“Hoje, nós temos várias Antonietas de Barros”, afirma Uda Gonzaga
Na primeira entrevista da série Mulheres do Morro, conheça a história de Uda Gonzaga, que através da educação, do samba e da fé, transformou o Monte Serrat
Sentada no sofá de sua casa, Maria de Lourdes da Costa Gonzaga, conhecida por todos como Dona Uda Gonzaga, relembra dos tempos de infância onde brincava de esconde-esconde, subia em árvores e corria livre pelo Morro da Caixa, em Florianópolis.
Aos 83 anos, as recordações às vezes falham na memória – ou são interrompidas pela campainha tocando. Sempre de casa e coração aberto, as visitas à primeira-dama da Escola de Samba Embaixada Copa Lord são constantes.
Durante nossa conversa, uma vizinha veio trazer um pedaço de bolo do aniversário do filho de alguém. Outra vizinha se aproximou apenas para perguntar se ela precisa de alguma coisa. Nos poucos minutos que ficou no lado externo de sua casa para a sessão de fotos, era cumprimentada por todos que passavam.
No Monte Serrat, todos conhecem dona Uda, e dona Uda conhece a todos – mesmo que, já com oito décadas de vida, seja um pouco mais difícil se recordar de nomes e rostos.
– Boa tarde, dona Uda, tudo bem?
– Tudo meu filho, tô bem.
Quando o simpático moço se despede, dona Uda olha pra mim, e questiona:
– Nega, tu sabe quem é?
Em silêncio, nego com a cabeça, e ela encolhe os ombros, como se fizesse um esforço físico para recordar o nome.
– Não lembro. Mas deve ter sido aluno meu.
A afirmativa provavelmente está correta, visto que dona Uda foi figura presente na educação de mais de 15 mil crianças, nos 45 anos em que atuou em escolas públicas de Florianópolis – todas elas, no Morro da Caixa.
Aos 25 anos, Uda foi a primeira professora formada na comunidade. Através da educação, tornou-se uma das figuras mais conhecidas do Monte Serrat. Em uma capital predominantemente branca que supervaloriza suas raízes açorianas, Dona Uda é exemplo de uma contracultura que resiste ano após ano.
O protagonismo de mulheres negras no morro do Monte Serrat é um dos fatores investigados por Cauane Maia, em seu livro “Vozes Negras em Florianópolis: Escrevivências Antropológicas do Morro das Mulheres”.
A obra é resultado de sua dissertação de mestrado, defendida em 2018 no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Pela forte presença de lideranças femininas – cujas histórias são contadas por Cauane – o Monte Serrat é conhecido como Morro das Mulheres Negras. São personagens cujas histórias de vida se entrelaçam com a formação da comunidade – e de toda a capital catarinense.
Buscando compreender como essa dinâmica ocorre nas variadas comunidades da ilha, o Portal Catarinas lança a série Mulheres do Morro. Ao longo do ano, o projeto irá contar a história dessas mulheres-líderes, que assim como dona Uda, utilizam da educação, da solidariedade, do samba e da fé para transformar o local onde vivem, dando força e dinamismo às periferias.
Cria do morro
A ligação de dona Uda ao Morro da Caixa começou antes mesmo dela nascer. Seus pais, Júlio Sebastião da Costa Filho e Angelina Veloso foram uma das primeiras famílias a morar no local. O pai foi pedreiro, dono da primeira venda do bairro, e depois, funcionário dos Correios. Sua mãe, assim como muitas outras mulheres negras da época, era lavadeira.
Localizado próximo à Avenida Mauro Ramos, o Morro da Caixa foi uma das primeiras comunidades formadas pela população negra no centro da cidade. Seu nome faz referência a construção do primeiro reservatório de água de Florianópolis, em 1910.
Os pais de Uda tiveram cinco filhos, dos quais três faleceram. Dona Uda, a mais velha, cresceu do lado da mãe, que cuidava do balcão do mercadinho onde vendia arroz, macarrão, farinha e outros produtos básicos.
