O Museu Nacional em chamas deixou o Brasil e o mundo internacional chocados. Acervos perdidos. Irrecuperáveis. Memória nacional transformada em cinzas. Patrimônio arquitetônico em total risco. De quem é a responsabilidade?. Ao perguntar, a imprensa já sabia das respostas. Tratava-se de uma tragédia anunciada. Em 1995, notícias ganharam a televisão e os jornais sobre enchentes e cupins na estrutura de madeira do Museu Nacional. Salas de exposição foram fechadas no decorrer das décadas, algumas reabertas. Notícias em 2003, em 2015, entre tantas outras anunciavam e recontavam a precariedade das condições materiais.
Como antropóloga, em contato com colegas antropólogos que ensinam e pesquisam no Museu Nacional, acompanhei-os no emudecimento e na indignação. Poucos conseguiram dar depoimentos. Quem deles e delas não se chocaram ao se deparar com as chamas no Museu Nacional ou receber whatsapps do que acontecia? Estarreceram-se. Não porque não soubessem da precariedade material do espaço em que trabalhavam.
Os pesquisadores já sabiam. A comunidade antropológica de todo Brasil já sabia. O privilégio de trabalhar no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista contrastava com a precariedade visível das condições materiais e da vivência do risco pela chuva, pelos cupins nas madeiras, pelas instalações elétricas de todo o Museu. Colegas já me disseram: o que fazer? Se as verbas solicitadas são consideradas impossíveis nas mediações com o Ministério de Educação? Onde se concentrava o esforço dos pesquisadores? No cuidado com a coleção do acervo etnológico, no cuidado da qualidade do ensino e da pesquisa. E nas constantes, e insistentes solicitações de mais recursos pelos dirigentes e pesquisadores para a manutenção do Museu. A precariedade e os riscos eram percebidos claramente, mas as negativas tão constantes tornaram-se quase “realidades objetivas”.
Acervo etnológico em cinzas
A Antropologia Social perde um acervo único da diversidade cultural dos povos indígenas e das conexões África e Brasil conseguido através de pesquisas etnográficas e etnológicas e de doações, além de objetos de culturas do Pacífico. Acervo irrecuperável. Nada sobrou da coleção etnológica. O acervo etnológico está organizado em quatro coleções: Brasil Indígena; Karajás_Plumárias e Etnografia; Kumbukumbu: África, memória e patrimônio e Culturas do Pacífico. Hoje a visita somente pode ser virtual.
Entre tantos objetos a serem vistos, perdemos bonecas de cerâmica Karajás atributo exclusivamente das mulheres. O modo de fazer tradicional Karajá está sendo objeto de um processo para registro do saber como patrimônio imaterial brasileiro.
Perdemos um conjunto de máscaras Tikuna que representam os “encantados”, entidades sobrenaturais que visitam os indígenas durante a “Festa da Moça Nova”, ritual de passagem que prepara a menina para as responsabilidades da vida adulta. Perdemos um trocano, adquirido pela Comissão Rondon, grande tambor de fenda do povo Tukano que habita o noroeste do Amazonas, utilizado para a comunicação entre as malocas e para contato com o criador dos homens e do mundo.
Perdemos a coleção Kumbukumbu (palavra swahili) de objetos africanos trazidos de diferentes partes do continente entre 1810 e 1940, acrescidos de outros que pertenceram ou foram produzidos por africanos ou seus descendentes no Brasil entre 1880 e 1950. Perdemos uma peça de tecido chamado Alaká, feito em tear a partir de tiras costuradas, da África ocidental, século XX, e que foi comprada pela antropóloga Heloísa Alberto Torres em Salvador, Bahia em 1953. Digno de nota a publicação de um livro guia da exposição que visa também a divulgação da história africana e das conexões entre África e Brasil.
Perdemos bordunas, clavas, enxós e remos cerimoniais usados por chefes e reis, peças oriundas das Ilhas Marquesas, Nova Zelândia e Fiji. Perdemos artefatos usados em práticas agrícolas, de caça e de adorno da Austrália e Papua Nova Guiné.
