De Santa Maria da Vitória, interior da Bahia, com mais de 70 anos de vida, Nina compartilha suas experiências por meio da educação popular
Do Nordeste do Brasil, o “Mulheres Semeando a Vida” traz hoje um pouco da realidade de Maria Madalena dos Santos, conhecida como Nina. Nascida em 22 de julho de 1949, na comunidade quilombola Cafundó dos Crioulos, Nina é agricultora, poetisa, educadora popular e liderança comunitária. Atualmente, ela mora em uma comunidade chamada Olho D’Água do Barro, no município de Santa Maria da Vitória, no Oeste da Bahia.
Defensora da “terapia do riso”, Nina nos presenteou durante a entrevista com declamação de poesias, trechos de cantos e contação de histórias – tudo isso enquanto mascava continuamente raiz de gengibre para melhorar uma “sensibilidade na região da garganta”.
“O Movimento para mim é vida, porque aqui dentro do Movimento que eu aprendo. A gente faz a terapia da risada. Contamos histórias para dar risadas. Sorrir é muito bom, tem que sorrir também. Às vezes a companheira está na maior dificuldade, eu passo o áudio para ela, só para ouvir ela sorrindo. O Movimento é muito importante. A gente aprende um jeito novo de caminhar”, conta.
O único momento em que Nina expressou pesar foi ao narrar o conflito agrário envolvendo Comunidades Tradicionais do município de Santa Maria da Vitória e grileiros. “A mulher desse grileiro é advogada e ela comprou as terras de maneira disfarçada. No domingo ela ia nas fazendas, levava o cartório e pegava assinatura do povo. E o povo ia vendendo as terras sem saber, uma história muito longa, 30, 40 anos de conflito por terra”, explica.
De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a comunidade vivia em harmonia com o Cerrado (também chamado de Gerais) antes do conflito agrário, sendo o ambiente do território base de um complexo sistema cultural da comunidade.
Nina também reforçou a importância das sementes crioulas e da iniciativa de organização das mulheres na luta por direitos, como o acesso a documentação; da necessária educação ambiental e popular para que as crianças valorizem a natureza; e dos desafios para ter segurança alimentar numa região marcada pela falta de água.
Durante todo o mês de agosto, o Portal Catarinas em parceria com o Prosa, grupo de pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), promove a campanha “Mulheres Semeando a Vida” que tem como protagonistas seis mulheres, duas indígenas e quatro camponesas, que no presente estão construindo o Bem Viver, através de práticas agroecológicas.
CONFIRA A ENTREVISTA:
Portal Catarinas: Nina, pode nos falar um pouco sobre você e sua trajetória de militância?
Nina: Meu nome é Maria Madalena dos Santos, conhecida como Nina. Nasci no dia 22 de julho de 1949. Daqui um mês faço uns 70 e lá quantos. Nasci numa comunidade crioula, Cafundó dos Crioulos, remanescente do quilombo, e, hoje, é reconhecida como quilombola. Tenho cinco filhos, duas mulheres e três homens. Sou viúva. Sempre trabalhei na roça, produzindo, cozinhando, plantando desde criança. Nasci na roça. Nasci no Cafundó. Fui para a cidade estudar, voltei para Cafundó com 17 anos. Mesmo não conseguindo o 2º grau completo, me tornei professora leiga, porque no quilombo nunca teve uma escola municipal. Então, lecionei nove anos no Cafundó dos Crioulos. Depois me casei e passei a morar na comunidade Olho D’Água do Barro. Na região, comecei o trabalho comunitário e eu tenho que me deslocar para a fazenda Porco Branco para fazê-lo. No Porco Branco me reúno com as companheiras do Movimento de Mulheres e da Associação de Moradores. Fui secretária por muitos anos da associação, agora estou sendo presidente. A associação de moradores representa as comunidades de Porco Branco, Olho D’Água do Barro, Barreiro Preto, Brejo da Gameleira. E a gente precisa estar associada, precisa estar em grupo porque estamos numa área de conflito, área de Gerais. Temos que estar organizadas. Eu comecei bem cedo na militância, participei da criação do Movimento aqui. E o Movimento tem mais de 40 anos no nosso município. Então, tem mais de 50 anos que estou no Movimento, mas não sei dizer ao certo. Nosso movimento aqui se chama Movimento de Mulheres Unidas na Caminhada.
Você se considera quilombola?
Eu sou quilombola. Antes de a comunidade ser reconhecida como quilombo, eu já falava: eu sou quilombo, sou da comunidade quilombola. E me diziam que eu não podia dizer, porque não era registrado, não era reconhecido. A gente trabalhou, fizemos uma luta. O meu filho caçula se chama Paulo Quilombo e foi o único que não nasceu no Cafundó, porque os outros nasceram no Cafundó. O meu sobrinho, que a mãe nasceu no Cafundó, é Luiz Ogum, que quer dizer negro. Nós somos de três no Cafundó: índio, preto e branco.
