Em entrevista, Geovana Castelo Branco fala sobre agroecologia, segurança alimentar, reflorestamento, os desafios frente ao governo atual e o futuro feminista que sonha

Do Norte do Brasil, o “Mulheres Semeando a Vida” traz hoje um pouco da realidade de Geovana Castelo Branco, 50 anos, moradora do assentamento da Reforma Agrária Walter Arce, no município de Bujari, perto de Rio Branco, no Acre. Ela é coordenadora estadual do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e presidenta do Conselho Estadual de Direitos das Mulheres (CEDIM) no estado. 

Em meio à Floresta Amazônica, as mulheres estão plantando hoje um futuro de esperança, com justiça social, ambiental e de gênero. Unidas em uma rede de respeito, solidariedade e justiça encontraram o afeto por meio dos saberes relacionados à natureza e às práticas agroecológicas. No coletivo, elas criam ações de economia feminista camponesa e popular, como as feiras agroecológicas, para colaborar com a autonomia econômica de mulheres vítimas de violência doméstica e, assim, criarem formas delas romperem o ciclo de violências.

“Nós começamos a pensar num projeto para que a gente pudesse libertá-las desse ciclo e uma das coisas que mais pesava era a questão econômica, como em todo o resto do país. Mas nós fortalecemos as mulheres com a produção, para que elas produzissem mais e tirassem dos excedentes o suficiente para que elas pudessem comercializar nas feiras que nós construímos”, conta Geovana. 

Outro destaque importante é a segurança alimentar conquistada pela comunidade através da agroecologia, num momento em que o Brasil volta ao mapa da fome. “A diversidade aqui é maior, por causa da agroecologia que nos dá essa flexibilidade da gente no mesmo espaço produzir várias coisas, ter vários cultivos. (…) Tanto é que agora na pandemia a gente viu que a nossa preocupação não era de passar fome, porque tinha muita produção, nossa preocupação era como escoar na nossa feira”, afirma Geovana. 

Durante todo o mês de agosto, o Portal Catarinas em parceria com o Prosa, grupo de pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), está promovendo a campanha “Mulheres Semeando a Vida” que tem como protagonistas seis mulheres, duas indígenas e quatro camponesas, que no presente estão construindo o Bem Viver, através de práticas agroecológicas. 

Confira a entrevista: 

CATARINAS – Você poderia contar para a gente como foi a sua inserção no Movimento de Mulheres Camponesas? Como é esse contexto no território que você vive?

Geovana Castelo Branco: Eu moro no Acre desde criança e desde essa época conheço a luta dos movimentos sociais, porque meu bisavô era seringalista. Então, quando nós ficávamos de férias, nós costumávamos ir para o seringal, passávamos os três meses de férias aqui com o nosso bisavô. Nessa época era seringal, era varadouro, era muito difícil a gente passava semanas para conseguir chegar na cidade. Eu conheci o MMC através da minha irmã, a Naza (Nazaré), que era militante do MMC. Eu a via participando das lutas pela autonomia da mulher, pela aposentadoria rural, pelo reconhecimento da camponesa como trabalhadora rural, pela licença maternidade, todas as nossas lutas. Eu presenciei ela indo muitas vezes para Brasília, muitas vezes participando de reuniões aqui no Acre. E eu tive esse despertar. Aquela luta dela, sempre admirei. Também foi feito o convite para mim através da Rosa Saraiva, uma das nossas coordenadoras estaduais aqui do Acre. Logo no início, quando a Rosa me convidava, eu dizia que ainda não estava no tempo. Quando comecei a fazer minha faculdade de História, resolvi participar de uma primeira reunião. Depois que eu participei da primeira reunião do MMC (risos) eu me apaixonei pela luta, pela história, por todas as coisas. E eu não saí mais. Estou no movimento desde 2002, 2003. 

Como vocês fazem a produção de alimentos? 

