Em sentença proferida às 22h40 deste 27 de junho, magistrada cita o papel dos movimentos feministas, em especial o feminismo negro, “que desponta uma luta histórica das mulheres por um papel de maior protagonismo na sociedade”.

Por Juliana Rabelo e Paula Guimarães.

Após três anos e quatro meses de luta por justiça, um grupo de oito alunas da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) tem a sua primeira vitória. O professor de história Paulino Cardoso foi condenado, em primeira instância, a pena de 16 meses de prisão simples pela contravenção penal prevista no artigo 65 da Lei das Contravenções Penais: “molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável”. 

A condenação à pena máxima de dois meses, multiplicada pelo número de vítimas, será convertida em prestação de serviços à comunidade por 8 meses. A sentença estabelece ainda o pagamento de multa de três salários mínimos por vítima. O professor tem cinco dias para recorrer da decisão. Pode recair, ainda, sobre ele a indenização por danos morais que será requerida pela assistência de acusação das vítimas. 

Segundo a decisão da juíza Vania Petermann, do Juizado Especial Cível e Criminal da Universidade Federal de Santa Catarina, o professor deverá prestar serviços comunitários em entidade “que se volte a programas de assistência por meio de tratamento psicológicos e psiquiátricos, a fim de que se coloque o apenado em contato com um provocar de consciência sobre si e sobre aspectos do outro”.

Conforme analisou a juíza na sentença obtida pelo Portal Catarinas, a conduta é ainda mais reprovável por ter sido praticada dentro da universidade por um professor contra as suas alunas. “Viver em tranquilidade, sem medo de toques, palavras, ou gestos impróprios, é um direito fundamental inerente a qualquer ser humano”, afirmou. 

A magistrada citou os movimentos feministas, e em especial o feminismo negro, que segundo ela “desponta uma luta histórica das mulheres por um papel de maior protagonismo na sociedade. Antigas atitudes, antes consideradas comuns e corriqueiras, hoje já não mais podem encontrar subsídio para continuarem a existir”.

Arte: Gabriela Goulart

A sentença traz uma resposta do judiciário catarinense de que essas práticas não são aceitáveis e não devem ser naturalizadas.

“Piadas de cunho sexual, convites e toques inapropriados, intimidações revestidas de elogios, e outras práticas oriundas de uma sociedade dominada pelo critério ‘homem-hétero-branco-cis’, que muito nos chegam silenciosamente, têm ressonância interna. Por isso, os tempos de hoje não as constituem mais como campo do aceitável que outrora o foi”, afirmou Petermann. 

Conforme explicou a juíza na sentença, o artigo 65, que prevê a contravenção penal pela qual o professor foi enquadrado, deixou de existir neste ano com a mudança trazida pela Lei nº 14.132. Desde então, o que era tido como contravenção penal por molestação ou perturbação da tranquilidade passou a ser crime de perseguição, também conhecido por stalking, previsto no artigo 147, que tem pena de reclusão de seis meses a dois anos, além de multa. 

O artigo 147-A, acrescentado pela lei, trata do crime de “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”. De acordo com a juíza, a mudança legislativa corresponde a “um apelo da sociedade e a uma necessária evolução no Direito Penal brasileiro, frente à alteração das relações sociais com viés das políticas públicas de proteção à mulher”.

A advogada Márcia Irigonhê, que atuou como assistente de acusação, explica que a ação buscava o direito à condenação e à reparação moral pelos danos que as vítimas sofreram, já que segundo ela todas tiveram danos “na vida privada e acadêmica: tem vítima que não consegue pisar na Udesc até hoje”. 

Para a advogada a decisão foi considerada uma vitória e uma prova de que as vítimas nunca faltaram com a verdade. Segundo ela, o fato de o professor ser negro foi usado pela defesa como argumento para inocentá-lo, sem levar em consideração que a maior parte das vítimas é preta. Paulino está afastado da docência do curso de história do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) desde que as denúncias vieram a público.

“Desde o início essas denúncias estão sendo atribuídas à racismo, esquece-se que a maioria das vítimas também é negra. Fui chamada de branquitude alienada, como se ele fosse vítima do racismo, como se acusação fosse uma narrativa de pessoas que o perseguiam por motivos raciais. Essas mulheres nunca mentiram. Aí reside a importância para o sexo feminino, porque quantas vítimas não tiveram a mesma sorte, o que faz com que muitas não denunciem. É uma vitória para as mulheres”, afirma a assistente de acusação. 

