Ser negra na Argentina: desafios da luta antirracista no país hermano foi o tema do terceiro episódio do Pulso Latino, conformado por ativistas brasileirxs que moram no México e na Argentina. Na contramão das manobras do governo e das grandes mídias em (des)informar a população, Pulso Latino aposta na narrativa engajada e independente acerca dos dilemas atuais do cenário brasileiro e da América Latina. Corrobora para a construção da análise crítica e integrada a América Latina pelas distintas vozes e grupos sociais.

O episódio 3 contou com a participação especial da antropóloga social e feminista brasileira Denise Brazão. Com sua fala cativante, compartilhou sua trajetória militante e acadêmica, sendo a primeira pessoa negra a receber um título de mestrado na Universidad de Buenos Aires (UBA). Desenvolveu sua pesquisa sobre os movimentos sociais de afrodescendentes no país e participa na Comissão Organizadora 8 de Noviembre, organização de afroargentinas, afrodescendentes e africanos(as) que residem na Argentina.

Em diálogo harmonioso com a jornalista Fernanda Paixão, uma das podcasters do Pulso Latino e integrante do Coletivo Passarinho, em Buenos Aires, debateram entorno das marcas do racismo herdado desde período colonial e seu significado simbólico e estrutural que encarna as estruturas da sociedade argentina na contemporaneidade.

A questão racial passa pela negação histórica do negro na Argentina e que reverbera até hoje em um apagamento da participação política, econômica e social das afroargentinas que o movimento antirracista luta por reverter. Denise aponta para a responsabilidade do Estado argentino em ocultar a população negra, uma vez que os grupos étnicos raciais, indígenas e negros, foram contabilizados até o ano 1887. Só após 100 anos esses grupos voltaram a ser incorporados no censo demográfico: os povos originários em 1994 e a população afroargentina e/ou afrodescendente em 2010. O que de fato, tem obstaculizado o avanço de políticas públicas para os afrodescendentes na Argentina, já que sua existência permaneceu ocultada e anulada.

A antropóloga social problematiza o debate racial ao relembrar a frase pronunciada na década de 90 – pelo presidente da Argentina, naquele momento, Carlos Menem, numa visita aos Estados Unidos, em que ele afirma que não existiam negros no país e, além da fala perniciosa, ainda concluí: “Esse problema quem tem é o Brasil”.

De lá para cá o movimento afroargentino tem aglutinado força política e social para desconstruir os mitos raciais cultural e historicamente sedimentados nessa sociedade. É bastante comum ouvir das argentinas/os argumentos condizentes com a negação ao negro, os mitos são: “de que a febre amarela matou toda a população negra” ou de que “todos os negros argentinos morreram na guerra”, nos conta Denise. Inclusive, ela já se deparou com a tese de que “os negros foram extintos” em livros didáticos utilizados nas escolas.

Denise reflexiona a fundo sobre os dilemas raciais cotidianamente naturalizados na Argentina e enfrentados pelo movimento antirracista. Para ela, é muito cruel, além de problemática, a caracterização feita da pessoa negra, um visão externa e comprometida, dada a negação histórica, mencionada anteriormente. Na voz de Denise: “quando o negro é lembrado em datas comemorativas que reivindicam o lugar do negro nessa história, a representação que é feita repercute em sérios problemas para a autopercepção da pessoa negra, já que passa pelo o olhar do outro, ou seja, a representação do negro passa pelo imaginário de branquitude”.

“O negro argentino, para o Estado, está parado no tempo: é o negro que vende vassoura e empanada na rua”, afirma Denise, resgatando o exemplo da representação feita nas escolas na data alusiva como sendo o Dia do Negro, no mês de maio.

A prática de blackface que se presencia nessa “celebração”, é questionada pela antropóloga social: uma vez que esse corpo negro “não existe”, em razão da negação histórica, a construção social da negritude é marcada pelos estereótipos racistas. Dessa forma, “se criam datas e se remonta o negro do século XIX, o negro contemporâneo não tá existindo aí”.

A jornalista Fernanda, ao falar do tema, traz à memória o surgimento da prática blackface, que nasce na década de 1930 vinculada ao teatro e ao humor, sob a lógica de espetacularização dos corpos negros. Apesar das mudanças e avanços promovidos pelo ativismo negro em combater tais práticas racistas, na Argentina ainda são muito presentes.

