“O feminismo é anticapitalista e busca a libertação de todas as pessoas”, afirma Amina Mama
Em entrevista, compartilha suas reflexões sobre os desafios e avanços do feminismo africano e as implicações do neocolonialismo para as mulheres.
Produção: Kelly Ribeiro.
A escritora, ativista e acadêmica nigeriana-britânica Amina Mama é uma das feministas mais influentes do continente africano, reconhecida por integrar rigor acadêmico com ativismo político. Sua obra seminal Beyond the Masks: Race, Gender and Subjectivity (“Além das Máscaras: Raça, Gênero e Subjetividade”, em tradução livre), publicada em 1995, marcou profundamente o debate sobre identidade e poder, redefinindo os estudos de gênero e raça e abrindo novos caminhos para o feminismo, tanto na África quanto globalmente.
Mama é uma crítica incisiva do feminismo branco, que ela aponta como enraizado no colonialismo, capitalismo e racismo, temas centrais em sua obra e em sua abordagem feminista. Formada em Psicologia pela Universidade de St. Andrews, com mestrado na London School of Economics e doutorado pelo Birkbeck College, sua carreira acadêmica começou com a comparação das experiências de mulheres na Grã-Bretanha e na Nigéria.
Sua trajetória a levou à África do Sul, onde dirigiu o Instituto Africano de Gênero na Universidade da Cidade do Cabo e fundou, em 2002, a revista Feminist Africa (África Feminista). Desde 2010, Mama leciona nos Estados Unidos, onde integra o Departamento de Estudos de Gênero, Sexualidade e das Mulheres, na Universidade da Califórnia, em Davis.
Reconhecida por sua crítica ao militarismo global e ao neocolonialismo, e pela defesa de um feminismo anticolonial e anticapitalista, Amina Mama conversou com Mariana Prandini Assis, professora da UFG, e Paula Guimarães, do Portal Catarinas, durante o 13º Fazendo Gênero.
Nesse diálogo, ela compartilhou suas reflexões sobre os desafios e avanços do feminismo africano, as implicações do neocolonialismo para as mulheres e a importância de conectar academia e movimentos sociais. Ela também refletiu sobre como suas experiências pessoais e profissionais moldaram sua visão crítica e suas esperanças para o futuro do feminismo no Sul Global.
Amina Mama, é um prazer tê-la conosco. Conte-nos um pouco sobre você, sua trajetória e como sua vida pessoal se conecta com a acadêmica.
É um prazer conhecê-las. Na verdade, tenho ascendência brasileira. Minha mãe nasceu no Brasil há muitos anos, mas voltou para a Europa quando era criança. Eu não conhecia o Brasil até muito recentemente.
Cresci no Norte da Nigéria, numa cidade chamada Kaduna. Sou de ascendência mista. Meu pai foi um dos primeiros africanos a se tornar médico e abriu uma pequena clínica na capital administrativa onde morávamos.
Cresci numa família mestiça no Norte da Nigéria, que, como devem saber, é uma área fortemente islâmica. Minha família era de uma minoria étnica e, sendo cristã, também era uma minoria religiosa, por isso, crescemos muito autossuficientes.
Durante minha infância, a Nigéria estava predominantemente sob regime militar. Desde cedo, desenvolvi uma aversão ao totalitarismo, aos homens uniformizados, à injustiça, e testemunhei muita desigualdade.
Acho que, quando eu tinha nove anos, a guerra civil começou. Eu fui testemunha ocular, quando criança, de uma guerra civil, algo sobre o qual nossa escritora, Chimamanda Adichie, escreve. Embora eu não tenha percebido na época, essas experiências influenciaram minha psicologia, minha consciência e meu crescimento.
Quando a guerra chegou, fui mandada para um internato na Europa. Cresci entre minha casa no norte da Nigéria, onde era relativamente privilegiada, e os internatos ingleses para meninas, onde não havia outras crianças negras ou pardas. Isso me forçou a tomar consciência da raça de uma forma que eu não conhecia na Nigéria.
Por ser um país africano, todas as pessoas eram africanas e havia muita diversidade. Assim, me acostumei a mudar, a ter mais de uma identidade, e isso norteou minha escolha de ser psicóloga. Decidi não seguir medicina e me tornei uma cientista social, começando pela psicologia.
Você se identifica como uma acadêmica ativista. O que significa ser uma acadêmica ativista? Como o ativismo informa suas pesquisas, e qual o papel da academia no ativismo?
