Só com unidade das esquerdas e mobilização do povo será possível vencer a barbárie
Chegar à aula magna de Guilherme Boulos no auditório da reitoria da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na última terça-feira (19), não foi tarefa fácil. Desde às 16h uma fila se formou ao lado de fora e ao final nem todas as pessoas conseguiram entrar no auditório. Pelo menos 400 pessoas lotaram o auditório e outras duas mil se espalharam pelo hall de entrada do prédio e na praça em frente à reitoria. Foi uma resposta de estudantes e apoiadoras/es à palestra do professor de Filosofia e militante do Movimento das/os Trabalhadoras/es Sem Teto (MTST), na capital do estado mais bolsonarista do país, mas também na capital onde o ex-presidenciável pelo PSOL levou mais votos em termos proporcionais.
A mobilização de apoio também buscou sustentar a presença de Boulos e o debate político na universidade ameaçados por grupos de extrema direita da UFSC, apoiadores do Movimento Brasil Livre (MBL). Pelas redes sociais, o grupo convocou seus adeptos a protestar e impedir a atividade realizada pelo Diretório Central dos Estudantes – Luís Travassos, cujo nome homenageia o integrante da União Nacional dos Estudantes (UNE) perseguido durante a ditadura civil-militar. Longe de inviabilizar o evento, o chamado contrário mobilizou ainda mais integrantes de movimentos sociais e estudantes para assistirem à fala pública, aumentando o caráter político daquela presença no campus.
“A gente não tem medo de intimidação de quem quer cercear a democracia por ameaça. A universidade pública é o espaço para debater política, espaço do pensamento crítico e assim precisa ser valorizado. Não podemos aceitar intimidação. Onde querem fazer esse debate sobre os rumos da política do Brasil, no quartel? Manter esse debate depois das ameaças que vieram é essencial. Esse é momento de organizar, essa noite bonita não pode acabar hoje”, disse Boulos em resposta aos opositores.
“Ocupar e resistir”, “Marielle perguntou, eu também vou perguntar: quantas mais têm que morrer para essa guerra acabar”, “Eu não abro mão da liderança que faz ocupação”, “Aqui está o povo sem medo de luta” essas foram algumas das palavras de ordem com as quais Guilherme Boulos foi recebido no auditório da reitoria. Mesmo com as portas do auditório fechadas, era possível ouvir o público gritando do lado de fora: “Boulos vem pra rua!”. O ativista respondeu que faria uma apresentação breve para também se juntar a quem o aguardava do lado de fora. Florianópolis é a primeira capital da turnê nacional que o militante fará em mobilização contra a reforma da previdência.
Cecília Brancher, estudante de relações internacionais, apresentou as pautas do DCE convergentes à escolha do ativista para a aula inaugural do primeiro semestre letivo de 2019. Lembrou que o movimento estudantil tem sido um aliado histórico da classe trabalhadora e hoje tem como pauta central a defesa da universidade pública, gratuita, de qualidade e estatal. “Por uma universidade em que a produção do conhecimento em seus três pilares ensino, pesquisa e extensão seja voltada às demandas sociais”, afirmou.
Cecília chamou o público para ocupar as ruas no próximo 22 em atos contra a reforma de previdência, e 28 contra a lei da mordaça e em defesa da universidade pública. Pelo menos 18 capitais aderiram ao ato contra a reforma de previdência. Em Florianópolis, a manifestação vai ocorrer às 17h, no Terminal Integrado do Centro (Ticen).
Ainda entre as pautas do evento estão a defesa das terras indígenas e quilombolas, a oposição à privatização dos serviços públicos, o combate à escalada de violência contra os movimentos sociais e à agenda bélica dos EUA na América Latina.
“Pela soberania e contra a retirada de direitos. Por um movimento estudantil consequente e combativo, com resistência nas bases e agenda de luta articulada nacionalmente. Resistiremos pela vida das mulheres, em memória de Marielle, mestre Moa, Edson Luís, assassinado na ditadura, pelas lideranças quilombolas, indígenas e dos movimentos sociais, pelas jovens negras e negros assassinados diariamente. Se Bolsonaro tem medo, a gente tem coragem. Não há mais esperança para os de cima, sem que seja baseada em repressão e violência, e pra gente resta toda a esperança do mundo, porque nos queremos vivas e vivos, livres e resistentes”, finalizou a estudante, mencionando o lema do 8 de março em Santa Catarina.
Projetos de país: entre a barbárie e a civilização
Boulos iniciou sua fala saudando o público que veio prestigiá-lo, afirmando que tal mobilização é emblemática da resistência democrática no país. “Essa noite espero que fique marcada como momento importante em que se valorizou a universidade pública contra projetos privatistas e contra a tentativa de mordaça e perseguição do escola sem partido. Onde se valorizou a democracia, debate e defesa dos direitos contra aqueles que querem silenciar, contra aqueles que só querem fazer arminha com a mão, mas não têm disposição para debater o futuro do Brasil”, disse.