Quando anoitecia, chegava o momento favorito da pequena Uda, que corria para brincar com os amigos. O alto do morro era um universo próprio – e seguro, onde as crianças brincavam na rua até a hora de dormir. Ninguém se atrevia a descer, com medo do forte movimento na avenida.
“A gente não saia do morro, tinha medo por causa dos carros. Quando descia, escutava ‘é a negrinha lá do morro’. Eu era muito medrosa. Muito inibida, tinha medo de tudo. Mas não da minha cor. Eu gosto de mim como eu sou, me orgulho”, relembra.
Seus pais sempre viram a educação como o caminho, incentivando a filha a estudar. Aos oito anos, Uda andava cerca de três quilômetros, todos os dias, para chegar ao Grupo Escolar Arquidiocesano São José – onde, se recorda, todas as professoras eram brancas.
Quando terminou o primário, a filha da lavadeira e do pedreiro foi aprovada no exame admissional do Instituto Estadual de Educação (IEE). Sendo uma das poucas alunas negras no IEE, foi na diretoria que Uda encontrou uma grande fonte de inspiração: Antonieta de Barros.
Nome de enorme peso na história catarinense, Antonieta foi diretora da maior escola do estado catarinense dos anos 1944 a 1951. “Sempre arrumadinha, com o terninho da Antonieta. Uma grande diretora, um exemplo de vida”, lembra dona Uda, segurando uma estátua da educadora nas mãos.
Ao lembrar dos momentos com sua inspiração, sorri e me fala baixinho, como se me contasse um segredo: “Hoje, nós temos várias Antonietas de Barros”.
Grande educadora
“Ah se os pais soubessem o amor que um professor tem pelas crianças. O carinho que a gente passa pros filhos deles”, afirma dona Uda, seguida por um suspiro cansado.
Na sequência, abre um sorriso, e lembra de seus colegas de trabalho irritados, dizendo que ela vivia ‘passando a mão na cabeça’ de seus alunos – o que pra ela, é motivo de orgulho. Estufa o peito e afirma que nunca puxou a orelha de um ano. Pelo contrário, o “corretivo”, comum na época, era motivo de briga com as professoras.
Ciente da realidade ao seu redor, dona Uda sabia o quanto os castigos poderiam afastar as crianças da escola. “Eles [professores] falavam que eu passava a mão na cabeça de todo mundo. Ah se eu não passasse! Muitas vezes, eles não iam ter o carinho dos pais. E não é porque os pais não querem dar, é porque trabalhavam, para poder sobreviver”, relembra.
Com seu jeito amável e paciente, Uda convencia, aos poucos, os professores a serem mais acolhedores. Um dos projetos desenvolvidos por ela, chamado Livros e Batucadas, é um grande exemplo disso.
A iniciativa surgiu de uma série de reclamações da professora de português, que já nao sabia o que fazer para que os alunos parassem de batucar nas carteiras de sala de aula. Ciente que proibir não resolve, a diretora buscou formas de contornar a situação.
“Fui pra casa, fiquei pensando. Aí me veio a ideia: pra tocar, eles têm que aprender a ler também. Porque tem ritmo, tem harmonia, tem tudo isso. Daí eu os trouxe para o Copa Lord. Lá, olhei para aquela turma de terceira série e perguntei: quem é que gosta de batucar?”, conta a educadora.
Ao invés de reprimir o comportamento, transformou a batucada dos alunos em aprendizado, levando a turma para a escola de samba da comunidade. O projeto de incentivo à leitura através do samba teve como parceria a Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e a Copa Lord – onde se iniciou uma banda mirim.
O amor pelo magistério e a imensa vocação de dona Uda a mantiveram ativa na escola da comunidade mesmo após ter se aposentado. Mesmo atuando como diretora por toda sua carreira, gostava mesmo era de estar com as crianças.
“Minha maior alegria era quando faltava um professor, alguém me procurava, e eu ia pra sala de aula. Era o que mais gostava, estar com as crianças, o carinho que a gente dá pra eles. Pode estar certa disso: a maior missão do ser humano é o magistério. Meu Deus, quanta gente passou por essas mãos!”, conta com seu riso leve.