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A Antropologia Biológica perde importantes itens de acervo e de pesquisa: Cabeça Mumificada; Múmia em Território Brasileiro; Crânio humano de indivíduo feminino; e a Reconstituição de indivíduo humano de sexo feminino (Luzia).
A Casa Perdida
A Antropologia Social perde um importante espaço de trabalho, espaço de vida, de encontros entre professores e estudantes, de laboratórios de pesquisa e de seus acervos de pesquisa. Tal como referido pelos colegas que lá trabalham, o Museu é mais que um espaço de trabalho. É um espaço vivo. É a Casa.
O primeiro programa de pós-graduação de antropologia social, segundo a nova legislação da pós-graduação brasileira, foi criado em 1968 e se deu no Museu Nacional, hoje reconhecido como da qualidade máxima pela CAPES.
São 9 professoras/pesquisadoras e 11 professores/pesquisadores na vivência cotidiana. Professores que convivem com aqueles cinco outros que já se foram, mas que permanecem presentes na memória do espaço da Casa. São 88 doutorandos e 37 mestrandos a percorrerem as salas do Museu, as aulas e as orientações.
O ensino e a pesquisa podem ser recompostos em outro espaço, mas não será o mesmo lugar de vivência entre pesquisadores, a mesma Casa e muitos de seus dados de pesquisa estão já apagados, destruídos.
A Antropologia Biológica no Museu Nacional se situa no espaço do curso de pós-graduação em Arqueologia. Arqueologia e Antropologia Biológica, disciplinas irmãs da Antropologia Social sofreram o mesmo baque terrível da Casa perdida e das coleções transformadas (quase totalmente) em cinzas.
De quem a responsabilidade?
Já ouvi uma voz entrevistada pela imprensa dizer que a responsabilidade é da UFRJ ou de uma suposta má gestão. Não é assim. Faltam verbas. Museus universitários em especial não são prioridade. Verbas que advêm do Ministério de Educação para as Universidades, devem se dividir entre custeio, pessoal e investimentos. Cada vez mais os gastos obrigatórios de pessoal tomam maiores fatias do pouco que é atribuído à Universidade. As verbas de manutenção do Museu Nacional que deveriam estar em torno dos R$ 520 mil anuais desde 2014, chegaram a cerca de 300 mil em 2017 e em 2018, foram recebidos apenas e até então R$ 53 mil. Programa televisivo (Globo News) atesta que, nos últimos anos, cerca de R$ 560 mil foram gastos com lavagem de 83 carros oficiais. Universidades e Museus, ciência e cultura, não são prioridades.
Sequer o Ministério da Cultura, ou o Instituto Brasileiro de Museus ou o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tem orçamento para os museus universitários. Seu orçamento mal suporta seu funcionamento.
Além das verbas universitárias insuficientes mesmo para a manutenção, há apenas uma política de editais. Editais são eventuais e nem sempre destinados para o que cada Museu necessita. O Edital do BNDS que permitiria reforma e revitalização e prevenção de incêndio veio tarde demais.
A política dos últimos governos desde os noventa não priorizaram construir uma política eficiente de gestão para os museus e patrimônio histórico e deixaram invisíveis os museus universitários. A responsabilidade governamental em relação ao Museu Nacional vem de longa data.
A política deliberada do atual governo, ao cortar gastos, contribuiu drasticamente para diminuir os recursos necessários à ciência, à tecnologia, à cultura e à educação atingindo irrecuperavelmente a preservação da memória nacional simbolizada pelo Museu Nacional e atingindo um dos primeiros centros de produção de pesquisas e de cultura em que a Antropologia participa de forma indiscutível. Transformaram-se em cortes aos direitos culturais à preservação da memória do Brasil e à produção de ciência. Museu Nacional que representou um dos primeiros centros de pesquisa e de cultura. Onde a Antropologia sempre esteve presente. Onde sempre estiveram presentes gerações de visitantes advindos das mais diferentes classes sociais.
*Professora Titular de Antropologia da Universidade de Brasileira (UNB) e presidenta da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).