O Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) tem em sua missão a libertação das mulheres de todas as formas de opressão e discriminação, neste sentido enfrentar e superar a violência sofrida pelas mulheres tem nos desafiado diariamente. Conforme, Saffioti (2015), a violência contra as mulheres é uma prática antiga e muito presente na sociedade, mas ao mesmo tempo, continua sendo um tema oculto e muitas vezes tratado como tabu, a autora aponta ainda que o estudo desse grave problema social e de suas relações com os conceitos de gênero, etnia/raça e classes sociais é ainda muito recente.

Nos debates e estudos realizados ao longo dos mais de 36 anos do MMC, a violência contra as mulheres é um fenômeno mundial e perpassa todas as classes sociais, gerações, orientações sexuais e se dá tanto com mulheres que vivem nas cidades como com as que vivem no campo, entende-se que a violência envolve diversos fatores, entre eles a cultura de submissão e inferioridade da mulher impostas pela sociedade capitalista, patriarcal e racista. 

A violência constitui-se num fenômeno complexo, histórico e permeado por múltiplas dimensões, podendo ser através de danos à pessoa, transgressão à norma social e a violência estrutural gerada pelas relações econômicas e sociais, do ponto de vista político a violência pode ser entendida como relação de forças, abuso de poder que pode ser individual ou coletivo.

No caso da violência contra a mulher para melhor analisarmos o fenômeno, além destes aspectos é preciso considerar como se construíram e se estabelecem as relações sociais de gênero, raça e classe em cada momento histórico e em cada sociedade. As relações humanas, sociais, políticas, econômicas e culturais não são naturais, são socialmente e historicamente construídas e, por isto, podem ser transformadas. 

O movimento feminista, conforme Via Campesina/Sudamérica (2012) é quem trouxe uma importante contribuição para a análise dos fenômenos sociais, em especial a questão da violência contra a mulher, ao desvelar a naturalização da opressão, discriminação, exploração e violência cometida contra as mulheres. Ainda é forte na humanidade, a tal “superioridade” dos homens frente à suposta “inferioridade das mulheres”, historicamente construída, produzida e imposta às gerações como um “modelo ‘natural” da vida em sociedade.

A luta feminista contribuiu para que o fenômeno da violência contra a mulher entrasse nas pautas políticas das Convenções e Conferências Internacionais. Exemplo disto é a definição de violência contra a mulher adotada na Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, adotada pela OEA – Organização dos Estados Americanos – em 1994) que diz: 

“A violência contra a mulher constitui uma violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais…, (…) “violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado.”

A violência contra a mulher é, assim, uma violação dos direitos humanos. De acordo com Via Campesina/Sudamérica (2012), toda mulher tem o direito de viver sem discriminação e violência, nos espaços públicos e privados que frequenta. As mulheres têm o direito de ter respeitada sua vida, integridade física, mental e moral, sua liberdade, dignidade e segurança pessoal e de sua família; têm também direito à igualdade no trabalho, no acesso a cargos e funções públicas, a bens, propriedades e serviços, e à proteção da lei e da justiça. Direitos humanos que devem valer para todas as mulheres.

A violência é uma prática cada vez mais visível em todos os âmbitos da vida humana, causando muita dor, sofrimento e lágrimas, ferindo a dignidade e a vida de muitas pessoas, sendo uma demonstração de poder contra uma pessoa, grupos, comunidades ou classe social e com impactos danosos para a humanidade. Porém, ela se apresenta de forma diferenciada para homens e mulheres.

Percebe-se que a violência masculina contra a mulher é fruto do modelo patriarcal de sociedade, onde as relações pessoais e afetivas estão fundamentadas não nos sentimentos e no afeto, mas no princípio da propriedade, do controle e do domínio sobre a mulher. 

Neste sentido, pelo fato do homem considerar a mulher como sua propriedade sente-se no direito de violentá-la, pois a mulher é vista como um objeto que deve servir e obedecer aos homens. Os casos mais comuns de violência vividas pelas mulheres são:

Violência física
Qualquer ação ou omissão que ofenda a integridade física da mulher, quando seu corpo é agredido com: empurrões; tapas; socos; chutes; bofetadas; tentativa de asfixia; ameaça com faca; tentativas de homicídios; puxões de cabelo; beliscões; mordidas; queimaduras; qualquer outro golpe dado com um objeto.

Na imensa maioria dos casos, a violência física acontece na forma de violência doméstica, que é a violência que acontece dentro da casa, no espaço simbólico, muitas vezes chamado de “lar, doce lar”. É na maioria das vezes praticada por maridos e companheiros e está fundamentada basicamente nas relações de poder perpetuadas pelo modelo de sociedade capitalista e patriarcal. 

Dados divulgados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos revelam que nos primeiros seis meses do ano de 2019 a Central de Atendimento a Mulher (Ligue 180) recebeu 46.510 denúncias representando um aumento de 10,93% em relação ao mesmo período do ano anterior, deste total  35.769 das denúncias foram sobre violência doméstica e familiar. 

Violência sexual
Qualquer ação que obrigue a mulher a manter contato sexual, físico ou verbal através do uso de força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação, ameaça ou qualquer outro meio que anule ou limite a vontade pessoal. Pode ser praticada por um desconhecido ou conhecido, como o marido, colega de trabalho, de escola, padrasto, tio, avô etc. São exemplos desse tipo de violência: expressões verbais ou corporais que não são do agrado da pessoa; toques e carícias não desejados; exibicionismo e voyeurismo forçados, prostituição forçada; participação forçada em pornografia. 

