A iniciativa e a organização de um grupo de professoras dispostas a pensar e sentir suas comunidades escolares, foi motivada pelos diálogos constantes sobre os sentidos da escola e o papel do/a professor/a. De que forma nosso trabalho atravessa nossas vidas, e qual dimensão de potência transformadora que ser professor/a possui em uma sociedade desigual como a brasileira.

Nas conversas, intermediadas pelos aplicativos de mensagens devido ao isolamento social necessário, surgiram preocupações com o estudante A, que durante as aulas presenciais já não frequentava regularmente a escola por estar frequentemente adoecido; ou a estudante B, que estava grávida e mora com a mãe e mais três irmãos. Ainda o estudante C, que vive com os avós idosos responsáveis pelo sustento familiar com um pequeno valor de aposentadoria ou também a estudante D, que já apresenta risco de abandono escolar, pois precisa contribuir com o precário orçamento doméstico, além de desejar ser reconhecida como apta a participar das comunidades juvenis por meio do acesso a instrumentos tecnológicos.

Todas essas e outras realidades atravessam a escola não permitindo anular as experiências que envolvem os/as estudantes em suas comunidades, fora do espaço escolar. É apenas conhecendo e reconhecendo a sua comunidade que uma educação integral pode ser praticada, entrelaçada no cotidiano da escola, no processo de ensino/aprendizagem que extrapola os muros da instituição de ensino e adquirem outras dimensões capazes de intervir na vida social.

Neste sentido, questionamos como ignorar as fragilidades, as violências, as injustiças que já eram conhecidas antes da pandemia e sem dúvida se agravaram? De que forma em nossas casas, podemos continuar acessando água, sabão, álcool em gel, banhos diários, a individualidade do “meu” quarto, os alimentos elementares, ou mesmo as comidas como “besteirinhas” diárias, sem nos remeter às realidades de nossos estudantes? Estas inquietações nos levaram não apenas a dialogar, mas também a agir.

A partir do dia 02 de abril de 2020 – duas semanas após iniciar em Blumenau o processo de isolamento social provocado pela emergência do contágio pelo novo coronavírus – as reflexões se materializaram em ações. No primeiro momento definimos que tipo de movimento seria realizado e de que forma alcançaríamos outros/as colaboradores/as interessados/as em contribuir com alimentos e materiais de higiene para famílias em situação de vulnerabilidade social das comunidades escolares onde cada uma das quatro professoras envolvidas trabalha.

Como defensoras de uma escola cidadã, nossa primeira preocupação direcionou-se aos estudantes e as comunidades escolares das quais pertencemos, aliás, a noção de pertencimento é primordial, pois as escolas assumem em nossas vidas dimensão de espaço relacional, muito além de um vínculo empregatício.

Oficialmente o movimento de arrecadação foi lançado publicamente no dia 04 de abril de 2020 e compartilhado com grupos de amigos, trabalho, estudo, pessoas conhecidas, familiares, que imediatamente acolheram a iniciativa e passaram a contribuir de várias formas, especialmente outros/as professores/as que também se engajaram na arrecadação de donativos. Posteriormente famílias de outras comunidades escolares começaram a serem indicadas devido à situação de fragilidade econômica, o que ampliou nosso espaço geográfico e emocional de atuação.

Associada a entrega de alimentos e materiais de higiene, estabelecemos parcerias que adicionaram álcool em gel e máscaras de tecido às doações, além da produção caseira de sabão artesanal. A fabricação das barras de sabão inspirou a ideia do movimento Poesias com Sabão, interessado em pensar não apenas o cuidado com a higiene, mas também em inspirar e encorajar as pessoas perante esse momento difícil e repleto de incertezas. As poesias foram selecionadas e discutidas pelo grupo de professoras, sendo escolhidas as que melhor pudessem ser compreendidas e sentidas pelo diverso público que seria atendido.

Em comum, as famílias acolhidas e atendidas tinham a situação de vulnerabilidade estrutural ou devido a conjuntura do momento, além de todas estarem localizadas em lugares fora do circuito do “Vale Europeu” como o trajeto do chopp, das danças e gastronomias típicas, e do fenótipo “europeu” valorizado por muitos/as como ideal.

