“apesar de as brancas terem passado a enfocar a raça […] a dominação racista ainda é um fator nos contatos pessoais. […] a maioria das brancas ainda afirmam seu poder, mesmo quando tratam de questão de raça. (Hooks, p. 141)”

Na onda de discussões sobre a recente decisão do STF, que abre importante precedente para a descriminalização do aborto e reforça algumas decisões de legalização e descriminalização, como já acontece, e deveria acontecer amplamente, em caso de estupro, anencefalia e risco de morte da gestante, algumas mulheres brancas e de classe média, que são contra a legalização e descriminalização, buscaram fazer a defesa de suas posições, abordando diretamente também a situação das mulheres negras, e, partindo dos argumentos e ideias apresentadas por elas com relação às mulheres negras e ao aborto. Serão desenvolvidos aqui alguns pontos e questões, a partir da minha condição de mulher feminista negra que atua nos movimentos negro e feminista, nas lutas anti-racistas, anti-classistas e anti-machistas. Escrevo com a participação da Camila*[1], colaboradora, uma mulher feminista branca que também atua nas lutas anti-racistas, anti-classistas e anti-machistas.

Lugares de fala e representação: pode(m) a(s) mulher(es) negra(s) falar?
Em suas defesas contra a descriminalização e a despenalização do aborto no Brasil que falam sobre as e pelas mulheres negras, estas mulheres brancas, que afirmam ser a favor das causas feministas e que às vezes também se afirmam feministas, exemplificam, de forma explícita, a tese da bell hooks citada aqui no início, já que nestes casos não somente afirmam seu poder branco como também reproduzem o discurso de opressão sobre os corpos das mulheres negras e pobres, atribuindo a si mesmas o papel de juízas destes outros corpos. Elas o fazem através da construção de narrativas de juízo de valores na qual se vêem no direito de dizer o que é bom ou não, ideal ou não, melhor ou pior, para nós, mulheres negras e pobres. Ou seja, elas, enquanto mulheres brancas, e, portanto, detentoras de “poder” na estrutura étnico-racial de nosso país, agem, em seu discurso e na construção de ideias, sobre as vidas e corpos de mulheres negras e pobres, como quem pensa que pode nos representar e falar por nós – e o fazem, sem surpresa, sem jamais marcarem e localizarem, em seus textos, suas condições étnico-raciais (de brancas) e de classe.

Sobre a subalternização e a apropriação do lugar de fala das pessoas protagonizados por estas mulheres brancas classe média -subalternização e apropriações que também indicam as hierarquias de classe e raça- nos vemos em um diálogo direto com Gayatri Spivak (2010) em seu texto intitulado“Pode um subalterno falar?”, no qual ela afirma que “O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à mulher-”negra, pobre” como um item respeitoso na lista de prioridade globais. A representação não definhou. A mulher intelectual como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar com um floreio.” (SPIVAK, 2010, p. 126). O subalterno não fala porque falar é ter poder e portanto, para as porta-vozes das mulheres negras (consideradas “inferiores” nestas relações de poder) parece muito mais lógico manter seu poder e usurpar os lugares de fala dessas mulheres em vez de considerarem a fala das pessoas que mais sofrem com a criminalização do aborto, afinal, por qual razão ouvir e dar voz às subalternas?

Distorções, anti-racismo e legitimação do racismo: as vidas de todas as mulheres negras importam?Percebo que, estas mulheres brancas em geral apresentam uma aparente ou suposta preocupação étnico-racial e interesse nas pessoas negras e em seus nascimentos – ou seja, de longe até poderia parecer um discurso anti-racista, mas, na realidade elas só reforçam as formas de opressões que atuam sobre as mulheres negras e pobres. Elas o fazem, por exemplo, apresentando como incompatíveis e antagônicas a proteção das mulheres negras e de suas vidas (proteção que, para incontáveis mulheres negras e pobres brasileiras, depende necessariamente da descriminalização do aborto) e a garantia de que crianças negras possam nascer e continuar nascendo no Brasil.