A violência sexual acontece quando a mulher é obrigada a manter relações sexuais contra a sua vontade, ou praticar atos que não deseja. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que até 47% das mulheres no mundo declararam que sua primeira relação sexual foi forçada, e que 52% das mulheres são alvo de assédio sexual. Outros dados da mesma organização mostram que 10 a 34% das mulheres no mundo já foram agredidas, e que 70% dos casos foram agressões de parte de maridos, companheiros ou namorados.

Violência psicológica
Qualquer ação ou omissão destinada a controlar as ações, comportamentos, crenças e decisões da mulher, por meio de: intimidação; manipulação; ameaças; humilhações; ameaças de agressão; privação da liberdade; impedimento ao trabalho ou estudo; danos propositais a objetos queridos; danos a animais de estimação; danos ou ameaças a pessoas queridas; impedimento de contato com a família e os amigos; isolamento ou qualquer outra conduta que implique prejuízo à sua saúde psicológica. Em muitos casos é comum que a mulher tenha sua autoestima ou sensação de segurança abalada por agressões verbais, ameaças, insultos e humilhações. 

Violência patrimonial e econômica
Pode ser caracterizada como qualquer ação ou omissão que implique dano, perda, subtração, destruição ou retenção de objetos, documentos pessoais, bens e valores. São exemplos: destruição, venda ou furto de objetos pertencentes à vítima; destruição, venda ou furto dos instrumentos de trabalho da vítima; destruição de documentos da vítima ou de seus filhos; venda, aluguel ou doação de imóvel pertencente à vítima ou ao casal, sem a autorização da mulher. 

Violência moral
Qualquer ação destinada a caluniar, difamar ou injuriar a honra ou a reputação da mulher. Configuram-se como a injúria; calúnia ou difamação. A violência moral e psicológica atinge a auto-estima da mulher, que é agredida verbalmente, humilhada, ameaçada, comparada. Esta é a forma mais velada de violência que incapacita a reação da mulher que, muitas vezes, fica resignada e aceita como natural este tipo de agressão.

Violência étnica/racial
O MMC ao debater a violência contra a mulher foi compreendendo como a problemática da violência que envolve as mulheres é complexa. Os estudos, entre eles, a de Saffioti (2015, p. 133) que utilizou a metáfora do nó para mostrar “três subestruturas: gênero, classe social, raça/etnia” que se articulam e interligam pela estrutura de poder que na contradição gera “patriarcado-racismo-capitalismo” (SAFFIOTI, 2015, p. 134), foram e são fundamentais para perceber “[…] que o patriarcado se baseia no controle e no medo, atitude/sentimento que formam um círculo vicioso” (SAFFIOTI, 2015, p. 129) de dominação e opressão das mulheres. 

Assim, também entende-se que a violência étnica/racial não separada, isolada ou como somatória. Pelo contrário, ela, ocorre, ao mesmo tempo, e engloba a concepção de classe, gênero, étnica/racial e geracional, mesmo que cada uma destas concepções tenha suas particularidades. 

A violência étnica/racial pode ser percebida desde as atitudes ou restrições de discriminação baseado na cor, origem nacional, ascendência para dificultar ou impedir o reconhecimento da pessoa ferindo o princípio da igualdade. Além disso, há casos extremos de assassinatos e outras formas de violências que se agravam sobre as mulheres negras e também outros grupos, como as indígenas. 

Violência do modelo de produção
No Brasil está vigente um modelo de produção aplicado na maioria das unidades de produção baseado no uso intensivo de agrotóxicos, adubos químicos e sintéticos e sementes transgênicas. Estudos comprovam que essas práticas têm sido grandes causadoras da perda da biodiversidade, do desequilíbrio ambiental, da contaminação dos alimentos e de várias doenças que têm matado milhares de pessoas em todo o mundo.

Neste sentido para as mulheres camponesas, que têm como modo de vida a produção agroecológica, os impactos desse modelo de produção capitalista, principalmente do uso intensivo de agrotóxicos são imensos. Acompanhamos extremamente preocupadas a liberação de mais de 410 tipos de agrotóxicos em 2019, vários deles banidos na Europa, pois são extremamente nocivos ao planeta e à vida das pessoas.

A violência contra as mulheres a partir dos modelo de produção convencional se dá de diversas formas, entre elas, não ter o direito de produzir agroecologicamente, vivenciar diariamente em suas famílias a morte causada por câncer e intoxicações oriundas dos agrotóxicos, e acima de tudo não ter o direito de escolher alimentos saudáveis para consumir. 

Diante de todo o exposto, percebe-se que a violência está presente diariamente na vida das mulheres, neste sentido o MMC tem refletido e buscado ações que visam enfrentar essa realidade, entende-se que é fundamental a organização das mulheres, pois em coletivo e articuladas com outras organizações feministas é que se constrói estratégias de superação.

Entende-se também que a emancipação econômica é fundamental para a autonomia das mulheres, neste sentido o Movimento cada vez mais tem intensificado as experiências de produção agroecológica para consumo, venda, troca e doação. Essa produção ao ser contabilizada surpreende de forma muito positiva, pois as mulheres se dão conta que seu trabalho gera renda. 

Neste sentido o MMC reafirma a missão de libertação das mulheres de todas as formas de opressão e discriminação, na construção de um projeto popular de agricultura camponesa agroecológica e feminista e na transformação da sociedade, pois faz-se necessário avançar na construção de uma sociedade justa, fraterna, igualitária, na qual mulheres e homens se respeitem e respeitem a natureza como um todo.

Referências
VCSUDAMÉRICA. Basta de Violência Contra a Mulher. Cartilha -25jul2012.indd – site MMC/BRASIL

SAFFIOTI, Heleieth. GÊNERO PATRIARCADO E VIOLÊNCIA. 2ª Ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015.

*Camponesa, militante do MMC, graduada em Pedagogia e Licenciatura em História, e acadêmica PÓS Metodologia do Ensino de História.

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