No atual cenário nacional, não poderia deixar de tratar da decretação da prisão do maior líder que este país já teve, Luiz Inácio Lula da Silva. Não estou aqui a afirmar que Lula é isento de críticas, até mesmo porque ninguém o é, mas é inegável que construiu um partido que hoje se mostra um dos mais fortes do país, comandou uma nação com muita destreza durante dois mandatos e mantém a posição de liderança, admirado por um considerável número de pessoas.
Ocorre que, na última quinta-feira, determinou-se que, até as 17 horas de sexta-feira, dia 6 de abril, Lula deveria se entregar na Polícia Federal de Curitiba. Ou seja, decretou-se a sua prisão, embora em um tom respeitoso, concedendo-lhe um prazo para se entregar e, inclusive, proibindo o uso de algemas (aprenderam com o episódio de Cabral) e estabelecendo que o encarceramento se daria em uma sala especial. De todo modo, não se pode negar o peso que tem essa determinação judicial e o caráter inegavelmente político desse ato, decorrência de uma série de medidas e decisões, também pautadas em interesses políticos escusos (ou não tanto).
Comecemos pela própria investigação do ex-Presidente. É curioso que esses atos tenham sido direcionados a políticos de determinados partidos. E não se diga que é porque os adversários de Lula ainda ocupam cargos que lhes conferem foro por prerrogativa de função (“foro privilegiado”), porque há diversos casos que envolvem pessoas que se submeteriam à justiça comum e mesmo assim se faz vista grossa.
Passou-se, assim, ao processamento criminal, em que se conferiu um caráter absolutamente midiático à situação. Um Magistrado que posou de letrado (embora cometa mais erros de português[1] do que aquele que tanto criticaram por não ter um diploma de curso superior – crítica que deveria ser dirigida ao Estado, não a uma vítima da seletividade das prestações estatais) e permitiu que o tornassem um “herói”, concedendo entrevistas, participando de programas televisivos, posando para fotos, participante de eventos internacionais etc. Sérgio Fernando Moro adotou, portanto, uma postura incompatível com a de um Magistrado, que se pretende imparcial. Antes mesmo de iniciar a instrução do feito, já se sabia a decisão que seria tomada. Nesse contexto, pode-se falar que o contraditório e a ampla defesa, constitucionalmente assegurados, foram respeitados? Evidentemente, não.
Ademais, o julgamento se pautou em elementos extremamente frágeis, não em provas hábeis a sustentar efetivamente uma condenação. Ou seja, não há provas suficientes a justificar a pena imposta ao ex-Presidente. Argumenta-se com frequência que o processo conta com trocentas páginas e que a sentença (passível de inúmeras críticas, que foram feitas com muita pertinência e competência não só por juristas, mas também por outros profissionais, desconstruindo não apenas o seu texto, mas qualquer tentativa de defender a “técnica” do Magistrado) teria apontado uma série de elementos. Curiosamente, em um processo em que tudo foi publicizado – até mesmo interceptações telefônicas, o que é expressamente vedado por lei, caracterizando crime –, as provas não são mencionadas. Só se faz referência à sua existência e ao fato de haver muitos dados no processo, sem explicitá-los. Parece bastante claro que isso significa a ausência de elementos capazes de provar a culpa do condenado.