Neste sentido, elas o fazem relacionando diretamente a descriminalização e despenalização do aborto à uma certa eugenia, ao genocídio do povo negro, mas o fazem relacionando de forma distorcida e perversa o grande número de abortos feitos por mulheres negras e pobres brasileiras a um impedimento de que pessoas negras nasçam, como se a descriminalização do aborto fosse uma atitude racista em si (seguindo uma estranha lógica de que, se mais mulheres abortam, então mais pessoas negras são impedidas de nascer, portante, despenalizar o aborto seria uma atitude racista). Mas, atenção aos detalhes e às sutilezas: elas não incluem neste genocídio a própria mortalidade das mulheres negras que morrem em decorrência do aborto, nem as crianças que ficam órfãs de mães negras por conta destes abortos e que muito provavelmente têm seus destinos ainda mais precarizados por conta disso, nem a juventude negra que têm a morte precoce como destino por conta de inúmeras outras opressões, descasos, abandonos, perseguições e discriminações sociais e até estatais e institucionalizados no Brasil.

Não, elas em geral relacionam o genocídio do povo negro única e exclusivamente aos fetos e embriões abortados por mulheres negras, legitimando assim, inclusive, a nossa já velha, cruel e bem conhecida culpabilização e criminalização das mulheres negras, e, portanto, algumas das justificativas para suas mortes e para a falta de cuidados e assistências sociais e institucionais que acompanham estas mulheres ao longo de toda a sua vida.

Aqui nos perguntamos novamente: quais são as vidas que importam? As vidas das mulheres negras importam? As vidas das mulheres negras e pobres que, por inúmeras circunstâncias de suas vidas se vêem obrigadas (obrigadas!) a recorrerem ao aborto importam? Djamila Ribeiro , filósofa, feminista e autora negra, pergunta em um de seus textos: “Vidas negras importam ou a comoção é seletiva?” Aqui sinto a necessidade de acrescentar à esta, outra pergunta: “As vidas de todas as mulheres negras importam? As vidas de todas as mulheres negras importam ou a comoção é seletiva e nos comovemos apenas com os fetos e embriões gerados por mulheres negras, mas não com estas próprias mulheres?”

Neste mesmo texto, cujo título é a própria pergunta citada, Djamila Ribeiro cita Judith Butler: “É verdade que todas as vidas importam, mas é igualmente verdade que nem todas as vidas são construídas para importar. E é precisamente por isso que é mais importante nomear as vidas que não importam e estão lutando para isso no modo que elas merecem.” (BUTLER apud RIBEIRO, 2016) As recentes defesas contra a descriminalização do aborto que citam mulheres e pessoas negras, feitas por mulheres brancas, da forma como foram feitas, mais (ou unicamente) preocupadas com os fetos e embriões gerados por mulheres negras do que com as vidas destas mesmas mulheres nos mostram, mais uma vez, que as vidas das mulheres negras “não são construídas para importar” e que, como diz Butler, é exatamente por isso que é importante nomearmos “as vidas que não importam e que estão lutando para isso no modo que elas merecem” neste caso: as vidas das mulheres negras importam. #AsVidasDasMulheresNegrasImportam

Privilégios e a necessária prontidão das mulheres para lidarem com nossos próprios pressupostos étnico-raciais e de classe
Um dos pontos relevantes nesta questão sobre a legalização do aborto e as mulheres negras, da forma como é abordada por quem acha que pode falar pelas outras, é,  notoriamente a  não compreensão do seu lugar de privilégio e, assim, do significado do ser mulher branca de classe média em uma sociedade racista como a brasileira. Desta forma elas, mesmo sendo brancas em situação de privilégio racial e de classe, elas se vêem no direito de falar pelas mulheres negras e pobres e de fazer avaliações sobre o que elas fazem, e sobre o que devem ou não fazer, e por que o fazem, afinal, elas atuam dentro da lógica de opressão e subalternização étnico-racial vigente no Brasil. A autora, blogueira e feminista negra Joice Berth nos lembra que “Privilégio é entorpecente. (…) Ser branco(a) é um privilégio e privilégio é a grande droga do nosso tempo, mais devastadora que crack e heroína, porque ela mata almas humanas, empobrece raciocínios e distorce a visão dos que a tem. Saiam da bolha.” (BERTH, 2016) Percebo este entorpecimento nas defesas contrárias à descriminalização do aborto feitas por mulheres brancas nos últimos dias, principalmente porque observo o quanto elas produziram visões distorcidas sobre a descriminalização e despenalização do aborto em geral, mas em especial com relação às mulheres negras e pobres e ao genocídio do povo negro no Brasil – distorções que são cruéis para com as mulheres negras, suas vidas, suas perspectivas e suas lutas.