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Mesmo já atuando há uma década nas escolas da comunidade, Uda continuou a estudar. Em 1974, ingressou no curso de Pedagogia na Udesc, se tornando a primeira aluna negra da instituição.
Já formada, continuou a levar o orgulho de sua negritude para espaços antes inalcançáveis: em 2 de maio de 1986, Uda foi a primeira pessoa negra a ser membra titular do Conselho Estadual de Educação, estando lado a lado ‘reitores engravatados’, como lembra dando risada.
“Fui convidada pelo governador Amin para uma cadeira do Conselho Estadual de Educação. Ser conselheira, vindo de uma escola pública, sendo que eram todos reitores. Quando ele chegou aqui, eu falei: o que eu vou fazer lá, governador? Perto deles, eu sou uma formiguinha ao lado de elefantes. Aí ele disse assim: então a formiguinha tem que entrar lá, e aprender a ficar igual os elefantes. Não sei se não fiquei, mas dei tudo de mim”.
Uda ficou no cargo até 1998, e tirou da experiência muitos aprendizados sobre as distintas realidades entre escolas públicas e privadas. Lembra do espanto ao perceber que muitas escolas nem sequer eram conhecidas pelos demais secretários.
“E a minha própria escola, que precisava de uma lata de tinta, mas nunca tinha, porque pra escola pública é assim. Nem por isso, deixou de sair advogado, professores, diretores de escola, jornalista. A gente (as professoras) dava tudo que tinha”.
Em 2008, Uda foi a primeira pessoa negra a receber o Prêmio Elpídio Barbosa, do CEE. A homenagem estadual reconhece as boas práticas em favor da qualidade da educação. Deixar as escolas não foi opção – saiu obrigada, brinca ela. Aos 72 anos de idade, aposentou-se compulsoriamente do magistério no dia 9 de julho de 2010.
Além de grande educadora, dona Uda também é figura muito presente na comunidade, levando a luta para além dos muros da escola. Em 1978, foi uma das responsáveis pelo surgimento do Conselho Comunitário do Monte Serrat, onde atuou como secretária.
Em 1985, também auxiliou na fundação do Grupo de Mulheres Negras, que anos depois se transformou na Associação de Mulheres Negras Antonieta de Barros (AMAB). Pela atuação na entidade, recebeu a Medalha Zumbi dos Palmares, pela Câmara de Vereadores de Florianópolis, em 2014.
Para Uda, educação e fé andam juntas: foi catequista por 70 anos, recebendo centenas de crianças na sala de sua casa, para ouvir os ensinamentos de Cristo. Na escola, em casa, na igreja, amava ensinar, e brinca: “se eu não fosse professora, seria professora!”
Hoje, quando olha pra trás, dá risada, perguntando como foi que conseguiu administrar tantas frentes.
“Como é que eu dava conta? Copa Lord, planejamento pra escola, pra catequese, pro carnaval, e a secretaria do conselho comunitário. Lembro quando eu era diretora da escola de samba e da escola básica. Eles perguntavam: e a escola, como tá? Eu perguntava de volta: qual?”
Conclui que seus feitos só foram possíveis com a ajuda de muitos. Prefere não nomear ninguém, para não correr o risco de deixar alguém de fora, visto que a cabeça ‘já não ajuda’.
Mas, fala das professoras que trabalhavam com ela aos sábados de manhã, para limpar toda a escola, quando ainda não havia funcionárias da limpeza. Do marido, que a incentivou todos os anos que compartilharam juntos. Do apoio da escola de samba, da igreja, dos vizinhos – e claro, brinca, com a ajuda de Deus também.
Dona Uda não se casou novamente, e mantém as fotos do amado marido espalhadas por toda a casa. Com um sorriso triste, me mostra o papel de parede de seu celular: “Nega, esse aqui é o meu Armandinho. Bonito, alegre, sorridente. Era tudo que tinha de bom”.
Quando os vizinhos perguntavam se não namoraria novamente, brincava:
– Eu casei, não soubesse?
– Mas casou com quem, Dona Uda?
– Casei com o mundo!