Mas isso não é tudo. A rapidez com que Lula foi julgado demonstra a pressa que determinadas autoridades tinham em que se concretizasse a prisão de uma liderança com tamanha importância no cenário político nacional. A partir de hoje, nas minhas petições, acrescentarei um pedido: que meus requerimentos sejam apreciados com a mesma velocidade que pautou o julgamento de Lula. Será que meu pleito será atendido? Façam suas apostas…
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Não bastasse tudo isso, na iminência do julgamento de um Habeas Corpus impetrado pela defesa de Lula perante o Supremo Tribunal Federal, um integrante das Forças Armadas brasileiras, com alta patente, fez uma ameaça pública, alertando para a possibilidade de atuação militar caso a decisão fosse favorável ao Paciente. Ou seja, endossou a ideia de uma nova ditadura – se é que já não estamos no início de uma[2] – na hipótese de um direito constitucional (presunção de inocência até o trânsito em julgado) ser reconhecido. E teve quem batesse palmas! Teve até Magistrado que usa Deus para justificar suas sentenças curtindo a ditadura[3]… E o próprio TRF, que depois se retratou, colocando a culpa em um suposto servidor não autorizado[4]…
Como desgraça pouca é bobagem, no julgamento que o país parou para assistir, o voto da Ministra Rosa Weber foi determinante para o resultado, em um apertado 6 x 5. E ela votou contra o seu entendimento para respeitar o posicionamento da maioria, que só foi maioria porque ela foi contra o seu entendimento. Entendeu? Nem eu. Ainda afirmou que nas ADCs, que tratam do mesmo tema, votaria em sentido contrário à prisão (oi?), mas, em respeito à colegialidade (era o colegiado votando…), votaria favoravelmente. Ocorre que ninguém sabe quando as ADCs serão pautadas, por exclusivo desinteresse da Ministra Presidente do STF. Ou seja, há algumas possibilidades. Pode ser que a ameaça do General tenha surtido efeito; pode ser que a identidade do Paciente tenha feito com que a Ministra Rosa Weber tomasse uma decisão de tamanha incompreensão; por fim, pode ser que, com a devida vênia, a Ministra tenha se equivocado, sem compreender efetivamente os princípios que aventou para justificar seu posicionamento.
Por fim, revelou-se uma evidente pressa na prisão de Lula. Não se aguardou sequer o esgotamento da segunda instância, ou seja, não se esperou nem mesmo o julgamento perante o Tribunal Regional Federal da 4ª Região – requisito que atenderia ao julgamento do Supremo Tribunal Federal, supramencionado – para que se determinasse a apresentação do ex-Presidente à Polícia Federal. Parece tratar-se de um criminoso de “alta periculosidade”, que não pode ficar nas ruas nem mais um minuto, razão pela qual nem sequer se espera o esgotamento dos recursos perante o TRF. Não, não é isso. Quer-se exibir o preso como uma espécie de troféu; quer-se mostrar à população que no Brasil se combate a corrupção (e há quem acredite nisso, é o que mais deixa mais perplexa).
Feitas todas essas considerações, não se pode concluir que se tratou de um procedimento idôneo, em que Lula foi legalmente investigado, processado e condenado, estando na iminência de ser preso. Evidentemente, tratou-se de uma questão muito mais política do que jurídica, o que é incompatível com um Estado de Direito, que se pretende o Brasil.
Apenas um esclarecimento final. Dados os objetivos deste espaço, não pretendi tratar exaustivamente de nenhum dos aspectos abordados – com relação aos quais existem textos de autores muito mais competentes –, mas apenas fazer um apanhado de alguns dos mais graves equívocos do trâmite de investigação e processamento de Lula.
Gostemos ou não de Luiz Inácio Lula da Silva, que, como disse no início, é passível de inúmeras críticas, apeguemo-nos à Constituição da República, aos direitos mais fundamentais que estão sendo violados. Quando admitimos o cerceamento do direito alheio, ainda que de um inimigo, admitimos a relativização desse direito. Se relativizarmos o direito à defesa, à presunção de inocência, a um processo judicial isento de influências políticas, isso deixa de valer para todos, inclusive para nós mesmos. Se não nos preocupamos com os outros, com aqueles diferentes de nós, com aqueles que são dos partidos que não nos agradam, ao menos que pensemos em nós mesmos em um futuro não muito distante. E sejamos realistas: não está nada distante.
[1] Apenas a título de exemplo, eis que há várias outras oportunidades em que erros são verificados, interessa citar o seguinte vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=Nwr45E33t2s
[2] “Vai achando que ditadura é tipo horário de verão, que tem comercial avisando a hora que começa, vai…” (Emicida)
[3] https://www.oantagonista.com/brasil/bretas-curtiu-villas-boas/
[4] https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/trf-4-diz-que-nao-curtiu-tuite-do-comandante-do-exercito-e-aponta-uso-indevido-da-senha.ghtml
* Fernanda Mambrini Rudolfo é Defensora Pública do Estado de Santa Catarina. Doutoranda e Mestre em Direito pela UFSC. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela EPAMPSC. Diretora-Presidente da Escola Superior da Defensoria Pública de Santa Catarina