Mas bell hooks nos diz também: “uma mulher branca me disse que […] os brancos sempre têm pressupostos racistas com que têm de lidar. A prontidão em lidar com esses pressupostos certamente facilita a formação de laços com mulheres não brancas.” (hooks, p. 144).

O discurso frágil que não convence, que não se sustenta e nem aos seus argumentos, como os das mulheres contrárias à despenalização do aborto é, portanto, logo de cara, o da liberdade como sinônimo de autonomia, pois, quando dizem que as mulheres que defendem a legalização do aborto partem apenas do princípio da liberdade e que nós enquanto seres humanos não somos livres, nos permitem notar que elas não percebem que, com esse discurso, estão dizendo também que, logo, se não somos livres, nós não temos o direito de escolher, de decidir e muito menos autonomia dos nossos corpos, ou seja, devemos estar sujeitas a todas as formas de violência e, assim, devemos aceitar tudo isso passivamente sem questionar e lutar pelos nossos direitos humanos de decidir pelas nossas próprias vidas.

Nessa lógica, elas demonstram, em outro exemplo de condição de privilégios, falta de compreensão da dimensão complexa da tal liberdade enquanto uma condição humana e portanto variável, além de total falta de conhecimento sobre as circunstâncias e condições de vida da imensa maioria das mulheres negras e pobres brasileiras – que, em sua imensa maioria, não é perpassada nem por escolhas, nem por direitos nem por liberdades, ao contrário das vidas das mulheres brancas das classes médias e altas.  Percebemos também que o reconhecimento de que houve o uso de um discurso antirracista que por fim acaba por reproduzir racismo, quando é o caso, só pode acontecer, necessariamente, quando se tem a “prontidão para lidar com os pressupostos de raça e classe” que cercam suas próprias ideias e posições.

O Bem maior e o racismo como um problema de toda a sociedade
“A gente de bem se acredita sempre bem intencionada ou autorizada por um Bem maior, (…). E sendo assim, comportamento de aliados dentro de movimentos políticos e sociais, é muito mais difícil de combater, exatamente porque são aliados e, na maioria das vezes, verdadeiramente bem intencionados.” (GONÇALVES, 2016)

Nos preocupa ver que este tipo de postura e argumentação contra a descriminalização do aborto esteja vindo também de mulheres que se situam em campos mais progressistas e às vezes de esquerda da sociedade, assim como nos preocupa que este tipo de discurso parta de ideias universalizantes do que seja o “Bem da humanidade”, “o Bem de todos/as nós”, de “pessoas bem intencionadas” e que partam de uma subjetividade única pretensamente universal. Não duvido que estas mulheres possam estar realmente bem intencionadas, mas percebo que suas visões de mundo universalizantes e privilegiadas as impedem de levar em consideração muitas outras condições, realidades e circunstâncias que elas desconhecem ou que conhecem mas que não incluem como estruturais nem no panorama geral do que seja “todos/as”, ou do que seja “humanidade” para elas, nem na estruturação de suas teses e textos, como, por exemplo, as realidades, perspectivas e lutas das mulheres negras. Isto acaba invisibilizando e silenciando as lutas, perspectivas e debates étnico-raciais em toda a sua amplitude e complexidade, inclusive nas discussões sobre o aborto. Por isso fico com Ana Maria Gonçalves, autora e feminista negra, quando ela afirma que é preciso “Fazer entender que racismo não é um problema dos negros, mas da sociedade como um todo, inclusive – ou principalmente – de toda essa gente de bem.” (GONÇALVES, 2016)

Questões que me interessam como uma mulher negra
Quando tenho contato com textos e dados que afirmam que nos Estados Unidos, onde o aborto é legalizado, cerca de 4 em cada 5 mulheres que o requerem são negras ou latinas, como mulher negra, penso que em nossos processos de produção de inferências, fazem-se necessárias inúmeras interrogações, sim, dentre estas, algumas que nos ajudariam a realmente discutir e olhar para situações reais, processos históricos e sociais complexos, mas, que, entretanto, são justamente as questões que as mulheres brancas em geral não fazem, como por exemplo: “por que 4 entre 5 mulheres que requerem o aborto nos EUA são negras ou latinas? por quais razões isto acontece? o que está por trás destes números?” E se tal proporção se repete no Brasil, pensamos que o que mais nos interessa saber é “por que estas proporção, narrativa e situação está presente também no Brasil? quais processos históricos, sociais e culturais estão por trás destes dados e ajudam a construir estas realidades? o que podemos fazer para mudar isto?”