A nossa produção é toda agroecológica. Nós não usamos agrotóxicos, nós trabalhamos com orgânicos, tem uma parte das mulheres que são certificadas, tem o certificado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Tem umas que ainda não tem, mas mesmo as que não tem não produzem com veneno, porque não tem como fazer parte do MMC e produzir com veneno. Então, a gente vê que a produção das camponesas não está vendendo só alimento, está vendendo também saúde. Quando chega uma pessoa nas nossas bancas para comprar, ela sabe que aquele alimento lá não tem veneno. Ela sabe como ele é produzido, que elas podem levar um produto de qualidade para sua família. Nós temos o acompanhamento do professor Sebastião Elvira, que é professor de Agroecologia da UFAC; o acompanhamento do meu filho que também é formado em Agroecologia; e a própria experiência que nós trazemos das nossas vivências com as famílias, as avós, as mães. O nosso maior carro chefe, das camponesas aqui do Acre, é a folhagem. A gente planta tudo. Cebolinha, cheiro verde, alface, rúcula, chicória, todos os tipos de pimenta, pimentão, açafrão, inhame, feijão de vários tipos, abóbora, batata doce, banana, muita mandioca (para produção de farinha e os derivados da mandioca), abacaxi, mamão. Toda a diversidade da agricultura familiar a gente produz aqui. 

A maioria são produtos das nossas mulheres, são elas mesmo que produzem. E elas mesmo que comercializam, através das nossas feiras que nós criamos, justamente quando eu fui coordenadora da Coordenadoria Municipal de Políticas para as Mulheres. 

Nós conseguimos juntamente com o MMC dar uma fortalecida boa na agricultura camponesa e conseguimos fazer com que as mulheres produzissem mais para vender e elas se libertarem do ciclo da violência.

Pode nos contar um pouco mais sobre esse projeto?

Assim, a gente percebeu ao longo das nossas oficinas, nossos seminários, nossas visitas no assentamento, nas reservas extrativistas que várias companheiras nossas eram vítimas de violência. Nós começamos a pensar num projeto para que a gente pudesse libertá-las desse ciclo e uma das coisas que mais pesava era a questão econômica, como em todo o resto do país. Mas nós fortalecemos as mulheres com a produção, para que elas produzissem mais e tirassem dos excedentes o suficiente para que elas pudessem comercializar nas feiras que nós construímos, criamos juntamente com a Universidade Federal do Acre (UFAC), a Secretaria de Extensão Agroflorestal (SEAPROF) e a Produção Familiar do Estado do Acre, aqui do Estado. 

Podemos dizer, então, que as práticas agroecológicas foram um instrumento para autonomia das mulheres? E que as feiras são uma forma de economia feminista e popular?

Sim, podemos dizer que colaborou com autonomia para as mulheres. Porque elas conseguiram sair do ciclo da violência, muitas delas não todas. Nós temos uma feira que realmente foi criada de fato para colocar as mulheres vítimas de violência, para que elas pudessem comercializar e com isso fazer com que elas saíssem daquele ciclo que elas vivenciavam.

Um projeto de economia feminista e popular que temos visto dentro do MMC é o quintal produtivo? Vocês trabalham com eles?

Sim, no quintal produtivo criamos pequenos animais, porco, galinha, pato, peixes, hortaliças, mudas de plantas medicinais, plantas de ornamentação. Toda essa diversidade é produzida pelas mulheres através dos quintais produtivos. Quando pessoas da cidade chegam no nosso território, aqui na colônia, se surpreendem com a grande variedade de coisas que não se vê em outras localidades, em outros sítios.

A diversidade aqui é maior, por causa da agroecologia que nos dá essa flexibilidade da gente no mesmo espaço produzir várias coisas, ter vários cultivos.

Geovana Castelo Branco mostra quintal produtivo, ação das mulheres para construção das feiras agroecológicas.
Geovana Castelo Branco em seu quintal produtivo. Foto: Arquivo pessoal.