Esse projeto particular com dimensão pública idealizado e conduzido por professoras percorreu e ocupou bairros, ruas, becos, topos dos morros, longas escadarias que subiam ou desciam, lugares de chão batido, com esgoto a céu aberto, habitações irregulares e certamente inseguras para a vida humana e preservação ambiental, muitas vezes com endereços não reconhecidos pelos sistemas tecnológicos de localização. Alcançou as casas dos fundos, sem cercas que definissem o lugar do brincar das crianças, e encontramos muitas crianças, além dos jovens. Esses dividem um pequeno espaço de moradia com os vários familiares e seu tempo entre os estudos e o cuidados domésticos. Também dividem as preocupações sobre os poucos recursos capazes de alimentar a família: “Já rodei pela rua professora, mas ninguém tinha nada”. Endereços invisibilizados não apenas pelos contornos geográficos, mas principalmente pelo descaso do poder público e social. Moradias que existem, e resistem em ambientes inóspitos.

Nossa ação, com o deslocamento e outros gastos custeados pelos nossos próprios recursos financeiros, usando nossos automóveis e força de trabalho, alcançou todas as famílias indicadas, tendo sido distribuídos mais de 130 kits (cesta básica + produtos de higiene + álcool em gel + máscaras + algumas roupas, calçados e cobertas). Temos conhecimento de que não fomos as únicas professoras a se envolverem ou liderarem movimentos de arrecadações e doações. Muitas outras e outros professores assumiram esse trabalho, se fizeram presentes, mesmo estando ausentes do espaço físico escolar.

Mesmo após algumas tentativas frustradas de localização, voltas em círculos, acessos quase imperceptíveis, encontramos famílias nos porões, em ruas que com um olhar pouco atento, poderiam ser consideradas áreas livres de pobreza. Fomos ao encontro de pessoas em endereços específicos e encontramos, mas também fomos encontradas por pessoas que reconheceram a chance de pedir ajuda, contar sobre as doenças que enfrentavam, suas dificuldades, medos, denunciar negligências do poder público. Encontramos mães, avós, irmãos, pais, netos, filhos e filhas marcados pela indiferença e incredulitude. Nos deparamos com pessoas agradecidas, temerosas pelo futuro, preocupadas e solidárias com outros que pudessem necessitar mais.

Foram muitos olhares de surpresa/felicidade ao chegarmos com o auxílio, ou admiração pela quantidade de donativos, pela rapidez. Gente que em busca de ajuda, aceitaria se sujeitar ao assistencialismo midiático, que nos tempos modernos também servem para alimentar a popularidade quantificada pelos likes nas redes sociais: “vocês não querem tirar uma foto? Eu posso aparecer.”

Há quem diga que como professores/as de escolas públicas estamos tranquilos/as em nossas casas sem querer “aparecer” na escola porque continuamos a receber salários medíocres comparados com diversas outras profissões e funções, incluindo as de políticos, que nada ou pouco fazem para encontrar ou serem encontrados pelas famílias em situações de vulnerabilidade social e emocional.

Cabe destacar que podemos disponibilizar a lista com todas as pessoas atendidas para ser acessada por qualquer indivíduo que deseje encontrar ou ser encontrado, inclusive aqueles que corroboram com a percepção de “acomodação dos/as professores de instituições públicas”.

De forma urgente, já passou a hora da sociedade brasileira compreender que como professores/as que decidiram se comprometer com a educação, a escola está longe de ser apenas uma estrutura física, cercada por muros e grades que, por vezes, desconfiguram um tempo e espaço que deveria construir cidadãos em busca da liberdade e autonomia. Espaço que precisa receber recursos destinados a materializar condições de estímulo à sabedoria com sensibilidade. Entretanto, a escola vai além porque tem dimensão relacional, capaz de articular desejos, saberes, afetos que não se restringem ao espaço físico, transborda os muros e invade a vida de todos/as que compartilham experiências na cultura escolar.

Para nós, professoras, é pertinente repetir: a escola nos atravessa e nos acompanha estando dentro ou fora de seus muros. Seguimos em busca do encontro, disponíveis para sermos encontradas.

Anne Caroline Peixer Abreu Neves, Professora de História da rede pública de ensino estadual/SC
Érica Fernanda Monteiro, Professora de Sociologia da rede pública de ensino estadual/SC
Talita Ventura, Professora de Língua Portuguesa da rede pública de ensino municipal/BNU
Teresinha Aparecida Cardoso, Professora de Sociologia da rede pública de ensino estadual/SC

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