A razão pela qual me refiro a mim mesma como uma acadêmica ativista é porque fui uma ativista antes de me tornar uma acadêmica. Não escolhi essa direção; foi o caminho em que, por acaso, me encontrei ao voltar para a universidade para estudar.
Em parte, porque, especialmente para muitas mulheres africanas, a educação é realmente uma forma de perseguir sua liberdade tanto individual quanto coletiva. Eu estava evitando casar cedo, por isso fiz outra graduação. E depois, ainda evitando o casamento, fiz doutorado.
O doutorado não foi porque eu queria ser acadêmica, mas porque estava frustrada com o que havia aprendido na minha formação como psicóloga. Era uma psicologia colonial que patologizava pessoas não brancas e pessoas de múltiplas identidades. Isso me fez querer escrever um livro sobre a consciência política e pessoal das mulheres negras.
Escrevi uma tese analisando como raça e gênero constroem nossas identidades de maneira diferente da norma, que é a ideia branca, masculina e patriarcal de uma identidade única que se torna fixa em uma certa idade. Na verdade, crescemos em sociedades muito mais complexas, nas quais nossas identidades estão entrelaçadas – seja de classe, raça, gênero, religião ou etnia.
Na maior parte das localidades, há uma multiplicidade, uma fluidez e uma pluralidade na produção da identidade. Eu sabia disso intuitivamente e também sabia que não era louca; havia algo errado com a disciplina de psicologia. Então, escrevi uma tese criticando a cumplicidade da minha disciplina na produção de noções patológicas sobre pessoas negras e mulheres, inferiorizando as mulheres.
Isso, é claro, significou que eu nunca conseguiria um emprego na minha disciplina, por isso, nunca trabalhei como psicóloga. Também nunca consegui um emprego na Grã-Bretanha. Na década de 1980, as universidades não empregavam pessoas negras, por isso, meu primeiro emprego foi fazendo ativismo e pesquisa comunitária.
Os anos 1980 foram uma época de muita agitação urbana nas cidades britânicas, chamadas de “revoltas negras”. Eu morava em Brixton e entrei para um grupo feminista negro marxista-leninista quando tinha 20 e poucos anos. Devo muito da minha perspectiva política a essa experiência inicial de racismo e violência policial nas comunidades e à necessidade de desafiar esse estado de coisas.
É por isso que digo que, naquela época, ainda não era uma acadêmica; era mais uma ativista comunitária e fiz pesquisas comunitárias sobre política habitacional e violência contra mulheres negras. Escrevi o primeiro livro sobre violência contra mulheres negras da Grã-Bretanha. E ainda não estava pronta para voltar para casa.
O primeiro emprego acadêmico que consegui foi na Holanda. Fui contratada como professora no Instituto de Estudos Sociais em Den Haag, Haia.
E como hoje o seu trabalho ainda está ligado ao ativismo?
Na Holanda, eu lecionava em um programa de mestrado em estudos das mulheres e desenvolvimento. Nesse ponto, deixei de ser uma psicóloga com formação convencional para me tornar uma pesquisadora em desenvolvimento internacional e estudos de gênero.
Decidi seguir os estudos de gênero porque me permitiam transitar entre diferentes disciplinas. Nos estudos de gênero, você pode vir de qualquer área e recorrer à história, à política, aos estudos culturais ou à antropologia. Como cientista social africana, nenhuma das disciplinas tradicionais realmente funcionou para abrir nossos olhos à realidade e estudar nossas sociedades.
Assim, me vi viajando por diferentes disciplinas e me tornei uma estudiosa transdisciplinar, sempre tentando encontrar as ferramentas necessárias, o que significava ir além de uma disciplina para outra.
Quando voltei para a Nigéria, os militares haviam imposto uma moratória, e não havia empregos acadêmicos. Então, trabalhei como freelancer, uma mistura de jornalismo e pesquisa, e comecei a colaborar com outras pessoas para organizar centros e grupos independentes, ambos conectados a redes de mulheres para desenvolver estudos de gênero.
Embora não tivesse um emprego formal, consegui recursos para formar uma rede nacional de todas as feministas ou potenciais feministas, reunindo as mulheres que trabalhavam com ensino de gênero e estudos sobre mulheres nas universidades nigerianas. Fiquei lá por dez anos e tive meus dois filhos durante esse período.
Meu primeiro trabalho acadêmico de verdade foi na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul. Logo após o fim do apartheid, fui recrutada para criar currículos para africanos nas universidades sul-africanas, onde fiquei por quase dez anos.