Nos parece que vocês possuem segurança alimentar, num momento em que a fome avança no Brasil…

Temos segurança alimentar. Quando nós tivemos o nosso encontro do “MMC 30 anos” nós tivemos a visita de umas companheiras nossas, veio a Noeli de Santa Catarina e outras companheiras. Nós levamos as mulheres para visitar nossas produções e projetos: a Dona Josefa, com a preservação da água, que quando chegou na terra era só um negocinho no meio do campo e que brotou, ela reflorestou tudo e a água brotou de uma forma linda. Nós levamos as mulheres e elas disseram: “meu deus, vocês tem muita segurança alimentar aqui, porque onde a gente chega uma já está pegando um peixe, a outra pegando um frango, a outra ovos, e colhe ali as verduras”. 

Tanto é que agora na pandemia a gente viu que a nossa preocupação não era de passar fome, porque tinha muita produção, nossa preocupação era como escoar na nossa feira.

Vocês se consideram guardiãs das sementes?

Nos consideramos guardiãs das sementes e guardiãs da floresta, porque a gente tem o maior respeito pela nossa Mãe Terra, pela água, pela semente crioula. Nós não queimamos, não desmatamos. Produzimos de uma maneira agroecológica, sem agredir o meio ambiente e a gente costuma preservar a água que tem lá naquela localidade. Então, nós somos, sim, guardiãs das sementes e guardiãs da floresta também. 

Para conhecer mais sobre as práticas das Guardiãs das Sementes, ouça o  primeiro episódio do nosso podcast.

Existem algumas sementes que são produzidas de uma geração para outra e que ficam para a família?

Existe sim, as crioulas. Delas, nós temos muita diversidade de feijões. A nossa companheira Jô tem uma grande variedade de feijão, de inhame, de milho que veio da mãe e da avó dela. A própria mandioca, nós temos várias espécies de maniba (conhecida também como maniva ou mandioca brava) que vem conosco desde os nossos ancestrais mesmo, das nossas bisavós, sementes que a gente vem só melhorando.

E como é essa melhora da semente? Tem algum projeto de melhoramento? Há trocas?

As sementes vão melhorando, porque a gente vai cuidando mais do solo e a forma de armazenar vai mudando um pouco. Antigamente as nossas famílias armazenavam de uma forma, agora a gente já armazena para que a semente não possa se perder. Tem também a forma de selecionar a semente, a gente já vê qual é que é mais bonita, que vai servir melhor para que a gente possa armazenar para plantar no outro ano. E a gente costuma fazer nós mesmas, através de nossos saberes fazemos de um jeito que conseguimos uma semente de melhor qualidade, através da nossa escolha. As trocas de sementes ocorrem nas oficinas, nos encontros. Sempre que tem encontro de mulheres, a gente tira um espaço para que haja troca de sementes. Porque, muitas vezes, nos encontros de mulheres, elas vêm de vários municípios e cada uma traz as suas sementes. Juntamos tudo e no final trocamos: sementes, mudas, o que a gente produz. 

Como é o reflorestamento de vocês? 

O reflorestamento que fazemos aqui é separar uma parte que não vamos mexer, nós vamos deixar a floresta ressurgir,  renascer e a gente já vê que tem bastante árvores. Além da preservação do solo e das águas, costumamos reflorestar e plantar outros alimentos, como leguminosas, para que aquela terra se refaça. E, então, a gente deixa ela descansando, para que no outro ano a gente consiga plantar novamente lá. Plantamos espécies nativas mesmo, feijões, mulateiros, cajá, castanheira. Agora, num projeto do assentamento Walter Arce, vamos começar um projeto que pensa no todo, porque os produtores, esses tradicionais, eles vão desmatando, destruindo e não pensam que depois ele mesmo vai ficando mais prejudicado ainda, porque você planta o milho, vem a capivara, o porquinho, as pacas, os papagaios e comem o seu milho. Então, eu falei pra ele: “que tal a gente fazer um corredor aqui, agroecológico, com as plantas que a paca gosta, que a capivara gosta, para que eles possam chegar, ter a alimentação deles novamente e não venham acabar com a produção de vocês como eles costumam fazer”. Estamos nesse diálogo agora, para que a gente possa fazer esse corredor no assentamento novo, para que além da floresta voltar, eles não tenham mais esse problema que eles mesmo criaram, porque destruíram e agora quando eles plantam, eles (os bichos) estão com fome e vão atrás de comer, vão mesmo adentrar o roçado das pessoas. 