Saiba mais: Muitas lutas vieram das indígenas, negras e camponesas
Nina, você falou que hoje vive num território de conflito, poderia explicar mais?
Sim, nós estamos numa grande dificuldade, porque a gente mora numa área de transição. Quer dizer, é Gerais. Muitas terras que tínhamos o povo não valorizava, porque eram terras de Gerais. E aí, entraram os grileiros. Usaram essas terras. E começaram os conflitos sérios. Já perdemos muita gente… É uma grande luta. Depois do Lula, a área foi dividida em territórios e fizemos a regulamentação das terras. Fizemos campanha para que as terras fossem registradas no nome das mulheres.
O primeiro título que a gente recebeu, da CDA (Coordenação de Desenvolvimento Agrário), foi em nome de uma mulher, uma senhora. Nós lutamos e foi a primeira mulher da minha comunidade e do meu grupo que recebeu o título da terra. Outras mulheres receberam depois.
Na hora que foi registrar, foi medir a terra para sair o título, o grileiro através dos pistoleiros colocou o pessoal da CDA para correr. Aí, entrou a CPT (Comissão Pastoral da Terra) e outros movimentos sociais. Uma luta cerrada. E nosso povo ainda foi muito enganado…
Como isso ocorreu?
A mulher desse grileiro é advogada e ela comprou as terras de maneira disfarçada. No domingo ela ia nas fazendas, levava o cartório e pegava a assinatura do povo. E o povo ia vendendo as terras sem saber, uma história muito longa, 30, 40 anos de conflito por terra. A romaria este ano da terra é: “água, terra, trabalho”. A área dos Gerais, do nosso município, é onde tem mais água. E o pessoal está plantando soja, eucalipto. A água é um grande problema para nós….
Então, vocês passaram por um conflito histórico para ter a posse da terra a qual passou também por um processo de reforma agrária?
As terras são nossas, são das famílias. Eles (grileiros) entraram em nossas terras. As terras são nossas e a gente continua dizendo. Minha filha era pequena quando entraram na área. E eles entraram de bonzinho, de mansinho e tomaram conta das terras. O nosso povo é aquele povo que quando chega o doutor, a doutora na casa ia logo matar galinha, fazer biscoito escaldado, cafezinho preto, enfim… A CPT que estava acompanhando, que era uma de nossas dirigentes, prenderam, levaram a menina da CPT presa, a presidente do sindicato e minha filha foi junto … (Nina se emociona, começa a chorar e pede para mudar o assunto).
Nina, a senhora participa do Movimento de Mulheres Camponesas. Você acredita que exista algum tipo de alimentação ideal para a sociedade?
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Sim, o alimento orgânico. O feijão plantado, sem veneno. Para nós, o alimento serve para dar mais vida e a vida é o alimento que vem de terras sem agrotóxicos. Isso que a gente tenta fazer. A gente tem uma horta perto de casa e nós educamos o povo para valorizar. Hoje, o pessoal come feijão crioulo, salada.
Você tem um quintal produtivo ou uma horta coletiva?
Eu falo que nossa horta é coletiva, porque o que se planta é para todos. Já fizemos uma horta coletiva, mas não temos hoje, porque nós moramos numa área que tem dificuldade com a água. A gente colhe onde molha, onde tem os canteiros.
Nosso quintal produtivo é irrigado com água de poço artesiano que dá pouca água para muita gente. Se todo mundo for plantar, falta água. Então, um ano uma planta, outro ano outra planta. Mas a gente tem os quintais produtivos aqui também, as hortas. E vamos revezando o cultivo.
Temos também a farmácia viva, que é aquela que você vai buscar o alecrim, todos os remédios que usamos aqui. Que ao mesmo tempo é alimento e remédio, uma “meizininha” (remédio caseiro), coisa de preta, como minha avó falava muito.
Você falou que é um território com dificuldade de água. Não dá para plantar e tem que revezar para as pessoas terem água e comida. Por que aí é difícil a água? O que acontece na região?
Aqui é uma região onde tinha muita água, como Cafundó do Crioulos onde nasci, e foi tudo desmatado. Mas mesmo lá em Cafundó a água era dividida assim: de quinze em quinze dias chegava água para irrigar as terras, plantar feijão, molhar as canas. Aqui é um lugar que chove pouco e chove de vez. E o pessoal não colhia as águas da chuva. Quando a gente começou a campanha da cisterna, água para todos, foi uma luta. Aí que o pessoal começou a colher a água. E hoje já tem aquelas cisternas de 16 mil litros para consumo humano. As cisternas de produção em algumas regiões vieram e outras não. Por ser um lugar que tem muita água e muito rio, nós não somos considerados semiáridos, mas os rios ficam longe da gente.