Do seu útero, não teve filhos – fala que, com tanta coisa, não deu tempo. Mas, fosse na escola ou na igreja, estava cercada do amor das crianças, que nunca perdem uma oportunidade de ouvir suas histórias. Centenas de filhos passaram pelas mãos de dona Uda, a mãe dos filhos do Morro da Caixa.
Rainha da Copa Lord
O pai de dona Uda, Júlio, era muito brabo. Não deixava a moça se envolver com Carnaval – isso não era coisa para meninas. Com o tempo, foi baixando a guarda. Aos poucos e sempre de longe, Uda se encantou com a cultura.
Foi através de seu grande amor, Armandinho Gonzaga, que o samba entrou de vez na vida da educadora. O casal se conheceu na Procissão de Nossa Senhora do Monte Serrat, em 8 de setembro de 1950 – como lembra com os olhos cheios de lagrimas. Viúva há 45 anos, Uda ainda sente falta de seu companheiro, que faleceu jovem, aos 30 anos.
O carnavalesco foi um dos fundadores da Embaixada Copa Lord, dedicando quase duas décadas de sua vida à presidência da escola de samba. Para Uda, que dava aulas durante o dia e estudava à noite, acompanhar os ensaios ao lado do marido era parte da rotina.
Quando Armando partiu, deixou saudades não só para sua companheira, mas para toda a comunidade. E de repente, lá estavam os demais fundadores, pedindo que Uda assumisse a presidência da Copa Lord. A reação foi um susto, seguido de uma sincera risada.
“Eu? Presidente da Copa Lord? Quando Armando recebia visita, eu me escondia atrás da porta, com vergonha. Eu não me envolvia, só ajudava quando ele precisava.”
A recusa não foi aceita – a comunidade pedia Uda na presidência. E assim foi feito, após uma votação, Uda Gonzaga se tornou a primeira (e única) mulher a presidir uma escola de samba em Florianópolis.
“Eu disse: se a comunidade me aceitar, irei com muito prazer. Eu estava aqui dentro de casa, quando veio todo mundo descendo o morro e cantando: Copa Lord é Uda Gonzaga! Então pronto. Uda foi eleita pela comunidade.”
Dona Uda foi presidente por dois anos, coordenando mais de 3 mil membros. O carinho pela escola da qual é vizinha permanece até hoje – e se orgulha quando conta que o atual presidente foi seu aluno.
Em 2014, a personagem foi homenageada pela escola, com o enredo “Quem você pensa que é sem a força da mulher?“. De coroa e faixa, no topo do trio elétrico, a eterna primeira-dama da Copa Lord sorriu por todo o desfile, enquanto o som ecoava:
Lá vem a embaixada do morro da caixa
Que traz a ciência, arte, e religião
Na mão pioneira de grandes mulheres
Que embalam seus filhos com educação
Lá vem a embaixada do morro da caixa
Destaca a ciência, arte, e religião
Na mão pioneira de grandes mulheres
Que embalam seus filhos com educação
Liberdade é o canto sagrado da superação
As veias abertas unindo as Américas
A independência cravada no chão
No parto a consagração a luta por um ideal
A presidência chegou respeito mundial
Na fé dos meus orixás e nossa senhora do Monte Serrat
Axé Dona Uda Gonzaga e as lições de vida que veio ensinar
Marias entre tantas Marias com raça e samba no pé
Quem você pensa que é sem a força da mulher?
Quem é Copa Lord não foge a luta
Ergue a bandeira, entra na disputa
És primeira-dama do meu carnaval
Toda é mulher especial
Dona Uda é exemplo vivo da força das lideranças negras nas comunidades, unindo todos ao seu redor com a força de seu amor. Para ela, esse é o superpoder de todas as mulheres:
“A mulher é professora, mãe, companheira, amiga. A mulher é tudo. Eu não sei como um homem consegue bater em uma mulher. Não entendo isso. Não dá pra entender. Ou eles não querem entender a força que a mulher tem. E não é força de lutar, não. É de amar. Quando eles entenderem tudo isso, talvez seja tarde demais”.