A professora da etnia Sateré-Mawé é pré-candidata ao legislativo catarinense pelo PSOL

O anúncio da pré-candidatura de Ingrid Silva de Assis como deputada estadual pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em Santa Catarina, ocorreu durante a plenária da Articulação das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, na 18° edição do Acampamento Terra Livre, mobilização anual dos povos indígenas que aconteceu entre os dias 4 e 14 de abril, em Brasília. 

Junto com a liderança Guarani Kerexu Yxapyry, pré-candidata ao Congresso Nacional (leia a entrevista exclusiva), Ingrid compõe a bancada do cocar no estado, em contraposição, principalmente, ao governo do presidente Jair Bolsonaro, responsável pelo “desmonte sem precedentes das instituições e políticas específicas conquistadas pelos povos indígenas a partir da Constituição de 1988”, segundo o Manifesto Vamos Aldear a Política da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Mulheres indígenas aldeiam a política.
Kerexu Yxapyry, pré-candidata à deputada federal, e Ingrid Sateré-Mawé, pré-candidata à deputada estadual no ATL. Foto: Arquivo Pessoal

Professora por formação, Ingrid é do povo Sateré-Mawé do Amazonas, em Manaus, e vive em Santa Catarina há mais de 15 anos. Sua trajetória em defesa dos povos indígenas, da educação, do meio ambiente e do bem viver começou ainda jovem e é parte fundamental da sua experiência como mulher indígena em contexto urbano.

Esta não é a primeira corrida eleitoral que participa. Em 2018, foi a primeira indígena a concorrer ao cargo majoritário de governadora pelo Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), ao qual estava filiada. Agora, atende ao chamado do movimento indígena para dar continuidade à resistência ancestral. 

Nesta entrevista exclusiva, Ingrid Sateré-Mawé conta a sua trajetória de ativismo vinculada à comunidade escolar, os desafios de ser pré-candidata em Santa Catarina e a aproximação dos movimentos indígenas da política institucional. 

Ingrid (segunda da direita para esquerda) durante apresentação da pré-candidatura no ATL, em Brasília. Foto: Inara Sateré-Mawé.

CONFIRA A ENTREVISTA: 

Catarinas: Você poderia contar sobre a sua trajetória de vida, ativismo e trabalho político, destacando o que te motiva a ser pré-candidata a deputada estadual em Santa Catarina?

Ingrid Assis: Aos 15 anos, começo com minha atuação política no grêmio estudantil, na luta pela meia passagem estudantil, notando algumas faltas que existiam na educação, e me envolvendo com a questão da defesa do meio ambiente. Todas essas experiências, dos 15 aos 34 anos, passaram pela comunidade escolar. 

Fui coordenadora geral do Sindicato dos Trabalhadores de Educação (SINTE) Regional de São José, na Grande Florianópolis, depois fui dirigente sindical na Central Sindical e Popular Conlutas. Atualmente, milito no Movimento Social Bem Viver. 

Eu sempre defendi a educação pública de qualidade e laica, respeitando toda a diversidade das culturas, tradições, espiritualidade dos diversos povos que nós temos, e reverenciando as populações indígenas, os povos originários. Atuo para que as pessoas possam entender que território é qualquer lugar onde a gente habita, e esses territórios precisam de cuidados, prezando pela saúde, educação, segurança e pelo bem viver. A minha pré-candidatura é motivada pelo bem estar das pessoas, pela promoção de políticas públicas para que possamos caminhar para outro rumo.  

Catarinas: Há quanto tempo você vive em Santa Catarina? Quais são, as lutas que você vem travando nesse território, vinculadas à sua experiência de ser uma indígena em contexto urbano?

Ingrid Assis: Este ano completa 16 anos que eu moro em Santa Catarina. As lutas com o movimento indígena começaram unindo forças com as demais lideranças Guarani, somando à luta que eles já travam há muito tempo pela demarcação da Terra Indígena do Morro dos Cavalos. Na cidade, elas se deram a partir das demandas que foram surgindo. Fiz uma aproximação da juventude, conheci os indígenas que estudam na UFSC e me uni à luta pela moradia estudantil indígena dentro da Universidade Federal. Sempre trabalhei em torno da educação diferenciada dentro dos territórios, até porque sou professora e minha atuação sempre foi nesse âmbito.

Busquei sempre aprender com as lideranças e participar dos Acampamentos Terra Livre, atuando na comunicação colaborativa, registrando tudo o que acontece para dialogar e mostrar aos não indígenas o que acontece a partir da nossa perspectiva.  