O imaginário impositivo pela sociedade de maioria branca tem repercutido posição subalterna e incômoda na sociedade. “É muito pesada a construção de negritude do branco. Por isso, ele não aceita o negro médico, o negro na universidade. O lugar que se ultraja ao negro é do bobo, do palhaço, da negra prostituta, do ladrão”.  “Quando aparece um personagem negro na televisão argentina, se fala que essa pessoa é brasileira, colombiana ou cubana”, relata Denise.

Fernanda chama a atenção para a afetação das subjetividades do povo negro, a partir dos exemplos colocados por Denise. Problematiza que o lugar do diferente passa pela exotização dos corpos racializados. Para ela, é bastante complicado de explicar ao outro que o elogio “você é exótica!” marca a diferença entre o corpo branco e o corpo negro. O que tem demonstrado que o debate racial está muito atrasado na Argentina.

Denise Brazão também nos compartilhou sua trajetória acadêmica, lembrando do período – recém concluído – do mestrado que realizou na UBA. Nos fala das dificuldades que encontrou, sendo a única pessoa negra no campus da universidade. “Todas às vezes que o negro está nesse espaço tem que provar o tempo todo que sabe”.

Reflete sobre a experiência do isolamento de que padeceu. “Pensei que fosse encontrar outros corpos parecido com o meu. Foram quase cinco anos sozinha, como negra, naquela faculdade. Quando falo das questões que só a pessoa negra passa, as pessoas riam, achavam que era exagero ou que aquilo não acontecia. Eu tive que desmistificar muita coisa. A pessoa negra ocupar esse lugar é algo muito significativo, já que a universidade é um espaço de poder, de disputa”, constata a antropóloga.

Na continuação do bate-papo, elas abordarem os temas feminismos e interseccionalidade. Denise demonstrou entusiasmo em ter presenciado a Marea Verde – movimento feminista que luta pela legalização do aborto e que ganhou notoriedade com o massivo levante de pañuelos verdes nas ruas argentinas, no último ano. Em defesa da descriminalização e legalização do aborto, Denise vincula a pauta feminista a um tema de saúde pública, questão que deveria estar presente no almoço das famílias, e sustenta que o debate deve ser laico, sem interferência religiosa.

Da sua aproximação ao feminismo na Argentina, pondera acerca do corte interseccional, necessário para a ampliação da luta feminista no continente. Faz a crítica ao feminismo branco, historicamente hegemônico, que presencia nessa geração das feministas argentinas. Relata sua experiência junto ao feminismo: “a questão étnico e racial, ora convoca, mas na prática não funciona, não existe essa autopercepção e percepção do outro, ou outros”.

Para além dos feminismos contemporâneos, a antropóloga ressalta a necessidade de que qualquer luta social e política deve passar pela interseccionalidade, ou seja, passa pela ampla compreensão das opressões de classe, gênero e raça, devendo estar situados no centro do debate político dos movimentos sociais. Em sua caminhada de militância no país hermano junto ao movimento afroargentino, no lugar de fala de mulher negra e imigrante, acredita ter deixado frutos para as gerações futuras. “São anos de lutas e dificuldades, mas também de alegrias e conquistas. Aprendi muito com a comunidade negra daqui, mudei minha percepção de negritude. A gente precisa estar mais misturado, ver com naturalidade outros corpos”.

A conversa na íntegra pode ser escutada diretamente em:

Spotify: https://open.spotify.com/show/2vgqsyHGRlpYPSnFRCx7sY

iTunes: https://apple.co/2Y5A8cU

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Radio Public: https://radiopublic.com/pulso-latino-WoBEV4

Introdução e música produzida e cedida pelo cantor e compositor Luke MacRoberts I Design Arte de Juliano Mazzuchini.

Não deixem de conferir os episódios anteriores de Pulso Latino:

#1 I Corrupção na América Latina: com quantos Moros se recoloniza todo uma região?

#2 I Migrar não é crime: odisseia a caminho dos EUA

#4 I Balanço do Progressismo na América Latina

#5 I Argentina na encruzilhada: movimentos políticos e eleições de 2019

Saludos Latinos!!

*Nicole é sssistente Social, feminista, doutoranda em Sociologia no Instituto de Ciências Sociais e Humanidades, na Benemérita Universidad Autónoma de Puebla (BUAP). Participa colaborativamente do Portal nos temas de gênero, feminismos e participação social na América Latina.

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  • Nicole Ballesteros

    Nicole é feminista, latino-americana, mulher cis e migrante. Formada em Serviço Social pela Universidade Federal de Sant...

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