anteontem as obras assinadas pelo sociólogo nas suas aulas ou trabalhos acadêmicos compartilharam a dúvida sobre a manutenção ou não desses textos como bibliografia.

Minha sugestão e de outras dessas minhas amigas que já tornaram laterais os escritos do sociólogo nas suas práticas acadêmicas não foi algum tipo de cancelamento. Alertamos, apenas, que já está acontecendo um processo de substituição de, ao menos, parte dos textos dele por obras de outras pessoas, com abordagens feministas e de vertentes decoloniais, críticas e crítico-raciais, como uma espécie de ida nossa às fontes diretas do autor português.

Esse movimento tem nos conduzido a refletir mais seriamente não apenas sobre os déficits de presença e de credibilidade que a produção feita por mulheres e por outras pessoas pertencentes a grupos marginalizados no meio jurídico-acadêmico enfrentam historicamente, mas também sobre os níveis indevidamente elevados de credibilidade e de atenção que oferecemos a um grupo muito pequeno de intelectuais considerados referências do campo. Por isso, não estamos nos colocando em oposição às obras dele, mas simplesmente não nos ocupando mais tanto com seus textos.

Essa cautela pode se estender também às leituras consideradas canônicas no direito. O caso em discussão sobre a equipe do CES explicita o que significa ser um gênio produtivista e qual o preço a ser pago por isso.

Uma vasta e incrível produção bibliográfica de professores “semi-astros” do campo jurídico brasileiro pode envolver, por vezes, equipes de pessoas escritoras invisíveis, algumas mal remuneradas, outras até bem pagas, mas com seus esforços não reconhecidos. Qual a qualidade científica ou acadêmica desse tipo de produção, feita assim?

A refletir. Por ora, tenho dado preferência aos trabalhos produzidos por mulheres ou por homens que demonstram estima por rigor científico nos seus trabalhos, mesmo produzindo-os artesanalmente, sem fomentos de grandes centros de pesquisa.

Também contemplo pessoas que, por vezes, coordenam estudos grandes, com ou sem financiamento, mas que dão os devidos créditos ao trabalho feito por toda a equipe.

Ainda, tenho valorizado e buscado favorecer a manutenção de redes acadêmicas, especialmente entre feministas, pertencentes à minha e a outras gerações, não como um tipo de oposição aos homens ou motivada por aspirações piegas de tomada de poder.

Acredito que as redes acadêmicas feministas permitem não apenas a elaboração de trabalhos acadêmicos colaborativos, mas também a escuta e o apoio mútuo entre nós, tornando o mundo acadêmico um pouco mais habitável para nós.

Elas também servem para reduzir o alcance – e os eventuais estragos – de professores ou acadêmicos do tipo estrela, já que as histórias são ali partilhadas e não há um ponto central organizando todo o desenho. As redes são compostas por pessoas em condições relativamente simétricas de enunciação.

Essa resposta dada às colegas que estão na dúvida sobre a manutenção ou não dos textos do sociólogo português em seus planos de ensino ou nos seus trabalhos acadêmicos é, na realidade, um tipo de desvio consciente dos processos de canonização acadêmicas, incompatíveis com a produção de qualquer pensamento social crítico.

São recursos que nos ajudam também a refletir sobre nosso passado comum e, com isso, buscar interromper conscientemente todo tipo de percurso de violências que nos direcione ao dilema entre abandonar a vida acadêmica ou aceitar o papel de sentinelas.

As novas gerações de estudantes, jovens feministas, têm nos ajudado a perceber que esse é um falso dilema. É possível percorrermos múltiplos caminhos na vida acadêmica, menos cruéis para nós e mais dignos para o trabalho acadêmico de muitas outras pessoas, mesmo que parte deles ainda precisem de melhor pavimentação. Que tenhamos coragem necessária para isso, como as pesquisadoras denunciantes tiveram ao compartilharem tanto conosco.

Nota de rodapé

1 – A Comissão foi criada em razão das acusações contra o professor Boaventura de Sousa Santos por práticas de assédio moral e sexual narradas por três autoras de um capítulo publicado no livro: Sexual Misconduct in academia: informing an ethics of care in academia, de março de 2023.

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