Conheça as práticas de reflorestamento do povo Guarani do Sul do Brasil, no segundo episódio do nosso podcast.

O que é agroecologia para você?

Para mim a agroecologia é um modo de vida, é uma forma de preservação, de a gente continuar preservando esse planeta. Através da agroecologia a gente sabe que pode produzir com responsabilidade. A gente pode deixar um futuro melhor para os nossos filhos, nossos netos. Porque com essa agricultura tradicional, a gente sabe que ela só destrói, o agronegócio só destrói tudo. Aqui no Acre esse novo governo chegou com a intenção de querer produzir soja. Eu sempre costumo dizer, como que vai produzir soja no Acre? Tem algumas localidades que dá, mas eles podem produzir, mas eles não conseguem colher, porque nós temos seis meses de inverno e aquelas máquinas de coletar soja não são possíveis aqui. Dá pra dois gatos pingados do agronegócio, mas o produtor familiar não. 

Esse novo governo começou a querer convencer nossos agricultores da agricultura familiar, da agroecologia, que nós éramos um agronegocinho, e eu disse: isso não existe. Não tem agronegocinho. Eu sou camponesa, sou agroecológica, sou da agricultura familiar. Então é assim, nós temos que, cada vez mais, nos posicionar contra isso, contra toda essa destruição do nosso planeta. Toda essa destruição do meio ambiente. E a gente consegue isso através da agroecologia, através da nossa produção, através do nosso cuidado com a terra.

Para vocês, o Bem Viver é uma filosofia de vida?

Nós sempre costumamos passar uma para outra que o Bem Viver não é o lucro. O Bem Viver é você ter, você chegar no seu quintal e colher, se alimentar. É você repassar para a sua companheira ou para o seu vizinho que não tem o alimento. É você dialogar com ele sobre todas as nossas formas de sociedade e como melhorá-la. Eu creio que através do MMC, a gente consegue fazer com que as pessoas compreendam que Bem Viver não é sobre consumo: “ah, eu vivo bem porque tenho um carro, porque tenho moto, porque tenho uma casa boa, porque eu tenho gado no meu campo”. Não. Bem Viver é termos, produzirmos e compartilharmos. E que a nossa forma de produzir não agrida o meio ambiente, não faça mal para o meu vizinho.

E qual o futuro que você sonha, Geovana?

Sonho com uma sociedade mais justa, igualitária, onde homens e mulheres vivam unidos, preservando a natureza, o meio ambiente e um ao outro. 

Podemos dizer que é uma utopia, mas a gente sonha com a sociedade realmente melhor, por isso que a gente luta para que um dia ela chegue. Se não chegar pra gente, que chegue para os nossos netos, bisnetos. Tantos retrocessos que estamos vivendo com esse governo, mas a gente nunca pode deixar de sonhar, de lutar. Desistir não é uma opção.

E estamos trabalhando para que essas mudanças aconteçam, justamente com a nossa luta, com as nossas companheiras, falando sobre esse modo de vida, criando novos grupos, novas bases. Quando a gente chega no projeto de assentamento, não só no meu, como nas outras localidades falamos sobre o nosso modo de vida, sobre o MMC, sobre os direitos das mulheres e nossas as conquistas. Nossa mensagem é que elas não estão sós, que a gente está lá juntas e que podemos contribuir, sim, para construir esse mundo melhor. 

“Mulheres Semeando a Vida” faz parte do projeto Narrando a Utopia, uma iniciativa de Puentes para imaginar um futuro feminista, interseccional e inspirador. 

Agradecemos a consultoria das mulheres indígenas e camponesas da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) e do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). 

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