Partir de argumentos que tipificam o aborto únicamente como uma prática higienista e racista, uma limpeza da população negra, é algo completamente sintomático e expressa indícios de alguém e de uma lógica que se constituem em si mesmas da própria eugenia.  Desta forma, nos certificamos que a limpeza social já ocorre, é verificada e é legitimada não com a despenalização e descriminalização do aborto, mas, sim, com discursos como estes que descrevemos e dos quais discordamos, pois, segundo reportagem publicada no portal Geledés: “A pesquisa recente realizada pelo IBGE (2013) demonstrou que o aborto tem cor e renda, no Nordeste, por exemplo, o percentual de mulheres sem instrução que fizeram aborto provocado (37% do total de abortos) é sete vezes maior que o de mulheres com superior completo (5%). Entre as mulheres pretas, o índice de aborto provocado (3,5% das mulheres) é o dobro daquele verificado entre as brancas (1,7% das mulheres)”. (GOES, 2015)

Portanto, temos aqui dados concretos que apontam que o aborto ilegal é, sim, um meio de exterminar a mulher negra e pobre, e, talvez, deve ser justamente uma das razões pela qual o Estado, o poder público que é estruturalmente racista e classista, não perceba a despenalização e a descriminalização do aborto como um problema relevante e emergencial, tendo em vista que todos esses dados são de conhecimento deste setor, tanto nas esferas municipais, quanto nas estaduais e federais, assim como o caso de extermínio da juventude negra. E aqui a pergunta que nos interessa é: “será que se o maior número de mulheres mortas em decorrência do aborto fosse composta por mulheres brancas, de classe média e alta, o aborto ainda seria criminalizado e penalizado no Brasil?”, e, “por que as práticas que mais vitimam mulheres e pessoas negras e pobres no Brasil são justamente as mais dificilmente descriminalizadas, despenalizadas e regulamentadas?”, e, “o que podemos fazer para mudar isto?”

Algumas mulheres brancas combatem a descriminalização do aborto justificando esta posição de forma distorcida com suas próprias ideias do que seja um processo de limpeza social (que inclui apenas os fetos embriões gerados por mulheres negras e pobres, mas que não inclui as próprias mulheres negras e pobres), e, ao fazê-lo, revelam, sem perceber, o racismo e o machismo estruturais da sociedade brasileira, desconsiderando as vidas e mortes das mulheres negras e pobres, que já acontecem em nosso país.

“Em 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil. Destas, 30.000 são jovens entre 15 a 29 anos e, desse total, 77% são negros. A maioria dos homicídios é praticado por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegam a ser julgados.” (ANISTIA, 2015)

Então pergunto, tendo em perspectiva: 1- o extermínio da juventude negra também pelo Estado através das corporações policiais; 2- o extermínio e das mulheres negras grávidas que morrem em trabalho de parto nas maternidades por que um número considerável de médicos se nega a aplicar anestesia nestas pacientes, pois, segundo eles: “a mulher negra é forte o bastante para suportar a dor”; 3 – o extermínio das mulheres negras e pobres que morrem em decorrência de abortos precários no Brasil: “não seria tudo isso também uma limpeza social institucionalizada? O assassinato por descaso médico e violência obstétrica, apontado na reportagem citada abaixo não apresenta também formas de genocídio da mulher negra? o que podemos fazer para mudar tudo isto?”

“O Ministério da Saúde lança nesta terça-feira uma campanha para coibir o racismo no atendimento público de saúde […]. Segundo o ministério, 60% da mortalidade materna ocorre entre mulheres negras, contra 34% da mortalidade entre mães brancas. Entre as atendidas pelo SUS, 56% das gestantes negras e 55% das pardas afirmaram que realizaram menos consultas pré-natal do que as brancas. A orientação sobre amamentação só chegou a 62% das negras atendidas pelo SUS, enquanto que 78% das brancas tiveram acesso a esse mesmo serviço”. (ALENCASTRO, 2014)

Considerações e Desabafos…
“Porém, se para Simone de Beauvoir a mulher é o outro por não ter reciprocidade do olhar do homem, para Grada Kilomba, a mulher negra é o outro do outro, posição que a coloca num local de mais difícil reciprocidade. Por serem nem brancas, nem homens, as mulheres negras ocupam uma posição muito difícil na sociedade supremacista branca. Nós [mulheres negras] representamos uma espécie de carência dupla, uma dupla alteridade, já que somos a antítese de ambos, branquitude e masculinidade.” Djamila Ribeiro

Considerando tudo que foi exposto acima, podemos perceber com esses argumentos apresentados aqui mais exemplos de todo o processo de silenciamento, invisibilização e negação da humanidade do/a outro/a [outro/a que, neste caso, são as mulheres pobres e negras] -processo falseado e apresentado recentemente como mais um discurso que se pretende inclusivo e ‘representativo’, mas cuja representatividade não é o da promoção de lugares de protagonismos, nem o da escuta das mulheres negras, de suas perspectivas, realidades e de suas reivindicações.

