A Constituição não prevê a garantia do direito fundamental à vida desde a concepção. Essa constatação é reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade, a ADI 3510, que discutiu a constitucionalidade da pesquisa com células-tronco embrionárias. “Vida humana já revestida do atributo da personalidade civil é o fenômeno que transcorre entre o nascimento com vida e a morte”, demarcou o então ministro relator Carlos Ayres Britto em seu voto.

O-direito-a-vida-comeca-na-concepca-voto-ayres-brito-ADI-3510
Trecho do voto de Ayres Britto na ADI 3510.

No voto contrário à procedência da ADI, Ayres Britto argumentou que o embrião, o feto e a pessoa humana são realidades distintas, não devendo ser confundidas, confirmando que a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana e ao direito à vida se destina apenas às pessoas já nascidas. 

Embrião e feto têm direitos constitucionais?

De acordo com o STF, o embrião e o feto não possuem o mesmo status que uma pessoa já nascida. O conceito de vida, conforme a Constituição, deve ser interpretado de forma ampla, abrangendo tanto aspectos biológicos quanto biográficos. Como analisado por Ayres Britto, não há uma “pessoa humana embrionária”, mas sim um “embrião de pessoa humana”, que merece proteção legal vinculada à garantia que a própria Constituição dispensa à “pessoa humana propriamente dita”.

O-direito-a-vida-comeca-na-concepca-voto-ayres-brito-ADI-3510.
Trecho do voto de Ayres Britto na ADI 3510.

“Vida, no texto constitucional (art. 5º), não será considerada apenas no seu  sentido biológico de incessante autoatividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva”, afirmou o então  ministro em seu voto. 

O que diz a ADPF 442 sobre o aborto?

Em consonância, a ex-ministra Rosa Weber, relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 442, sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, argumentou que o texto constitucional não atribui ao embrião ou feto a titularidade de direitos fundamentais. “Aos nascidos, então, de acordo com a leitura textual e sistemática da Constituição, é atribuída a titularidade dos direitos fundamentais”, assinalou em seu voto.

Ainda no voto, Weber reforçou que “não há que se falar em direito fundamental à vida do embrião ou feto”, concluindo que a proteção constitucional é conferida apenas à pessoa nascida. A ministra observou que a proposta de incluir a proteção ao direito à vida desde a concepção foi rechaçada durante a elaboração da Constituição. 

“A proteção do nascituro, considerada a expressão do valor da vida humana em potencial, não coincide com o regime jurídico dos direitos fundamentais, seja quanto ao critério da titularidade seja quanto ao âmbito de proteção”, apontou a então ministra. 

Ao sustentar a descriminalização do aborto, Weber concluiu que “o argumento do direito à vida desde a concepção como fundamento para justificar a proibição total da interrupção da gestação, por meio da tutela penal (…) não encontra suporte jurídico no desenho constitucional brasileiro”.

Direitos do nascituro: o que diz o Código Civil?

O Código Civil brasileiro, em seu artigo 2º, garante certos direitos ao nascituro, desde que condicionado ao nascimento com vida. Isso significa que os direitos do nascituro, como a herança, são relativos e dependem do nascimento com vida. A proteção conferida ao nascituro é predominantemente patrimonial e não equivale à titularidade plena de direitos fundamentais como a pessoa já nascida.

O-direito-a-vida-comeca-na-concepcao-codigo-civil
Trecho do Código Civil.

O Código Civil, em seu artigo 2º, garante certos direitos ao nascituro, mas condiciona a personalidade civil ao nascimento com vida. Isso implica que os direitos do nascituro são relativos e não equivalentes aos de uma pessoa nascida. Conforme está expresso: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

No entanto, tais direitos são predominantemente patrimoniais e se efetivam apenas com o nascimento com vida. A proteção conferida ao nascituro é limitada e subordinada aos direitos da pessoa nascida, que possui personalidade civil plenamente reconhecida. Em situações específicas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhece a proteção do embrião ou feto, geralmente em casos de alimentos gravídicos ou indenizações para a pessoa gestante.

Teorias sobre a personalidade civil no Brasil

A legitimação dos direitos do nascituro ainda é tema de discussões e a doutrina tende a seguir três teorias diferentes acerca do início da personalidade civil: a teoria natalista (segundo a qual o início da personalidade civil depende do nascimento com vida), a teoria da personalidade condicional (quando o nascituro teria direitos patrimoniais condicionados ao nascimento com vida) e a teoria concepcionista (quando nascituro é pessoa titular de direitos resguardados por lei desde a concepção).

Embora não haja consenso na jurisprudência, o Supremo Tribunal Federal, responsável pela interpretação da Constituição, adotou a teoria natalista ao julgar a ADI 3510. Isso reafirma que a personalidade civil se inicia com o nascimento, prevalecendo sobre outras normativas.

A visão internacional sobre o direito à vida desde a concepção

No direito internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Artavia Murillo vs. Costa Rica, concluiu que a proteção ao direito à vida “em geral, desde o momento da concepção”, como prevista no Pacto de San José da Costa Rica, não confere ao feto ou embrião status de pessoa. A corte apontou ainda que “não é procedente conceder o status de pessoa ao embrião”. 

O Sistema Interamericano destacou que “o objeto direto de proteção é, fundamentalmente, a mulher grávida, em vista de que a defesa do não nascido se realiza essencialmente através da proteção da mulher”.

Além disso, ressaltou que a concepção acontece exclusivamente dentro do corpo da pessoa que gesta.

Essa leitura reforça que, tanto no direito brasileiro quanto no internacional, os direitos do embrião e do feto são limitados e condicionados, sem equivalência aos direitos da pessoa nascida.

A pessoa nascida, com uma trajetória própria — incluindo suas possibilidades pessoais, sociais e jurídicas — é que detém plena personalidade civil e a titularidade de direitos fundamentais. Como refletiu Ayres Britto: “Essa pessoa humana, agora sim, é tanto parte do todo social quanto um todo à parte. Parte de algo e um algo à parte.”

O jornalismo independente e de causa precisa do seu apoio!


Fazer uma matéria como essa exige muito tempo e dinheiro, por isso precisamos da sua contribuição para continuar oferecendo serviço de informação de acesso aberto e gratuito. Apoie o Catarinas hoje a realizar o que fazemos todos os dias!

Contribua com qualquer valor no pix [email protected]

ou

FAÇA UMA CONTRIBUIÇÃO MENSAL!

  • Paula Guimarães

    Jornalista e co-fundadora do Portal Catarinas. Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, pós-graduada...

Últimas