Em Pílulas de Discernimento, Joanna Burigo, mestra em Gênero Mídia e Cultura (LSE), conselheira editorial do Portal Catarinas e coordenadora Emancipa Mulher, traz pequenas notas informativas e analíticas sobre temas do cotidiano social e político que estão em debate nos fóruns das redes sociais. Leia a primeira edição.
Cotidiano e distopia
Por um lado, recebo a triste notícia do falecimento do pai de uma amiga da minha infância e adolescência, seguida da leitura da notícia que aponta que a Covid-19 no Brasil já matou, nestes quatro meses de 2021, mais do que em 2020 todo.
Por outro, ao menos aqui em Porto Alegre, no sábado à tarde, a cidade operava como se não houvesse pandemia: lojas, parques, bares e restaurantes abertos e lotados, e o que conta como “protocolo de segurança” é álcool gel visivelmente disponível e, em alguns lugares, ainda o termômetro de pulso, embora nem pareça haver exigência de uso e, muito menos, há quaisquer medidas de distanciamento.
Que distopia é vivenciar essas versões completamente contraditórias da realidade de uma só vez.
Ciladas da feminilidade
A foto da publicidade do post de Instagram da marca de lingerie que acabou de passar pelo meu feed consiste de uma gata magrinha e bronzeada, capturada de baixo e de costas, com sua lindíssima bundinha no centro da imagem, cabelos displicentemente presos, vestindo um belíssimo par de calcinha e soutien enquanto pendura um lençol branco num varal idílico sob o sol, situado num caloroso e folhoso pátio.
A legenda é: “Aqui em casa, plena e belíssima, pendurando os lençóis no varal, vestida de [marca]. Quem mais?”.
Tudo nessa composição de texto e imagem é deliberadamente bonito e inspiracional, e essa observação não é nova no contexto, afinal, é uma marca fazendo comunicação para vendas.
Puxo o canhão de luz aqui para o emprego de feminilidades como os próprios elementos linguísticos dessa composição.
Venho escrevendo e produzindo para tensionar o feminino a partir do feminismo e, nesse processo, identifiquei que uma das grandes ciladas da feminilidade é ela ser constituída de coisas boas. Beleza, domesticidade, cuidado, sensualidade: essas são mesmo coisas boas.
Então qual é o problema com o emprego de coisas boas?
É que essas coisas deixam de ser boas quando existem em total desequilíbrio. Como perguntei lá no post da marca: cadê os garotos de lingerie fazendo tarefas domésticas?
Pode parecer uma pergunta boba, que reforça o binário, mas não é nenhuma dessas coisas.
Estou com Susan Sontag, que abre seu “Against Interpretation” citando um trecho de uma carta de Oscar Wilde, em que ele diz serem somente os frívolos que não julgam pelas aparências, visto que o mistério do mundo não é o invisível e, sim, o visível.
E o que é muito visível é que a naturalização da nossa subserviência doméstica e sexual segue sendo reiterada como inspiração.
Assim, pergunto mais (e as perguntas, aqui, são retóricas; vício de professora, vocês me perdoem. Não precisa me responder, mas se quiser pode. Às demais questões então): por que não falamos em desempoderar garotos? Consideraríamos desempoderamento, para eles, objetificá-los e hipersexualizá-los, e naturalizar sua participação, real e simbólica, no “borralho” (como dizem minhas tias)?
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Muitas indagações, a respeito das quais continuo pensando e escrevendo e falando nas lives que eu e Paula Guimarães realizamos nas primeiras terças-feiras de todo mês no Instagram do Portal Catarinas (@portalcatarinas), também nas #DosesFeministas, lives realizadas no Instagram da Emancipa Mulher (@emancipamulher) a cada duas semanas às quartas-feiras, em muitas participações em mesas e debates… e já há um bom tempo no meu perfil de Facebook, sob a hashtag #FemininoFeminismo. Vem comigo.
Saúde mental
Andava tristonha por acreditar estar cansada da linguagem e do sentido, mas o alívio semiótico da amargura com o abuso das redes sociais veio, como já tendia antes delas, na lembrança de que se a alta reprodutibilidade de signos nos entope de simulacros e de simulação, achar saídas deles continua sendo o melhor ou mais possível jogo com o real.
Sobre amar e manipular
“Você é difícil de amar” na maioria das vezes significa “você é difícil de manipular”, e sacar isso é crucial para nossa saúde mental e amor próprio.
Doses de morte
Estava falando há pouco com o jornalista Matheus Pichonelli sobre o quanto as ações engendradas pelo Bolsonaro, incluindo aí o próprio bolsonarismo, nos deixam atônitos, perplexos e confusos sobre como pensar ou formular escrita.
Continuo achando impressionante o quanto a sua existência e colocação no poder liberou as grandes e pequenas perversidades que, decerto, já existiam em seus apoiadores.
Vejam, não me surpreendeu nem chocou que o bolsonarismo tenha liberado o que há de pior nos sujeitos; foi essa previsão uma das que mais me impulsionou a participar com tanto afinco das ações do #EleNão.
Acontece que essa liberação vem acontecendo de jeitos cada vez mais impressionantes e, até mesmo, na gente, como o Matheus bem observou.
Não pode nos escapar que a liberação da perversão libera também seu apontamento, e a Gabriela Moura também escreveu hoje sobre o apelo popular da confusão, tão visível no gosto por tretas apresentado pela internet.
Notem o quão difícil passou a ser reconhecer, na internet, com certeza e clareza, e com a velocidade e evidências que a justiça demanda, o que é perversão e o que é mero apontamento. (Falo de justiça aqui como conceito elementar, que existe para nomear o que é bom por ser justo.)
Essa confusão foi causada como método, adesão ao qual não é difícil, dado que ele conta com a ingenuidade da ignorância e o desejo por afagos egóicos. Breitbart News e o Olavismo são os dois exemplos mais óbvios e bem sucedidos de espaços discursivos, por assim dizer, que pavimentaram a rodovia para o agora, mas contribuem para a confusão narrativa (por sinal fundamental para a instauração de projetos fundamentalmente patriarcais), o recrudescimento dos charlatanismos do sagrado, a reificação do feminino enfatizado, e delírios de supremacia branca.
Nós, no Brasil agora, estamos vivendo um genocídio, de dentro. Esta realidade demanda o emprego de muita razão e lógica na observação da metafísica e na gestão das nossas próprias emoções sobre ela.