Observo que a limpeza social higienista e étnico-racial já está acontecendo e sempre aconteceu no Brasil, começando em 1500 com o genocídio indígena e seguido pelo genocídio negro ainda em curso, e têm nas altas taxas de mortalidade de mulheres negras e pobres uma de suas faces mais cruéis, uma vez que mulheres pobres e em em sua maioria negras morrem diariamente vítimas do aborto ilegal. O pensamento eugenista, que sempre constituiu a sociedade brasileira contra indígenas e pessoas negras, se propaga também em falas de mulheres brancas que elaboram retóricas e raciocínios que legitimam as mortes das mulheres subalternizadas e outras, mortes que são agravadas pelo fato de que muitas delas já serem mães antes dos abortos mal-sucedidos. A higienização social se reproduz e concretiza também em retóricas que não a problematizam e simplesmente a legitimam, mesmo que de formas veladas, inconscientes e talvez involuntárias, quando se é incapaz de fazer os questionamentos mais urgentes do ponto de vista das mulheres que mais morrem atualmente no Brasil: as mulheres negras.  Algo que as mulheres brancas em geral provavelmente não sabem (devido ao seus lugares de privilégios) é que o preço desta limpeza que elas alegam querer evitar ou combater já é a própria vida de centenas de milhares de mulheres pobres e negras. O preço já está sendo a orfandade de centenas de milhares dos seus filhos e filhas, que já tinham nascido antes desses abortos.  Assim, quando vejo mulheres brancas colocando a proteção das vidas destas mulheres como algo antagônico e incompatível ao/ com o favorecimento do nascimento de pessoas negras, o que não é real e nem verificável, me pergunto: no Brasil,  podem ou não querem deixar de matar mulheres negras e jovens negros?

Percebo nestes discursos grande importância e consideração para com os embriões e fetos abortados por estas mulheres mas, ao mesmo tempo, não demonstram nenhuma consideração ou importância pelas vidas delas, que já existem e nasceram (nem pelas crianças que ficam órfãs quando estas mesmas mulheres morrem em decorrência de abortos precários), tanto que elas, mulheres negras e pobres, não são incluídas nem mencionadas direta e explicitamente na construção retórico-argumentativa sobre limpeza social que encontramos nestas defesas da manutenção da criminalização do aborto. Será possível um olhar empático pela garantia de vidas e pelo bem viver das mulheres pobres e negras? Parece que no caso destas mulheres há um esvaziamento de espírito empático e da compreensão de como os dilemas e as pautas de mulheres negras e brancas são construídas de formas diferenciadas, por razões que Sueli Carneiro, ativista e feminista negra, doutora em Educação, nos explica muito bem: “os anseios das mulheres brancas e mulheres negras, são diferenciados devido ao racismo. O desejo de liberdade e ambas são particulares: para as mulheres brancas a luta contra o jugo patriarcal, para as negras a luta contra o jugo colonial, a escravidão e o racismo que lhe correspondeu”.  (CARNEIRO, 2004, P.5)

O que não podemos perder de vista é que, qualquer discurso trata de construção de sentidos. Quando escrevemos um texto fazemos escolhas discursivas, e, por isso, nos argumentos que colocam a legalização e a descriminalização do aborto como causa e provocadora de processos de eugenia social, está sendo dito, também, politicamente, quais vidas importam para as/os autoras/es destas defesas, falas, textos e discursos.  Percebemos também nestes discursos a reprodução de posicionamentos atravessados pelo racismo estrutural naturalizado, cuja dimensão e a violência simbólica que tais argumentos trazem passa despercebida, negada e silenciada. Portanto, tratar, de forma rasa, superficial e não verificável, a despenalização do aborto como um processo de eugenia social, desconsiderando deste processo as limpezas sociais e étnico-raciais que já estão e que sempre estiveram em curso, e as mulheres negras e pobres que morrem em decorrência de abortos precarizados, ilegais e criminalizados, é, sim, algo lamentável e muito grave. Mostra, mais uma vez, dolorosa e infelizmente, o que nós feministas negras dizemos: que “a vida das mulheres negras e pobres é a que menos importa, inclusive, para outras mulheres, como as mulheres brancas.”

