A primeira indígena a ser vacinada contra a Covid-19 em Santa Catarina foi Kerexu Yxapyry, do Povo Mbyá-Guarani, moradora da Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Palhoça, Região Metropolitana da Grande Florianópolis. Ela faz parte da coordenação da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização nacional do Povo Mbyá-Guarani, e atua como coordenadora executiva da APIB-Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Assista a declaração Kerexu Yxapyry logo após a vacinação.
Em entrevista ao Portal Catarinas ela fala sobre o percurso de luta dos Povos Indígenas, o trabalho de conscientização nas aldeias, a importância da vacina e a reparação histórica da sociedade aos Povos Originários.
PORTAL CATARINAS – Para você qual a importância de uma vacina na circunstância atual de pandemia, principalmente para os povos indígenas?
Kerexu Yxapyry: Nós, povos indígenas, temos marcado tanto nas nossas memórias quanto registrado nessa terra o genocídio que teve no passado para com os povos indígenas. Uma das formas de genocídio foram as pandemias e as epidemias que chegaram, que foram trazidas e exterminaram muitos povos. Isso para nós é um fato histórico e que a gente tem muito forte na nossa memória quando chega esse tipo de doença – causa pavor, medo, desespero dentro da população indígena em geral.
Quando chegou a pandemia, nós das organizações indígenas, tivemos um entrave muito forte nessa luta, nessa batalha, para que os povos indígenas fossem atendidos como prioridade dentro dos órgãos públicos, tanto nas esferas federal, estadual, como municipal, por esse histórico de genocídio que nós passamos no passado. A nossa luta é para que não exista mais esse tipo de extermínio dos povos indígenas. E não foi uma luta fácil. Lá no início da pandemia nós não estávamos sendo contados como prioritários.
Existiam outros, como os mais velhos e pessoas doentes, que estavam nessa linha de frente com prioridade para fazer os testes e ter esse atendimento específico, mas a população indígena não estava. Então, pelo histórico, a gente travou essa luta dentro do governo para que os indígenas tivessem prioridade. É o mínimo de retratação, talvez, dos brasileiros com o extermínio dos povos indígenas. A partir dali a gente teve essa conquista no Supremo Tribunal Federal, em outras linhas de atuação do movimento indígena e a gente conseguiu colocar toda a população indígena como prioridade nesse atendimento.
As declarações do governo federal têm desestimulado a aceitação sobre a vacinação entre os indígenas? Como você analisa as declarações oficiais?
A gente percebe, quando começa a ser discutida a questão da vacina, que o governo federal vem negando a doença desde o início, mas também é uma estratégia que ele usa para negar esse direito: desinformar a população e trazer toda essa desinformação de que a doença não é uma “doença”; afirmar que se as pessoas se vacinarem ele não se compromete com a decisão porque pode ter uma mutação. Tem toda uma campanha por trás disso, principalmente das igrejas evangélicas, dizendo que estão implantando o chip da besta nas pessoas, que isso não é algo saudável, não é algo bom.
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Existe toda essa desinformação na sociedade e não é diferente no meio da população indígena, principalmente no meio da população indígena que às vezes está lá dentro da aldeia, onde não pega sinal de internet, onde não pega sinal de telefone direito, às vezes a televisão é o que está lá plantada dentro das casas indígenas e que acabam acessando infelizmente só esse tipo de informação.
Nessa luta de frente, a gente também buscou muito para que a população indígena fosse prioridade para receber a vacina, mas com as desinformações a gente começou a perceber que em muitas aldeias muitas lideranças, inclusive, começaram a organizar dentro de suas aldeias a negação dessa vacina, a se negar a tomar essa vacina. Então, cria aí uma discussão entre algumas lideranças que estão nessa linha de frente buscando garantir esse direito dos povos indígenas serem prioridade, enquanto a gente também precisa fazer essa conscientização dentro das aldeias e desmistificar toda essa campanha contrária.
Kerexu, como você foi selecionada para tomar a vacina? Qual foi o critério?
Quando as vacinas chegaram no estado de Santa Catarina, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) – instituição que trabalha com a questão indígena e com a saúde indígena – ficou com receio de chegar e chamar as pessoas para que elas fossem tomar a vacina. Até porque não foi feito ainda uma orientação e é uma coisa que nós estamos cobrando como liderança: orientação nas aldeias sobre o que que é a vacina, quais são os efeitos colaterais, se tem efeitos colaterais, se não tem, quais são as pessoas que tem que tomar a vacina, que podem, que não podem. Toda essa orientação prévia não aconteceu. É uma das cobranças que a gente está fazendo agora.
Por essa questão que a gente vem trazendo de conscientização, eu aceitei o convite da SESAI, do coordenador da SESAI, para que eu fosse fazer essa frente de luta, de conscientização, de campanha para que todos os indígenas, principalmente do meu povo, se vacinem. Como eu estou na coordenação, estou nessa linha de frente, tenho que dar o exemplo daquilo que estou lutando – que faço fora e dentro das comunidades. Foi nesse sentido que eu fui convidada para fazer a primeira vacina aqui no estado.
Eu fiquei muito feliz de ter sido convidada. Muito feliz, porque para mim é muito importante, algo que eu já estava esperando. É uma luz no fim do túnel, uma esperança para aqueles dias tão ruins. Porque a gente sofreu muito, muito, muito. Eu mesma sofri muito com essa questão das perdas de muitos parentes, de pessoas muito próximas, de muitas pessoas de luta que estavam nessa frente para garantir o direito dos povos indígenas e acabaram indo com a doença, sem a gente poder ter esse diálogo, essa conversa ou esse apoio no momento em que as pessoas mais precisaram. Foi muito forte para mim essa pandemia e nesse sentido a emoção também foi forte de aceitar esse convite para tomar essa vacina.
E essa conscientização a gente está levando para todas as aldeias, para todas as lideranças, para todos os jovens, mulheres, para que se vacinem. É muito importante para nós, porque isso, no passado, trouxe um trauma, uma marca muito forte de morte, de extermínio. Os nossos mais velhos estão marcados por todos esse genocídio dos povos indígenas, seja através da doença, seja ela através de vacinas, inclusive. Muitos dos nossos povos morreram, foram matados com vacina.
A gente alcançar hoje a conquista de ter a vacina, com todo esse diálogo (principalmente com o movimento indígena) e fazer garantir valer nossos direitos para que nós tenhamos prioridade em receber a vacina é uma evolução muito grande.
Eu tenho muita fé, muita esperança, que a gente vai evoluir muito mais na garantia do direito de todos, o direito dos povos indígenas, direitos à saúde. Eu tenho essa fé, tenho essa esperança de que a gente vai chegar em dias melhores. Por isso, eu estou bem emocionada, bem feliz por esse momento. Uma fala que tenho colocado, principalmente para os nossos parentes, que talvez agora a gente comece a ter um pouco de retorno daquilo que foi morte e tristeza no passado. A gente está tendo, aos pouquinhos, é muito pouco, o início de uma reparação histórica dos extermínios dos povos indígenas.
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