“Tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado.” A frase marcante do enredo “História para Ninar Gente Grande”, apresentado pela Mangueira no Carnaval de 2019 em homenagem a Marielle Franco, ressoa com força na trajetória de Sonia Maria de Jesus, 51 anos. Mulher negra e surda foi mantida por quase quatro décadas em regime de escravidão contemporânea na casa do desembargador Jorge Luiz de Borba, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. 

Nesta semana, o nome da esposa do desembargador, Ana Cristina Gayotto De Borba, foi incluído na Lista Suja do Trabalho Escravo, cadastro oficial do Ministério do Trabalho e Emprego que reúne empregadores —  pessoas físicas e jurídicas — responsabilizados administrativamente por submeter pessoas à escravidão contemporânea. A medida é considerada uma vitória institucional por familiares de Sonia e auditores fiscais do trabalho, embora o nome do magistrado não tenha sido incluído.

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Nome de Ana Cristina Gayotto De Borba na Lista Suja do Trabalho Escravo | Crédito: reprodução.

“Sonia está escravizada e eu digo ‘está’ porque ela ainda continua lá sob o domínio da família que a escravizada. Nós, infelizmente, não conseguimos resgatá-la. Mas ela está sob esse domínio por um período muito longo de décadas. E ela iniciou esse domínio na família da esposa do desembargador”, afirmou Marcelo Campos, auditor fiscal, ao Catarinas. 

A cena remonta às páginas mais sombrias da história brasileira, mas acontece agora, sob o teto de uma casa em Florianópolis e sob o silêncio de instituições que deveriam proteger direitos fundamentais.

Sonia foi resgatada em 2023, após uma denúncia anônima, no entanto, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), respaldada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou seu retorno ao local da exploração, sob a justificativa de que ela “fazia parte da família”. Sonia havia sido levada da periferia de São Paulo à casa da família ainda criança, aos 9 anos de idade, pouco depois do nascimento da primeira filha do casal.

“Ao longo desses quase dois anos, essa é a primeira vez que de fato o Estado brasileiro reconhece que a Sonia esteve, sim, exposta a trabalho análogo à escravidão. Para nós, da família, é de extrema importância porque reforça a denúncia inicial. É importante ressaltar que apesar de que apenas o nome dela esteja na lista, isso não exime o desembargador de responsabilidade por todos os prejuízos causados à Sonia”, destacou Marcelo de Jesus, 38 anos, irmão de Sonia, ao Catarinas.

Entenda o caso na reportagem do Catarinas em parceria com o Intercept Brasil. 

A Lista Suja do Trabalho Escravo é atualizada semestralmente, e os nomes incluídos permanecem no cadastro por dois anos. Na atualização mais recente, 155 novos empregadores foram adicionados, elevando o total para 745. Os setores com maior número de casos seguem sendo a criação de bovinos (21), o cultivo de café (20), o trabalho doméstico (18), a produção de carvão vegetal (10) e a extração de minerais (7).

Por que apenas ela?

No caso do trabalho doméstico, a responsabilização é feita em nome de pessoas físicas. A legislação exige a definição de um único CPF como empregador, diferentemente do que ocorre em empresas com CNPJ, onde é possível apontar vários sócios. Embora o nome do desembargador conste nos autos como figura presente no cotidiano de Sonia, a escolha pela inclusão apenas da esposa se deu também para garantir maior responsabilização pelo longo período de exploração.

“Se fosse, por exemplo, em nome do desembargador, o período pelo qual ele poderia ser responsabilizado seria muito menor. Do ponto de vista patrimonial e de responsabilidade econômica, não há diferença, já que ambos integram a mesma família”, explicou o auditor fiscal. 

Nascida na zona oeste de São Paulo, na divisa com Osasco, Sonia foi levada pela psicóloga Maria Leonor Gayotto, mãe de Ana Cristina. Sob a justificativa de “proteção” contra violência doméstica, a família biológica foi convencida a entregá-la em um acordo verbal — que se transformou em quatro décadas de servidão doméstica, sem remuneração ou liberdade.

A ‘Lista Suja’ como instrumento de justiça

O caso chocou o país quando Sonia foi devolvida ao mesmo ambiente de exploração de onde havia sido resgatada, com aval do STJ e do STF. Os magistrados que analisaram o caso consideraram o vínculo de “paternidade socioafetiva” declarado pelo casal com a trabalhadora. “Não é incomum que empregadores que escravizam no trabalho doméstico utilizem-se desse subterfúgio para tentar amenizar a responsabilidade trabalhista”, apontou o auditor fiscal.

Criada em 2003, a Lista Suja do Trabalho Escravo é reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma ferramenta eficaz no combate à escravidão moderna. A lista não impõe penalidades diretas, mas tem impacto econômico e institucional: bancos públicos e privados costumam negar crédito a empregadores nela incluídos.

A inclusão de Ana Cristina Gayotto De Borba na Lista Suja confirma que todas as etapas do processo administrativo foram concluídas, com garantia do direito à ampla defesa. Com isso, o governo federal reconhece oficialmente que Sonia Maria de Jesus foi submetida a trabalho análogo à escravidão.

Embora, como explica o auditor fiscal, seja comum que empregadores recorram ao Judiciário para tentar remover seus nomes do cadastro — e, em alguns casos, consigam. “É uma medida institucional de empoderamento da própria campanha do Sonia Livre. A inclusão do nome da esposa do desembargador no cadastro é um momento importante da luta pela libertação de Sonia”, enfatiza o auditor.

A impunidade com toga

Apesar das evidências, o desembargador Jorge Luiz de Borba segue atuando no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, sem sofrer qualquer tipo de punição administrativa ou judicial até o momento. 

Na Justiça catarinense, a família do desembargador tenta reconhecer a paternidade socioafetiva de Sonia, numa tentativa de regularizar a situação de exploração. O processo tramita em segredo de justiça, sem acesso à família ou aos advogados da vítima. O Ministério Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União, que atuavam como terceiros interessados, foram retirados do caso.

“Não é possível que as mesmas pessoas que escravizaram a Sonia sejam reconhecidas como pais. Nós familiares temos esperança de que quando for julgado o processo de reconhecimento da paternidade que seja levada em consideração a inclusão do nome na lista suja”, criticou o irmão de Sonia, Marcelo de Jesus.

Desdobramentos e mobilizações

Paralelamente, tramitam ações de responsabilidade civil, criminal e penal, além de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho, que exige indenização por danos morais coletivos e responsabilização pela violação de direitos humanos. A soma das dívidas referentes a verbas trabalhistas e indenizações totaliza R$ 4.915.233,79. 

Organizações da sociedade civil e sindicatos denunciaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), para que o Estado brasileiro seja oficialmente questionado sobre as violações cometidas. 

Em Florianópolis, o grito por justiça também ecoou nas ruas: o caso de Sonia foi tema da mobilização da frente feminista 8M no último 8 de março, reafirmando a urgência da reparação e do enfrentamento ao racismo estrutural e à exploração de mulheres negras.

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  • Paula Guimarães

    Jornalista e co-fundadora do Portal Catarinas. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, pós-graduada...

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