Onde moro fica a 18 km do rio e a nossa comunidade não tem água do rio. É difícil, muito difícil. Por isso a luta pelos Gerais, para recuperar a esponja da água, o pote de água para que nossas águas voltem a nascer.
Aqui onde moro, Olho D’Água do Barro, hoje a nascente está secando, não está mais minando água. Então, a gente tem trabalhado com o povo: não desmatar, não pode cortar gameleira, não pode cortar o louro. Meus filhos estão fazendo novo plantio: do ingá, das plantas que dão água. Poucos trabalham lá na terra, porque vieram estudar. Depois não podiam ficar aqui na cidade sem um emprego, aí entraram no trabalho.
Nina, então você está contando para gente que vocês realizam ações para resolver o problema da água. Uma delas é reflorestamento. Tem como falar quais plantas estão reflorestando? São plantas nativas da região?
O buriti, conhece? Então, na Olho d’Água tem o buriti e estamos fazendo campanha. O buriti, o ingá, o louro, e outras plantas. Aqui a gente tem um lugar por nome Mutum que é uma coisa mais linda eu conhecia no meu tempo de infância, lá tinha buriti. E o fogo queimou. E a raiz era quase três metros para o fundo. Como as águas não iam secar? Era nossa cabeceira. Se você anda vai atravessar os brejos, é como se estivesse numa cama de mola as raízes. Nós levamos o pessoal para ali, fizemos reunião ali para o pessoal não desmatar.
Conheça as práticas de reflorestamento do povo Mbyá-Guarani, do Sul do Brasil, no segundo episódio do nosso podcast.
O que significa a semente crioula para você?
Ela traz ancestralidade. A semente crioula é vida. É dar continuidade. E a gente trabalha a semente fazendo trabalho educativo, oficinas. Tem vídeos das companheiras mostrando suas sementes.
Saiba mais mais sobre as sementes crioulas, no primeiro episódio do nosso podcast.
Nina, você se considera uma guardiã das sementes?
Eu sou guardiã das sementes, por isso minha casa em todo lugar tem uma semente. Quando eu vejo uma semente já guardo. A gente fez um compromisso com um companheiro da CPT num encontro de áreas de nunca jogar uma semente fora, sempre a semente na terra. “Põe a semente na terra, não será em vão” (cantando). Para aquela semente não ser para gente, mas para o futuro. Eu trabalho com oficina de criança e, assim, a gente trabalha com argila e com as sementes. Então, eu sou guardiã das sementes! A gente troca mudas e sementes. E distribuímos nos encontros. Fazemos saquinhos com a semente, o saquinho da multimistura. Coloca todas as sementes naqueles saquinhos para fazer a troca. E troca coco, tucum, para fazer mudas.
Nina, você contou pra gente que o 1º título de terra foi para uma mulher. Vocês têm mais ações para valorizar o papel da mulher?
Sim, a gente já fez muitas ações. Uma das primeiras foi a campanha da documentação, porque antes a mulher não tinha terra. No INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) não estava no nome dela. No estado do nordeste, fomos os primeiros a fazer o bloco de notas da produtora rural. Foi uma luta nossa, do movimento de mulheres. Mas criamos o bloco depois de muita luta pela campanha de documentação, que foi por onde começamos, porque as mulheres tiraram seus documentos e a partir daí podiam lutar para que os documentos no INCRA viessem no nome dela, no nome da mulher. Para que ela fosse a dona da terra. Além disso, para ter salário-maternidade, aposentadoria, auxílio-doença também tinha que ter os documentos.
Qual a importância do Movimento de Mulheres na sua vida?
Aqui é minha vida. O Movimento para mim é vida, porque aqui dentro do movimento que eu aprendo. A gente faz a terapia da risada. Contamos histórias para dar risadas. Sorrir é muito bom, tem que sorrir também. Às vezes a companheira está na maior dificuldade, eu passo o áudio para ela, só para ouvir ela sorrindo. O movimento é muito importante. A gente aprende um jeito novo de caminhar.
O que você sonha para o futuro?
Eu tenho uma netinha e ela fala: vó, vamos para a fazenda? Eu digo, vamos, vamos plantar. Para que no futuro, vocês tenham vida. A gente chama essa hortinha de fazenda. Ela me ajuda a molhar as plantas, ela vai fazer quatro anos.
E eu já digo para ela que na horta, na fazenda, está o futuro. E ela irriga as plantas. O que a gente planta não é para gente. Hoje, eu estou lá regando a planta. Regando o buriti e é para o futuro. Eu estou pensando nos meus netos. É na geração do futuro que estou pensando.
“Mulheres Semeando a Vida” faz parte do projeto Narrando a Utopia, uma iniciativa de Puentes para imaginar um futuro feminista, interseccional e inspirador.
Agradecemos a consultoria das mulheres indígenas e camponesas da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) e do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC).Últimas
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