O palestrante apresentou os dois projetos políticos que estão em jogo no país e defendeu a construção de caminhos de resistência, por meio da unidade das esquerdas e da mobilização do povo, como desafio fundamental nesse momento histórico. “O que está em jogo é a perspectiva de futuro, a começar pela reforma da previdência, querem fazer com que cada um de nós não tenhamos nenhuma perspectiva de se aposentar, temos que morrer trabalhando. Mas não é só a reforma, é uma lógica, um ideário de sociedade que coloca o privilégio acima do direito, que coloca o cada um por si como princípio de organização social acima de solidariedade”, pontuou.
De acordo com ele, a lógica privatista e meritocrática que busca privatizar todos os serviços públicos e individualizar as injustiças sociais, além de ameaçar a universidade pública também coloca em xeque a segurança pública. “É cada um por si e libera arma, um projeto que destrói qualquer perspectiva de futuro. Não querem discutir segurança como projeto porque não querem enfrentar os verdadeiros gargalos que são o investimento em inteligência e desbaratar milícias, tráfico de armas e munição, que é ter outra lógica que não essa da guerra às drogas, que está exterminando a juventude negra nas periferias e promovendo encarceramento em massa”.
Lógica que se opõe ao acesso democrático e universal à universidade pública e que prevaleceu por anos até que recentemente pobres e negros passaram a ocupar esses espaços, ainda que minimamente. “Governo com um ministro que diz que universidade é para elite intelectual… Se acham que a porta que abriu demais, abriu pouco e tem que ser escancarada, tem que ter mais negros e favelados. Elite intelectual o escambau!”.
“Pra eles têm que prevalecer a lógica de quem tem dinheiro paga, quem tem meritocracia entra. Que meritocracia é essa numa das sociedades mais desiguais do mundo?”, provocou.
Reforma anti-povo
Boulos classificou o projeto de reforma da previdência elaborado por Jair Bolsonaro de “criminoso e covarde”. Explicou que a proposta se constitui basicamente em destruir a previdência pública, favorecendo a contratação de previdência privada, ofertada por bancos àqueles que puderem pagar. Se a reforma for aprovada, trabalhadoras e trabalhadores terão que contribuir por 40 anos para ter acesso ao salário mínimo integral, numa sociedade em que a maior parte vive na informalidade, e só poderão se aposentar aos 65 anos, sendo que a expectativa de vida em várias periferias não chega a 60. Quem não atender a esses critérios, receberá o benefício social de R$ 400 após os 60 anos. “Isso é o que vai falir e não salvar a previdência, porque não haverá como sustentá-la”.
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Atualmente, dois terços da previdência social é financiada por contribuição do trabalhador e empregador na folha de pagamento. “Se o trabalhador deixa de contribuir vai para a capitalização, nela o empresário não contribui, o dinheiro que ia para o INSS vai para o banco. Na previdência pública a empresa tem que contribuir, na privada não paga nada. Se isso for aprovado algum empresário vai contratar trabalhador que opte pelo INSS? Claro que não, vai ser condição para contratação. É uma jogada para dar dinheiro para banco e acabar com perspectiva de futuro”.
Conforme o palestrante, a reforma da previdência é representativa de outros retrocessos defendidos pelo governo federal. “O que está em jogo é a nossa geração, as próximas gerações e conquistas mais básicas de sociedade civilizada. É não ter idosos com receita de remédio pedindo esmola no semáforo, que a universidade seja direito, que briga de trânsito não vire bang bang”.
Ao contextualizar os dois projetos de país, definiu: “esse é momento da decisão, se queremos solidariedade e igualdade, ou privilégios, privatização e cada um por si”.
Autocrítica e mobilização que “reencante”
A convocação dos movimentos estudantis, de mulheres, trabalhadores e negros ao desafio da unidade, foi seguida de uma autocrítica em relação à fragmentação das esquerdas e perda de capacidade de diálogo e mobilização com as bases sociais. “Eles vêm como um trator querendo passar por cima, se a gente tiver cada um num canto, cuidando dos seus problemas, eles vão passar, agora se tivermos juntos como uma muralha, se tivermos maturidade que muitas vezes faltou para a esquerda, se colocarmos o que nos une a frente do que nos separa”.
“Se perdemos a capacidade de mobilização, se deixamos chegar ao ponto de um projeto desastroso ganhasse eleição, foi porque nosso campo se afastou do povo, periferias, das bases. Esse diagnóstico temos que fazer para superar, para voltar e dialogar, acolher e reconstruir relações de solidariedade e afeto. Nossos espaços têm que ser acolhedores e inclusivos, com uma linguagem que atravesse os muros e fale com a maioria do povo”, analisou.
Ao mesmo tempo, Boulos defendeu que divergências entre os campos são saudáveis em uma democracia. “É preciso entender as divergências legítimas que existem entre nós, porque de pensamento único já basta a turma deles. A diversidade entre nós é menor que a diferença que temos com eles. Preservando nossa diversidade sem jogá-la pra baixo do tapete, tendo a maturidade de compreender que é preciso enfrentar alguém que quer destruir nosso futuro”, afirmou.