As lutas no território vinculadas à minha experiência de estar em um contexto urbano está baseada em uma tarefa, que eu escutei de lideranças indígenas: a de dialogar com os não indígenas para fazer com que as pessoas que estão em contexto urbano possam lutar pelo direito dos povos indígenas, ao mesmo tempo que respeitam essa diversidade e transmitir nossa capacidade de falar de qualquer assunto. Nós estamos lutando pela mesma causa de bem estar coletivo, apenas com uma cultura e uma linguagem diferente. 

Viver na cidade me fez aproximar mais o movimento sindical, as organizações, os movimentos sociais do movimento indígena e isso é de suma importância para a minha luta aqui em Santa Catarina.

Assessora da mandata Coletiva Bem Viver (PSOL), Ingrid participou de sessão na Câmara de Florianópolis neste 19 de abril. Foto: Divulgação.

Catarinas: O processo eleitoral de 2020 foi o de maior participação indígena na história do nosso país. De acordo com o TSE, foram 2111 candidatos indígenas, aumento de 88,51% em relação a 2016. “Demarcar territórios e aldear a política” foi o mote do Acampamento Terra Livre que terminou na última semana. O que vem provocando essa aproximação dos povos indígenas com a política institucional?

Ingrid Assis: A aproximação dos povos indígenas é provocada,  justamente, pelo terrível momento que vivemos, com o aumento do desmatamento, da mineração, do genocídio, que mostrou sua cara de uma forma bastante perversa na pandemia de Covid-19. Nós, infelizmente, perdemos muitos dos nossos e isso também implicou no avanço da invasão dos territórios indígenas. 

Tivemos um momento importante em 2018, que foi eleger a primeira deputada federal indígena, a nossa deputada Joenia Wapichana. Ela nos mostrou a necessidade de ocupar esses espaços enquanto mulheres indígenas, porque estamos na ponta da lança defendendo os territórios, lutando nos grandes centros pela aplicação das leis garantidas na Constituição (educação, saúde, segurança) e, também, por qualidade de vida, para que os povos indígenas possam continuar vivendo em seus territórios ancestrais. 

A nossa aproximação da política institucional também é pelo combate à violência contra a mulher, pela segurança alimentar, pela segurança das nossas crianças; para que a gente possa, junto com uma bancada do cocar nas Assembleias Legislativas e na Câmara dos Deputados, combater todas as políticas anti-indígenas que têm aumentado durante a atuação do atual Governo Federal. 

Torna-se necessário agir para que possamos garantir os nossos direitos, que, mesmo após 34 anos da promulgação da Constituição, não vêm sendo cumpridos.  

A bancada do cocar é para se contrapor, principalmente, à bancada ruralista, que faz leis anti-indígenas, mas, também, para cobrar dos partidos que não colocam as nossas pautas como prioridades. Sentimos a necessidade de falar sobre política, de constituir um grupo que esteja formado politicamente para defender as pautas do movimento indígena e, de fato, não ficarmos estagnados na questão da representatividade. 

Queremos participar das eleições de maneira igual e queremos ganhar as eleições para participarmos das discussões, criarmos leis de acordo com as perspectivas de cada povo, respeitando suas diferenças e a sua autonomia, já que isso não foi feito até agora. Decidimos apresentar nomes que vão defender essas pautas. 

O movimento é de aldear a política com os nossos cocares, com o genipapo e com o urucum. É dessa forma que vamos ocupar, com os nossos corpos vamos demarcar esse espaço institucional.

Entrevistada está ao lado de Sônia Guajajara, pré-candidata à deputada federal por São Paulo, no ATL. Foto: Braulina Baniwa.

Catarinas: Quais são os principais desafios que enfrenta uma candidatura tão representativa como a sua – mulher, indígena, mãe, educadora e ecofeminista – em Santa Catarina?

Ingrid Assis: Com toda essa diversidade que você citou, o desafio é maior. Quando falamos de questões financeiras, falta estrutura para que uma mãe possa fazer uma candidatura, falta apoio psicológico para lidar com as condições que enfrentamos como mulher, com toda essa violência voltada aos nossos corpos. Esses são desafios que não deveriam ser tão difíceis se tivéssemos o apoio necessário que o partido deveria dar, mas, infelizmente, é uma grande barreira.  

Além de toda a dificuldade que encontramos por sermos mulher, mãe, indígena, feminista, professora, temos um obstáculo gigantesco que não deveria existir, mas ainda existe, que é a falta de apoio dos partidos políticos em colocar pré-candidaturas com toda essa diversidade com destaque. Infelizmente, somos colocadas em uma situação onde o homem branco cis tem as suas prioridades e privilégios, próprios da sociedade capitalista e patriarcal, que são refletidos nos partidos políticos. Esse é um dos maiores desafios para a nossa pré-candidatura.

