Carta convida a chefia do jornal à uma reflexão e reavaliação sobre a forma como o racismo tem sido abordado na Folha.
Cento e oitenta e seis jornalistas que atuam na Folha de São Paulo divulgaram uma carta aberta à direção do jornal em que expressam preocupação com a publicação recorrente de conteúdos racistas nas páginas e no site da Folha. Na carta, divulgada em 19 de janeiro, as e os jornalistas destacam como motivação do documento, o artigo de opinião publicada pelo jornal em 16 de janeiro, intitulado “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”.
O artigo, escrito pelo antropólogo baiano Antonio Risério, analisa o contexto dos Estados Unidos e argumenta que negros praticam racismo contra brancos, além de defender que a esquerda e movimentos raciais fazem parte de um movimento supremacista contra pessoas brancas. Logo após a publicação, o artigo entrou para a lista de produções mais lidas no site da Folha e entrou nos trend topics do Twitter, ou seja, estava entre os assuntos mais comentados na rede social.
Entre as pessoas que contestaram o artigo de opinião no dia da publicação estavam repórteres da Folha. Uma delas é a jornalista Victoria Damasceno, que apontou inconsistências nos argumentos do artigo. A profissional é uma das jornalistas que assinam a carta aberta publicada em 19 de janeiro.
“Em mais de uma ocasião recente, a Folha publicou artigos de opinião ou colunas que, amparados em falácias e distorções, negam ou relativizam o caráter estrutural do racismo na sociedade brasileira. Esses textos incendeiam de imediato as redes sociais, entrando para a lista de mais lidos no site. A seguir, réplicas e tréplicas surgem, multiplicando a audiência. A controvérsia então se estanca e morre, até que um novo episódio semelhante surja”, ressaltam os jornalistas.
A carta cita como exemplo artigos de opinião escritos por Leandro Narloch e Demétrio Magnoli que tiveram caráter e repercussão semelhantes à publicação do dia 16 de janeiro. Para os jornalistas autores da carta, o padrão do jornal é nocivo. “O racismo é um fato concreto da realidade brasileira, e a Folha contribui para a sua manutenção ao dar espaço e credibilidade a discursos que minimizam sua importância”, ressaltam.
Os jornalistas expõem que a publicação da coluna de Antonio Risério e semelhantes, vai na contramão de ações de esforços do jornal na luta antirracista. A Folha de São Paulo, por exemplo, promoveu em 2021 um programa de treinamento exclusivo para negros, que ocorre novamente em 2022. Os autores da carta lembram que apesar do pluralismo estar nas bases dos princípios editoriais da Folha, isso não é razão para o jornal dar espaço a ideias preconceituosas.
“A Folha não costuma publicar conteúdos que relativizam o Holocausto, nem dá voz a apologistas da ditadura, terraplanistas e representantes do movimento antivacina. Por que, então, a prática seria outra quando o tema é o racismo no Brasil?”, questionam.
O artigo nono do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, aprovado no Congresso Nacional dos Jornalistas Profissionais, coloca como dever do jornalista “opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem”. Já o artigo 10, ressalta que o jornalista não pode “concordar com a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, políticos, religiosos, raciais, de sexo e de orientação sexual”.
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Na carta, os jornalistas apontam que a coluna publicada no dia 16 de janeiro é oposta aos ideais do jornalismo. “Se textos como o de Antonio Risério atraem audiência no curto prazo, sua consequência seguinte é minar a credibilidade, que é, e deve ser, o pilar máximo de um jornal como a Folha”, destacam os jornalistas na carta aberta.
Apesar de, como aponta a própria carta aberta, ser incomum que jornalistas se manifestem sobre decisões editoriais da chefia, a livre manifestação dos jornalistas dentro de uma empresa faz parte do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Também no artigo sexto, é colocado que “a defesa do jornalismo e de uma imprensa verdadeiramente independente passa necessariamente pelo livre debate, circulação de ideias plurais e o constante diálogo dos profissionais para aprimorar as decisões editoriais de uma publicação”.
Repercussão
Após a publicação da carta aberta, os jornalistas da Folha receberam apoio de colegas da área e personalidades. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) publicaram nota de apoio à manifestação dos jornalistas da Folha de São Paulo e ressaltaram que racismo reverso não existe.
“Nossa entidade parabeniza a coragem e a firmeza das e dos jornalistas em se posicionaram contra uma decisão editorial evidentemente equivocada da empresa. Tal atitude, por sinal, deveria ser natural em uma redação: a defesa do jornalismo e de uma imprensa verdadeiramente independente passa necessariamente pelo livre debate, circulação de ideias plurais e o constante diálogo dos profissionais para aprimorar as decisões editoriais de uma publicação — sem transigir na ideia falsa de que o jornalismo precisa abrir espaço a discursos nocivos à democracia e aos direitos humanos”, destacam o SJSP e Fenaj na nota.
No twitter, houve várias manifestações de apoio a carta aberta dos profissionais da Folha. A jornalista Lívia Lamblet, produtora dos podcasts “Criador & Criatura” e “Postei e saí correndo”, destacou a importância da classe se mobilizar em protesto a publicações preconceituosas.
O jornalista esportivo Demétrio Vecchioli, autor do blog Olhar Olímpico no UOL, também prestou apoio e destacou que nem todas as vozes merecem ser ouvidas.
A jornalista Luiza Caires, editora de Ciências no Jornal da Universidade de São Paulo (USP), também destacou a importância da carta aberta em seu twitter.
A Deputada estadual (PSOL/MG), presidenta da Comissão de Direitos Humanos e co-presidenta da Comissão de Mulheres na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Andréia de Jesus, ressaltou que a carta escancara como a luta preta tem sido usada como estratégica midiática.
Até o momento de fechamento desta publicação, a Folha de São Paulo não se manifestou publicamente sobre a carta aberta.