Com a decisão, o professor deixa de ser réu primário e de ter direito a uma série de benefícios pelo menos nos próximos cinco anos, que é o tempo do trânsito em julgado da ação. “Na ação por improbidade também esperamos que haja um resultado prático na vida dele”, afirma a advogada. 

Além da instância criminal, o professor responde ainda processo civil por improbidade administrativa e Processo Administrativo Disciplinar (PAD) na Udesc para apurar as violações dos deveres enquanto funcionário público. Há outras vítimas listadas na sindicância, mas nem todas fizeram boletim de ocorrência.

A acusação inicial de estupro e de assédio sexual foi contestada ainda no decorrer do inquérito policial pelo Delegado da Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (Dpcami), Paulo De Deus, que acatou o argumento da defesa. Para o delegado, a relação professor aluna não configurava superioridade hierárquica para o enquadramento no crime de assédio sexual. O inquérito que investigava o crime de estupro concluiu pelo não indiciamento do acusado depois de quatro meses de investigação e foi arquivado pelo Ministério Público (MP), em menos de duas semanas, por considerar que houve consentimento. 

Estudantes debateram o caso em assembleia na Faed/Udesc, à época/Foto: Carolina Fagundes | Portal Catarinas

À espera da exoneração

Logo após a decisão, o Portal Catarinas conversou com uma das vítimas. Ela disse estar aliviada com a condenação do professor.

“Com essa decisão pelo menos conseguimos mostrar que ele é culpado porque muita gente duvidou da gente, que a gente estava inventando, que era perseguição de feministas brancas, então pelo menos conseguimos provar que aconteceu tudo isso com a gente. Estou aliviada, mas não feliz com a pena de 16 meses”, afirma a vítima que é uma mulher preta e não quis se identificar.

Durante o andamento do processo que durou cerca de três anos, as oito alunas se tornaram amigas e hoje, todas comemoraram a condenação. “Hoje aconteceu uma conversa no nosso grupo, todas estamos felizes com o resultado, mas tristes pela sentença branda, mesmo assim estamos focando no fato de ele ter sido condenado”, conta. 

Com a demora da Udesc em concluir os processos administrativos instaurados contra o professor, com a condenação judicial, o grupo espera agora que a instituição exonere o culpado. “Estamos esperando a exoneração dele, quando for exonerado aí sim ficaremos mais satisfeitas. Esperamos que ele não consiga a aposentadoria compulsória porque aí ele vai continuar recebendo o salário dele, ele tem que ser exonerado”, enfatiza a vítima.

Arte: Marina Aguiar

A vítima disse ainda que se não fosse o apoio e a coragem de todas em denunciar, teria deixado o assédio de lado. “O menos pior no nosso caso é que foi um grupo e não uma pessoa sozinha, então nos apoiamos muito. Eu fui assediada no fim de 2017, saí correndo da sala e fiquei com medo de alguém me ver e só tive coragem de falar quando uma de nós relatou que foi estuprada por ele. Sozinha eu não denunciaria, tanto que não denunciei logo quando aconteceu por todo poder que ele tem, mas eu digo para quem passar por isso que tente criar um vínculo com alguém pra contar, aos poucos e denunciar”,  afirma.

Além da palavra das alunas, a juíza analisou outras provas contra o professor como cópias de conversas. “No caso da Mari Ferrer, ela não foi contemplada com nada, sendo que o dela tem muitas provas, por mais que o nosso tenha sido uma pena pequena, foi uma vitória”, finaliza. 

O caso veio à tona em 8 de março de 2018 quando as vítimas organizaram relatos e provas em um dossiê entregue à reitoria, após uma jovem ter denunciado o professor por estupro. Depois do primeiro dossiê entregue à reitoria, seguiram-se mais três, totalizando 22 vítimas, a grande maioria negra, alunas de graduação e mestrado, com idades entre 17 e 35 anos. Uma das vítimas relatou violência ocorrida em 1998. Tornado público, o caso motivou a denúncia de pelo menos onze mulheres na Dpcami de Florianópolis.

Entramos em contato com Hédio Silva Junior, advogado do professor, para dar espaço ao contraditório, mas ainda não tivemos retorno. À época, ouvimos a defesa nas duas ocasiões em que noticiamos as denúncias. 

*Atualizada às 21h55 de 28 de junho.

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