E agora você vem ao Brasil para participar do Fazendo Gênero. Esta é a 13ª edição de um evento que tem conectado pesquisadoras e ativistas do Sul Global para pensar sobre questões urgentes em meio à crise do presente. Você poderia nos contar como tem sido sua experiência aqui e como avalia eventos como este para a mobilização feminista transcontinental?
Fiquei muito entusiasmada com o convite quando soube que o tema era uma ponte entre a academia, a sociedade civil e os movimentos sociais, porque é nisso que sempre acreditei. Não acredito na academia como uma torre de marfim; acho que a universidade deve ser universal e acessível a todos. Se é chamada de universidade, por que transformá-la em uma torre de marfim, separada das vidas, necessidades e desejos das pessoas? Ela deve ser a instituição que representa o epítome das esperanças e aspirações das pessoas em termos de educação e transformação social.
Para mim, e para quem compartilha dessa filosofia, é muito importante vincular intelectuais e pensadores aos movimentos sociais e entender que os movimentos também produzem conhecimento. Na sua forma convencional, a academia apenas se apropria, colhe e extrai conhecimento das comunidades, e sou uma grande crítica desse modo extrativista acadêmico. Acredito que as pessoas que têm o privilégio de serem intelectuais profissionais devem prestar um serviço aos nossos movimentos sociais e comunidades.
O Fazendo Gênero foi um lugar perfeito para eu conhecer o Brasil. Além do meu interesse pessoal pelo país onde minha mãe nasceu, que é quase anedótico, o Brasil tem várias características que o tornam de grande interesse para os países africanos. É um país enorme, com uma grande diversidade e múltiplas línguas, embora o português seja dominante. É uma potência regional, como a Nigéria, e que também enfrentou décadas de ditadura. Vejo que podemos aprender muito umas com as outras.
Eu realmente vim para aprender mais sobre o Brasil, o feminismo brasileiro, e para fazer conexões que levarei para o Fórum de Futuros Feministas do Sul, onde estamos realizando uma série de projetos em todo o Sul global. Essa é uma plataforma que reúne feministas asiáticas, latino-americanas e africanas. Estamos trabalhando no desenvolvimento de um Manifesto Feminista do Sul e na criação de um Centro de Conhecimento dos Futuros Feministas do Sul, que será um grande repositório e arquivo acessível de conhecimentos feministas do Sul.
A importância disso é que o feminismo, hoje em dia, pode ser todo tipo de coisa.
Há muitas feministas liberais brancas, até mesmo Hillary Clinton se autodenomina feminista, o que é muito perturbador. Precisamos repolitizar o feminismo e entender o que queremos dizer quando nos identificamos como feministas, porque é algo muito diferente – profundamente anticolonial, anticapitalista e voltado para a libertação de todas as pessoas, começando pelas mulheres, por razões óbvias.
Também me identifico como uma pessoa de estudos feministas e de gênero, mas estou em uma Faculdade de Ciências Sociais, o que é muito bom. Sempre luto com a disciplinaridade e meus estudos estão na interseção entre direito e política, mas penso ser importante para nós, que estamos fazendo um trabalho feminista e interdisciplinar, voltar às disciplinas para desafiar esses limites. Como você lidou com isso? Você teria algum conselho para jovens acadêmicas que estão, por um lado, lutando contra a forma como as disciplinas nos disciplinam, mas, ao mesmo tempo, estão conscientes de que nossa atenção para gênero e feminismos pode indisciplinar as disciplinas?
Tenho sido uma grande defensora da criação de espaços específicos para o pensamento feminista por causa da hostilidade e resistência das disciplinas à análise crítica de gênero. Passei grande parte da minha carreira construindo espaços seguros para as mulheres, não apenas para estarem fisicamente seguras, ou seja, livres de assédio, mas para terem o apoio, o conforto e a confiança para se desenvolverem intelectualmente.
No entanto, depois de tantos anos, percebo as limitações de falarmos apenas entre nós e de construirmos apenas o nosso campo. Precisamos de um campo forte como uma incubadora, para nutrir e aumentar a confiança e o poder político e intelectual das mulheres pensadoras, o que seria muito difícil de outra forma dentro da academia patriarcal. Contudo, também temos a responsabilidade de voltar às disciplinas e desafiá-las. Vemos isso acontecendo, por exemplo, na transformação da economia pela economia feminista ou na existência de um grande campo chamado psicologia feminista, que é muito diferente da convencional.