Catarinas: Atualmente, de 40 parlamentares na ALESC, somente 6 deputadas são mulheres, o que mostra uma desigualdade de representação muito grande na política estadual. Além disso, todas as representantes são mulheres brancas e nem todas defendem as pautas do feminismo. Como podemos superar este cenário?

Ingrid Assis: Para superar esse cenário é simples. Temos que eleger mulheres, mas não somente. Mulheres que estejam comprometidas com as pautas das mulheres feministas, das mulheres que lutam pelo bem estar de todos. Quando falamos de feminismo não é somente a pauta das mulheres, é uma pauta de toda a sociedade. Para isso, precisamos estudar, verificar quem são as mulheres com esse perfil, para que possamos elegê-las como nossas representantes e mudar esse cenário, porque sem nós nada será feito. Além de mulheres brancas, precisamos eleger mulheres indígenas e negras, mostrando essa diversidade e trazendo as pautas necessárias para a gente superar e avançar esse cenário de tamanha desigualdade da representação real da nossa sociedade.

Catarinas: Quais as principais pautas que você gostaria de trazer durante a pré-campanha, a campanha e, posteriormente, dentro da ALESC?

Ingrid Assis: A nossa candidatura é popular, voltada para os trabalhadores e trabalhadoras, voltada a defender o meio ambiente, os direitos da mulher, das nossas crianças, através dos pilares da educação, da saúde, da segurança, da cultura. Não somente defendendo os direitos dos povos indígenas que vivem em contexto urbano, mas também defendendo os direitos daqueles que estão nos territórios ancestrais como o povo Xokleng, o povo Kaingang e o povo Guarani. Para manter seus territórios seguros e autônomos, as demarcações têm que ser feitas e o respeito aos povos indígenas tem que ser garantido. 

Durante Acampamento Terra Livre, indígenas ocupam parte da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Foto: Ramon Gusso.

Catarinas: Devido à sua trajetória na educação e a proximidade do 19 de Abril, como as escolas não indígenas podem ressignificar essa data, promovendo um ensino livre do racismo e que valorize a pluralidade dos povos originários?

Ingrid Assis: O dia 19 é um dia para ressaltar toda essa resistência, a luta dos povos indígenas, essa pluralidade, essa diversidade dos 305 povos e de 274 línguas. Hoje, vemos o mês de abril como o Abril Indígena. Tentamos tirar essas questões centralizadas no dia 19, porque na colonização, quando os invasores chegaram, quiseram dizer que nós éramos apenas um só povo, com as falácias mais cruéis, envolvendo racismo e a desvalorização dos povos que aqui viviam.

É importante que se cumpra a Lei Estadual 17.678/19, que intitula a Semana dos Povos Indígenas, proposta pela deputada Luciane Carminatti (PT). Além de defendermos o Projeto de Lei 5466/2019, que hoje está no Senado, da deputada Joenia Wapichana, que propõe a mudança do nome “Dia do Índio” para “Dia da Resistência dos Povos Indígenas”. Isso tem um significado importante, porque mostra a diversidade dos povos indígenas. 

Temos a oportunidade de descolonizar as mentes e fazer com que as nossas crianças e nossa população saiam desse analfabetismo colonizador que esconde a verdadeira história do povo brasileiro. 

É muito importante que essas leis sejam aplicadas e cumpridas para que possamos andar por um caminho onde enxerguemos a diversidade, o respeito, o verdadeiro combate ao racismo e ao preconceito, que é muito doloroso para uma criança. 

Compartilhando um pouco da minha experiência, eu não quero mais ver nenhuma criança sofrendo o que eu sofri, quando eu ia para a escola e me chamavam de “índia” num sentido pejorativo, uma coisa que não era bom. Eu chegava em casa e colocava um prendedor de roupa no meu nariz para ele afilar, não queria sair de dia para pegar sol, usava uma maquiagem mais clara. Tem toda essa situação que eu não quero mais que as nossas crianças passem. Que os nossos adultos possam defender quem eles são, sem precisar se esconder ou negar sua cultura, a sua espiritualidade. 

Esse é um grande objetivo que estamos trilhando, demarcando os lugares, as telas, os espaços institucionais. Aldear a política é o nosso objetivo nessa eleição de 2022, e que, no próximo ano, possamos ocupar o legislativo com os nossos cocares, com o nosso genipapo e o nosso urucum, dizendo que agora temos representatividade dos povos indígenas dentro destes espaços institucionais de tomada de poder. Não vamos parar por aí. A nossa mobilização e todas as nossas reivindicações têm prazo, e esse é o compromisso da bancada do cocar.

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  • Fernanda Pessoa

    Jornalista com experiência em coberturas multimídias de temas vinculados a direitos humanos e movimentos sociais, especi...

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