Ele convocou ainda para uma unidade pautada na defesa da liberdade de Lula, arrancando aplausos especialmente de quem estava do lado de fora. “O desafio de estarmos juntos por democracia, liberdades contra a criminalização dos movimentos que querem nos taxar de terroristas e por uma bandeira que, independente de qualquer juízo político que se faça, é a liberdade de um preso político chamado Luís Inácio Lula da Silva”.
Quanto ao desafio da mobilização, ponderou que embora as redes sociais e debates públicos sejam importantes para a construção da oposição, ela só mostrará sua força nas ruas. “Vamos barrar esse governo se construirmos oposição firme que vá às ruas, mobilize pessoas, mas também mobilize sonhos e projeto de país. Isso passa por retomarmos o trabalho de base. O campo que quer mudança, solidariedade, o campo das maiorias, da diversidade e dos direitos têm que estar junto do povo, com o pé no barro”.
A juventude tem papel decisivo nessa mobilização, lembrando que o movimento estudantil foi um dos grandes polos de resistência durante a ditadura militar no país. “Temos que reeditar essa energia e construir uma grande campanha de mobilização que coloque o bloco na rua e que também apresente uma alternativa que desperte sonhos, que traga novamente a esperança para o centro do tabuleiro político.
Bolsonaro é fruto da desesperança, desilusão e medo. Temos que construir novos caminhos capazes de reencantar nós mesmos para poder reencantar as pessoas, construir sonhos coletivamente”.
Sobre a agenda da oposição, afirmou que se trata de um enfrentamento ao governo e não ao país, como argumentam bolsonaristas. “Oposição ao Brasil é quem vai aos EUA vender a base de Alcântara. Oposição ao país é quem ataca direitos mais básicos do nosso povo. Somos oposição porque defendemos o povo brasileiro”.
A força dos movimentos sociais
O ativista deixou uma mensagem de esperança ao relatar a participação, no último domingo, no evento de entrega das chaves para 910 famílias do movimento MTST em Santo André, no ABC paulista, no condomínio Novo Pinheiro, nome em homenagem à ocupação Pinheirinho de São José dos Campos, que sofreu despejo da polícia em 2012. “Pessoas que estavam há sete anos na luta e passaram por todo tipo de humilhação. A primeira casa de um senhor de 70 anos.
É cada história de esperança, tenho a convicção de que não temos direito de desistir. Por mais frio que seja atravessar, o inverno sempre anuncia a primavera. Vamos construir essa primavera, vamos resistir e seguir lutando”.
À promessa de Bolsonaro de acabar com os ativismos e especialmente o MTST, Boulos provocou dizendo que para que isso aconteça basta o Estado cumprir a Constituição e garantir a moradia para sete milhões de famílias sem teto no país. “Ele acha que vai intimidar chamando a gente de terrorista, fazendo lei, botando polícia. Quanto menor a política pública de habitação mais vai ter ocupação. Vai acontecer porque o povo não tem outra alternativa, o povo luta por direitos”.
A incoerência do governo Bolsonaro que se coloca como nova política, ao mesmo tempo em que reproduz práticas antigas, é o que desmoraliza seu projeto de país e pode levar à sua queda. “Não demorou 60 dias para que o discurso na nova política virasse um laranjal vergonhoso das práticas mais velhas da política brasileira. Aqueles que diziam que garantiria segurança pública, acabaria a violência, foram desmarcados como bando de milicianos, associados ao que tem de pior que são as milícias do Rio, milícias que provavelmente mataram Marielle e exploram todos os dias milhões de moradores de comunidades carentes com extorsão. Milícias que estão bem perto do planalto, se é que não estão alojadas lá”.
A agenda integrou também uma homenagem à Marielle Franco, horas antes, na Câmara Municipal de Vereadores, promovida pelos psolistas Afrânio Boppré e Marcos José de Abreu. O ato foi prestigiado por 21 vereadores e cerca de 100 integrantes de movimentos sociais. “É preciso saber quem encomendou esse crime e a quem serviu o assassinato de Marielle. As milícias servem a interesses econômicos e políticos e é necessário desbaratar essa máfia incrustada no Estado. Não se trata de vingança, a justiça é uma justiça para evitar novos crimes, para que não fique no país a imagem de um salvo conduto, de que alguém pode fazer isso com uma adversária política, matá-la numa das maiores cidades do país e ficar por isso. O que está em jogo é justiça para Marielle, mas não só, é para que não se repita, é para que as milhões de Marielles possam saber que devem ser estimuladas a ousar e ocupar lugar na política, devem ser estimuladas a soltar sua voz e que não vão ser tratadas na bala”, disse durante a sessão.
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Após a execução do hino de Florianópolis, o “Rancho de amor à ilha”, Maria Lourdes Mina do Movimento Negro Unificado (MNU) protestou contra a ausência de pessoas negras e a forma como as mulheres foram retratadas na imagem reproduzida no telão enquanto tocava a música. A imagem escolhida para ilustrar o trecho “ilha da moça faceira” trazia uma mulher de biquíni saindo do mar. “Estamos cansadas de vir aqui falar das pautas e visibilidade dos povos quilombolas, mas não somos ouvidas”, afirmou.
Atualizada às 11h08 de 21 de março.