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Ao longo das décadas, o pensamento feminista começou a penetrar no mainstream. Contudo, ainda existem trilhas paralelas: há os estudos feministas e as disciplinas. Dentro das disciplinas, há feministas, mas o mainstream permanece. Por isso, apenas retornar às disciplinas não é suficiente. Não sei como obteremos o poder e a alavancagem epistemológica necessários para realmente transformar as disciplinas enquanto o patriarcado permanecer intacto e a academia continuar a ser uma instituição patriarcal, com uma cultura institucional que torna muito difícil a investigação crítica.
Portanto, acredito que precisamos de ambos. Precisamos ter nossos próprios espaços e precisamos influenciar o mainstream. Isso é o que constitui um movimento. É mover não apenas a nós mesmas, mas tudo ao nosso redor, cada disciplina, não deixar pedra sobre pedra. Precisamos ser como a água, e espalhar, inspirar e estimular mudanças em vários locais. Para fazer isso, devemos ser fortes e ter nossas próprias instituições para cultivar a próxima geração e possibilitar mudanças que vão além de nós mesmas e de nossos próprios espaços como feministas.
Mas é um trabalho árduo. Fiz muitas intervenções iniciais na comunidade africana de ciências sociais e devo dizer que falhamos. Agora, há muito mais mulheres se dedicando aos estudos feministas e de gênero na África. Há alguns homens dispostos a incluir gênero em suas análises, mas não o suficiente. O mainstream permanece intacto, como se nunca tivéssemos existido, fingindo que não existimos. E isso não é específico da África; é algo global. Portanto, precisamos pensar em quais estratégias usar para transformar o mainstream.
Para a minha geração, foi necessário criar nossos próprios espaços. Para a próxima geração, penso que retornar às disciplinas ou transitar entre os dois mundos é o que se faz necessário para desafiar o sistema patriarcal, que ainda parece tão forte.
Se olharmos para o mundo e o que está acontecendo além da academia, o patriarcado militarista, extrativista e capitalista é provavelmente o paradigma político e filosófico mais difundido na história humana. O neoliberalismo é extremamente difundido e consegue penetrar tudo. Nós também precisamos ser assim, capazes de nos infiltrar em todos os lugares.
No seu trabalho você argumenta, e estas são suas palavras, que “a maior ameaça externa às mulheres (e, por extensão, à humanidade), é o crescimento e a aceitação da cultura misógina, autoritária e violenta do militarismo, em todas as suas manifestações dentro das diversas instituições do complexo industrial militar capitalista global, à medida que estas são diversamente iteradas em todo o mundo”. Penso que sua reflexão é particularmente importante para nós porque uma das maiores lutas das mulheres negras aqui é o fato de que seus filhos são mortos todos os dias pela polícia. A polícia que está nas ruas brasileiras, ainda hoje militarizada, que deveria garantir segurança e tranquilidade para todas as pessoas, é na verdade a polícia que assassina jovens nas periferias e favelas. Você poderia explicar melhor para nossas leitoras como se dá essa relação entre o complexo industrial militar e a violência contra mulheres e comunidades?
Existe a violência direta de ser vulnerável à polícia, de ter nossos filhos vulneráveis ao policiamento coercitivo, que é a violência racializada do Estado. Mas há também toda a violência estrutural – as múltiplas marginalizações são também uma forma de violência que cria essa vulnerabilidade e a sustenta. É por isso que não gosto tanto da palavra interseção quanto de imbricação.
A imbricação de classe e suas manifestações através da raça e do gênero, não são separáveis. Se uma pessoa que é uma mulher negra está andando na rua e alguém bate nela, ela não sabe se isso aconteceu porque ela é da classe trabalhadora ou porque está andando na rua ou porque é negra ou porque é mulher. Porque no corpo, é tudo isso junto, essa é a experiência dela, e é nesse sentido que falo de imbricação.
Na realidade, a sociologia pode separar estas dimensões, mas na verdade elas estão imbricadas e juntas. Elas são analiticamente separáveis, mas corporal e materialmente não são realmente separáveis. Portanto, são ferramentas úteis para pensar, mas não para dar sentido à realidade. Mas o sistema funciona através dessas divisões e a forma como a injustiça e a desigualdade são organizadas tem tudo a ver com classe, raça e diferentes divisões sociais que interagem entre si.
