No Brasil, um terço das mulheres em idade de aposentadoria não consegue o benefício por não ter cumprido o tempo de serviço, mesmo após anos dedicadas a uma jornada árdua e não remunerada: o cuidado.
A desigualdade no tempo destinado a essas atividades é evidente. A partir dos 14 anos, as mulheres dedicam, em média, 21 horas semanais ao cuidado de pessoas e afazeres domésticos, enquanto os homens disponibilizam metade desse tempo (PNAD Contínua). Como resultado, 2,5 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho para cuidar da família ou do lar (IBGE, 2022).
O envelhecimento populacional torna esse cenário ainda mais preocupante. De 2000 a 2023, a população com 60 anos ou mais praticamente dobrou, de 8,7% para 15,6%, e em 2070, esse grupo representará 37,8% dos brasileiros (IBGE).
O cuidado com os idosos recai, principalmente, sobre profissionais da enfermagem, sendo que 8 em cada 10 estudantes dessa área são mulheres. Esse padrão se repete na educação, onde 9 em cada 10 estudantes de Pedagogia são mulheres. Apesar da importância dessas profissões, os salários são baixos e a exaustão emocional é alta: 1 em cada 3 professoras sofre da Síndrome de Burnout.
O trabalho doméstico remunerado reflete a desigualdade histórica. No Brasil, há 5,8 milhões de trabalhadores domésticos, dos quais 91,4% são mulheres, sendo 67,3% negras. Mesmo com aumento na escolarização, a remuneração média da categoria segue abaixo do salário mínimo. O trabalho doméstico é um legado da escravização, perpetuando relações hierárquicas e dificultando a denúncia de abusos. Embora a regulamentação da profissão tenha começado em 1972, avanços significativos só ocorreram a partir de 2010.
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Além do trabalho remunerado, as mulheres continuam assumindo a maior parte do trabalho doméstico ao retornarem para casa, dedicando, em média, 21,6 horas semanais a essas tarefas, enquanto os homens dedicam apenas 11 horas (IBGE, 2022).
Mulheres e liderança: desigualdade no mercado de trabalho
Mesmo representando 51% da população brasileira, apenas 18% dos eleitos para o Poder Legislativo em 2022 eram mulheres. A divisão sexual do trabalho impõe barreiras não apenas no mercado, mas também na política e em posições de liderança. Nos setores em que as mulheres ocupam mais cargos de chefia – educação e saúde – a predominância feminina reflete a associação cultural entre mulheres e o trabalho do cuidado, com 69,4% e 70% dos cargos de liderança nesses setores ocupados por elas.
A cultura patriarcal também impõe rivalidade e competição entre mulheres, enfraquecendo a luta coletiva por direitos e reconhecimento. Construir redes de apoio e fortalecer a autoconfiança são passos essenciais para a mudança. O autocuidado, como propôs Audre Lorde, deve ser visto como um ato revolucionário, desvinculado dos padrões impostos e voltado para o reconhecimento das próprias necessidades, a busca por ajuda e a definição de limites claros.
Nada mudará se as mulheres continuarem lutando sozinhas.
O caminho para a transformação passa pelo reconhecimento do trabalho de cuidado, pelo fim da desigualdade de gênero e pela construção de uma sociedade mais justa e equilibrada.
Diante desse cenário de desigualdade e invisibilização do trabalho de cuidado, a HQ “Nos braços dela” (NADA∴Studio Criativo, 114 págs., @nos.bracos.dela.hq) traz à tona relatos reais de mulheres que carregam, muitas vezes sozinhas, essa responsabilidade. Seja na maternidade, no cuidado com idosos e doentes ou em profissões historicamente femininas como a enfermagem, a educação e o trabalho doméstico, essas histórias evidenciam o peso de uma sobrecarga estrutural.
Ao retratar sentimentos como exaustão, desamparo e solidão, a obra contribui para um debate urgente sobre a economia do cuidado e a necessidade de valorização desse trabalho essencial, que não deve ser encarado como um destino natural das mulheres, mas como uma responsabilidade compartilhada por toda a sociedade.