Referências
ALENCASTRO, Catarina. Mulheres negras são 60% das mães mortas durante partos no SUS, diz Ministério. 26/11/2014. Acessado em: http://oglobo.globo.com/sociedade/mulheres-negras-sao-60-das-maes-mortas-durante-partos-no-sus-diz-ministerio-14655707#ixzz4RdHjz2NZ
Anistia Internacional. Jovem Negro Vivo. Acessado em: https://anistia.org.br/campanhas/jovemnegrovivo/
BERTH, Joice. 2016. facebook.
CARNEIRO, Sueli. A mulher negra na sociedade brasileira – o papel do movimento feminista na luta anti-racista. 2004
GOES, Emanuelle. Enquanto houver racismo para as mulheres negras o aborto sempre será inseguro, desumano e criminalizado. 02/10/2015. Acessado em: http://www.geledes.org.br/enquanto-houver-racismo-para-as-mulheres-negras-o-aborto-sempre-sera-inseguro-desumano-e-criminalizado/#gs.pIfa1KU
GONÇALVES, Ana Maria. É difícil fazer com que os “bem intencionados” entendam o racismo. 02/12/2016. Acessado em: https://theintercept.com/2016/12/02/e-dificil-fazer-com-que-os-bem-intencionados-entendam-o-racismo/?comments=1#comments
hooks, bell. Ensinado a Transgredir: a educação como prática de liberdade. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo Ed WMF Martins Fontes. 2013.
KILOMBA, Grada. O racismo é uma problemática branca. 30/03/2016. Acessado em: http://www.cartacapital.com.br/politica/201co-racismo-e-uma-problematica-branca201d-uma-conversa-com-grada-kilomba
RIBEIRO, Djamila. Vidas negras importam ou a comoção é seletiva?. 03/03/2016. Acessado em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/vidas-negras-importam-ou-a-comocao-e-seletiv
RIBEIRO, Djamila. A categoria do Outro: o olhar de Beauvoir e Grada Kilomba sobre ser mulher. 07/04/2016. Acessado em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/04/07/categoria-do-outro-o-olhar-de-beauvoir-e-grada-kilomba-sobre-ser-mulher/?utm_content=bufferf1ce1&utm_medium=social&utm_source=facebook.com&utm_campaign=buffer
SPIVAK, Gayatri Chakravory. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte. Ed. UFMG. 2010.

[1] Camila diz: “Entendo, como muitas/os pensadoras/es negras/os apontam, que o racismo é um problema de toda a sociedade, estrutural, que precisa ser debatido e superado por todas/os nós, em um movimento que exige de nós, pessoas brancas, “branquitude”: responsabilidade e disposição para encarar os fatos e a história e para ponderar sobre nossos privilégios e condições. Percebo agora, como mulher branca que sou, vivendo em um país racista, que eu também não posso mais me calar diante das opressões que as pessoas e as mulheres negras sofrem no Brasil, porque percebi que meu silêncio também compactuava com o sistema racista, que, para ser combatido, precisa ser apontado, nomeado e amplamente discutido, também pela branquitude e mesmo entre as pessoas brancas, mas, com o protagonismo das pessoas negras. Como feminista branca, entendo que também é tarefa das mulheres brancas sempre reconhecer as mulheres negras e visibilizar, apoiar suas pautas, lutas e perspectivas e apontar quando isso não acontece, sempre que possível. Sei que estou num processo, um passo depois do outro, aprendendo com as mulheres negras. Como diz Grada Kilomba, filósofa, artista e pesquisadora negra: “Racismo tem a ver com poder, com privilégios. A população negra não tem poder historicamente. Racismo é uma problemática branca, (…).” (KILOMBA, 2016)

Antonilde é cantora, cursa Bacharelado em Canto Lírico pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Ativista do Feminismo negro e integrante do Coletivo Atlânticas- Coletivo de Mulheres Negras da UFG e também do Coletivo Rosa Parks – que desenvolve Estudos e Pesquisas sobre Raça, Etnia, Gênero, Sexualidade e Interseccionalidades.

 

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