Isso significa que o policiamento militarizado é uma expressão extrema, mas reflete todo o sistema. As ligações entre a injustiça econômica e a injustiça social são muito claras, e é por isso que falamos de um complexo industrial militar capitalista. E se alguém quiser ser empírico sobre isso, basta seguir o dinheiro, olhar para a economia política da indústria de armas globalmente. O quão lucrativo é para as potências imperiais, embora seja quase como se a guerra tivesse se tornado um produto de exportação. Os Estados Unidos e Israel estão entre os maiores produtores e exportadores de armas do mundo.
Eu sei que a violência se manifesta na Palestina, no Congo, na República Democrática do Congo, no Sudão. O complexo militar industrial está implicado nisso.
Não fabricamos armas na África e, no entanto, o continente está inundado de armas. E essa dinâmica está ligada ao extrativismo, porque a concentração de armas e de violência se dá nas zonas ricas em recursos.
O Delta do Níger, o Congo, são locais onde existem minerais e outros produtos essenciais para alimentar o capitalismo contemporâneo, o cybercapitalismo e a digitalização. E esses produtos vêm dos mesmos lugares que costumavam ser colônias. Portanto, há um padrão histórico estabelecido durante os tempos coloniais e que persiste até o presente, mantendo a maior parte do mundo em estado de subjugação, para que esses bens sejam extraídos e abasteçam o complexo industrial militar.
E essas são redes entre homens. Se analisarmos bem, as pessoas que estão a obter riqueza pessoal a partir da indústria de segurança e da exportação de armamentos são, na sua maioria, antigos militares que se tornaram consultores. Eles têm muita influência política. Então temos a política, os militares e a economia ligados em redes compostas principalmente por homens. É um complexo industrial militar patriarcal em operação, o qual temos que expor e desafiar.
Você mencionou a imbricação de raça, gênero e classe que molda as experiências das mulheres e revela nossa crise global. Gostaríamos de saber mais sobre a conexão entre os movimentos feministas e LGBTQIAPN+, e como você vê colaborações e apoios mútuos em suas lutas.
Posso falar um pouco sobre o contexto africano, onde temos uma assertividade crescente do feminismo e estamos aprendendo com as feministas latino-americanas e seus encuentros. Na África, temos agora um fórum feminista articulador que é uma resposta deliberada ao argumento de tantos homens africanos de que o feminismo é coisa de mulher branca e do Ocidente.
Argumentamos o contrário: na verdade, as mulheres ocidentais aprenderam que não precisavam usar espartilhos e que isso não foi ordenado por deus porque viam, quando viajavam para o nosso continente, outras mulheres a gerir a economia e os negócios, a construir casas. Isso lhes abriu os olhos. E o feminismo tornou-se possível no contexto do transnacionalismo.
Não creio que tenha surgido em uma aldeia, por si só. É por contato. E vemos o feminismo crescer na África crescer através de ligações cosmopolitas. Portanto, há gênese e dinâmica local, violência nas comunidades, direitos tradicionais que são violentos para as mulheres, que geram consciência feminista. Mas há também a exposição a outras culturas e outras civilizações que faz crescer o feminismo. Então, desde 2006 temos o Fórum Feminista Africano e somos muito mais mulheres dispostas a assumir-se feministas.
Já a relação com o movimento LGBTQI é um tema muito complexo. No contexto africano, a mobilização das pessoas LGBTQ foi principalmente defensiva porque estavam sendo atacadas. E esses ataques a pessoas queer em vários países africanos não surgiram do nada. São regimes repressivos e ditatoriais alimentados especificamente pelas atividades de igrejas evangélicas estadunidenses em busca de missão porque talvez tenham perdido terreno nos EUA. Todas começaram a visar determinados países africanos e a espalhar a homofobia, o ódio e o patriarcado bíblico. E porque os africanos são, na sua maioria, demasiado religiosos, se tornam muito vulneráveis à influência de igrejas evangélicas poderosas e ricas.
Então estes evangelistas voam para um país como Uganda e patrocinam um membro do parlamento que desenvolve o projeto de lei anti-homossexualidade. Assim, os ataques às pessoas LGBTQI não é um fenômeno africano, mas está acontecendo por causa dessas intrusões coloniais através das igrejas, fomentando novos tipos de ódio e misoginia que não existiam antes. E a homofobia e a misoginia estão no mesmo campo. Diante de uma dinâmica interna de frustração e de desapropriação em massa da população, apontar para pessoas que ameaçam a família tradicional e os valores tradicionais é uma boa tática diversionista para um ditador.
Na tradição africana havia mais tolerância. A homofobia e o linchamento de pessoas gays, assim como o espancamento de mulheres e o feminicídio, não são parte de uma tradição africana. Essas coisas começam a acontecer e temos que nos opor a elas. A relação entre o movimento de mulheres e o LGBT, o que testemunhei na Uganda para ficar com um exemplo, foi que, quando as primeiras mulheres lésbicas começaram a se assumir e foram atacadas, elas abrigaram-se no movimento de mulheres.E o movimento das mulheres teve que se educar para se tornar um aliado.
Então, naquele país em particular, não é mais aceitável afirmar ser feminista e ser homofóbica. Isso é uma mudança. E a homofobia não veio originalmente do Estado, mas da igreja que depois pressionou o Estado. O próprio Presidente Museveni não queria a lei que criminaliza relações entre pessoas do mesmo sexo, porque isso prejudicaria sua reputação e ajuda internacional.
Mas, devido à própria sobrevivência na política local, ele não pode opor-se e o projeto de lei foi aprovado. Há agora um projeto semelhante sendo contestado em Gana, onde estive recentemente. E, novamente, o presidente não quer essa medida criminalizante, mas a maioria religiosa é muito forte como grupo de interesse político e as eleições estão próximas. O atual presidente está protelando o processo legislativo e a questão foi levada ao Supremo Tribunal na semana passada.
Estamos observando para ver o que acontece. As feministas de Uganda estão em contato com as feministas de Gana e podem aconselhar-se umas às outras. E há vários outros países onde este ódio tóxico está sendo espalhado, em grande parte através da igreja.
Mas há também uma série de países que estão legalizando o casamento gay, como a África do Sul, que foi pioneira E outros países ao redor da África do Sul estão descriminalizando a homossexualidade, como a chamam. E temos movimentos queer florescendo porque, quando as pessoas estão sob ataque, elas têm que se unir e isso aumenta a consciência coletiva. Então estamos vendo a emergência de maior organização LGBTQ e queer.
E penso que, se há algo que o movimento antigênero tornou explícito, é esta ligação profunda entre as questões das mulheres e LGBTQIAPN+.
Sim, e a importância da sexualidade e a necessidade e o desejo da liberdade sexual é o que partilhamos. Portanto, temos interesses comuns. Mas isso não quer dizer que todas as pessoas LGBTQ sejam feministas. Há muita misoginia entre certas comunidades gays masculinas que são antifeministas. E precisamos de identificar isso e não ser ingênuas ao estender nossa solidariedade a todos. No final, depende do tipo de política sexual e de gênero que as pessoas têm e se podemos ter uma causa comum.
Na sua conferência de abertura do Fazendo Gênero, você mencionou a importância de centrar as mulheres palestinas na nossa solidariedade, no nosso discurso e na nossa prática hoje. Então, o que podem os movimentos feministas e nós, como ativistas, fazer concretamente para apoiar a causa palestina?
Eu mencionei que formamos uma Rede Pan-Africana de Solidariedade Feminista. É um grupo de WhatsApp através do qual obtemos muitas informações. E há palestinas no grupo, então levamos a questão para elas. A primeira coisa que fizemos foi nos informar sobre as feministas palestinas. Lemos o que elas estão dizendo e descobrimos que é uma articulação anticolonial e revolucionária do feminismo com a qual podemos nos identificar, temos uma causa comum.
Mas, em termos concretos, todas, em todos os países, têm a responsabilidade de olhar para a sua própria política governamental e, se ainda não reconheceram a Palestina, como fez o Brasil, fazer pressão e exigir que seus governos a reconheçam.
Além disso, exigir o cessar-fogo e rastrear e identificar os fabricantes de armas e todos os diferentes componentes da cadeia de abastecimento de armas. E buscar detê-los. Mas a resposta mais simples é olhar para a campanha palestina global, que é o BDS -Boicote, Desinvestimento, Sanções. Acesse o site do BDS para obter informações e formas de ação que podem ser tomadas e para descobrir quem está sendo alvo do boicote. Trata-se de estratégia bastante sofisticada, que não boicota tudo de uma vez, mas tem como alvo fornecedores e indústrias específicas em momentos específicos.
Portanto, apoie de modo absoluto o movimento palestino, que é principalmente sobre o isolamento de Israel na comunidade internacional. Boicote-o, desfaça-se de Israel, especialmente da indústria de armas. E aplique sanções. Essa é uma boa estratégia que levou ao fim do apartheid na África do Sul.
E é por isso, claro, que a África do Sul está liderando nesta matéria.
Muito obrigada, Amina!