Domingo, vinte e cinco de abril de dois mil e vinte e um. A cada semana que passa mais enfurecem-me os desmandos neste país largado à moléstia. Está em curso o espectro do genocídio orquestrado pela psicopatia fascista de um governante descerebrado: em uma semana atingiremos 400 mil mortos e outro tanto de famílias enlutadas. É crime contra a humanidade, mas o que esperar desse conluio de dementes que defendem um projeto de destruição??? Vivemos a necropolítica negacionista e criminosa. Vergonha.  

Não bastassem tantas dores e perdas, tramita o projeto de decreto legislativo que amplia o acesso a armas e munições que, se aprovado, será mais uma das ações torturantes que escancaram as tragédias da violência neste país. Morrem sobremaneira pobres, negros, mulheres, indígenas e crianças. O mesmo governo que zera impostos de importação para armas quer taxas livros, uma sandice. Patricida dos infernos!

Todos os dias temos notícias de violências contra mulheres e meninas: estupros, feminicídios, violência doméstica, abusos e aliciamentos, tráfico para prostituição, dentre outras formas de aviltamento contra seus corpos. Não ignoro que homens e meninos também são vítimas de exploração e abusos sexuais. 

Acompanho o abominável caso dos proprietários das Casas Bahia, divulgado exaustivamente neste ano. Essas lojas são muito conhecidas – lembram que os Mamonas Assassinas as citaram na letra de uma canção? São episódios grotescos, infelizmente não raros, cometidos por empresários e por homens que têm dinheiro e o usam para aliciar e cometer violências sexuais. Temos referências históricas, como o caso do bilionário norte-americano amigo de Donald Trump, Jeffrey Epstein, que, ao longo de décadas, usou todo o seu poder econômico e social do mesmo modo que os proprietários das Casas Bahia, no Brasil. 

A história teve início nos anos 1950, quando Samuel Klein imigrou da Polônia para o Brasil. Passou a vender produtos diversos e, nas décadas seguintes, construiu um império com lojas em todo o país. Antes mesmo de morrer, em 2014, foi considerado herói, um self-made man do mundo corporativo, que recebeu honrarias em vida, sendo, inclusive, nome de rua.

Acontece que seu filho, Saul Klein, também foi denunciado por crimes sexuais. A partir destas denúncias, em 2020, o Ministério Público passou a investigar e revelou-se um enredo dos mais perversos para com as mulheres e meninas, promovido por pai e filho durante décadas. Histórias de abusos, estupros, violências, constrangimentos e coações sobre mulheres e vulneráveis – meninas de até 14 anos.  

Consta que Samuel e Saul Klein escondiam um cenário de aliciamentos de adolescentes e crianças, tanto em seus apartamentos de luxo quanto nos escritórios da empresa e nas casas de praia. Promoviam orgias e abusos oferecendo dinheiro, presentes, produtos da loja e outros bens às suas vítimas. A vasta documentação e os depoimentos revelando o esquema de exploração sexual de menores dão ânsia de vômito. Esses empresários são verdadeiros representantes do fetiche “sugar daddy” segundo o qual homens mais velhos têm preferência por mulheres bem mais jovens. 

O filho, Saul Klein, que seguiu o esquema do pai, é investigado por redes de aliciamento, prostituição e abusos sexuais de dezenas de mulheres. Mas sabe-se que o número de mulheres era bem maior, conforme reportagem da Uol Esportes, intitulada “O harém do príncipe”. Os Klein ofereciam acordos vantajosos antes de responder à citação judicial, na tentativa de evitar denúncias. Os processos eram, portanto, arquivados em troca do silêncio e da renúncia de ações legais futuras. “A patriarcalidade familiar encontra respaldo na patriarcalidade social que, ao longo de milênios, naturalizou comportamentos violentos, principalmente se cometidos por homens brancos, héteros e ricos”. Assim, se safavam dos crimes. 

Gabriela Souza, da Advocacia Para Mulheres, que faz a defesa das denunciantes, em reportagem à Agencia Pública, disse que Saul “tem prazer em violentar mulheres”, e que ele “é a personificação do patriarcado em tudo aquilo que há de mais nocivo às mulheres. Talvez o título adequado a Saul seja ‘o predador de todos os predadores’”. Vítimas revelam que foram silenciadas, ameaçadas, e têm sequelas psicológicas, dores, marcas, traumas, muita revolta e há registros, inclusive, de casos de suicídio. 

Tenho me perguntado o que leva homens a cometerem atrocidades como estas com meninas e mulheres – e também com meninos. Numa conversa com meu irmão, ele me disse: “Tem homens que abusam porque acham que têm que usar a força para se sentir macho, dominar. Um amigo, que não é mais meu amigo, me sugeriu uma menina que, disse, era virgem, para eu me iniciar nesse ‘desvirginamento’. Eu cortei a amizade, falei um monte… e se fosse com minha irmã ou filha? Fiquei puto”. Se meu irmão me contou esse fato é porque marcou sua memória da juventude. Poder, violência, opressão de homens sobre mulheres convivem nas estruturas patriarcais e aparecem nas malhas do cotidiano. 

Num país em que o presidente se vangloria que “Meu filho namorou metade do condomínio”, e que ele próprio fala que não estupraria uma mulher se fosse feia, o que dizer??? Num país onde um professor de Direito Penal – pasmem – durante uma aula online, diz aos alunos: “O que é mais fácil estuprar? Uma freira de hábito ou aquela menininha com a cinta larga? Fala para mim. Que vítima colabora mais com a prática do crime de estupro?”, o horizonte se mostra tenebroso.  

Nos modelos vigentes de educação referenciados por violências, em que são cobradas virilidade, competição e disputa, o choro e a exposição de seus problemas são vistos como fraqueza, as masculinidades são tóxicas. Se, por um lado, há homens que sofrem com esta educação, por outro, tornam-se autores de crimes que destroem vidas de mulheres e meninas. Estes homens precisam aprender conceitos de respeito e de que ser homem é ter hombridade pautada na ética, no reconhecimento das diferenças, na inclusão e na generosidade. Aposto na educação de gênero e nesses princípios como o único caminho para dirimir estas violências. 

Segundo o Anuário Brasileiro da Violência, somente no primeiro semestre de 2020, aconteceram 25.469 estupros no Brasil e, desse total, 17.287 foram estupros de vulneráveis. Estima-se que esses números representam apenas 10% dos casos. Imaginem a extensão trágica das situações de estupros que ocorrem cotidianamente. Eu sinto dor por elas. Sinto asco por eles, os violentadores.

A socióloga Graça Gadelha, especialista em direitos infantojuvenis, mostra que “Discursos morais, preconceitos, machismo e falta de acolhimento silenciam vítimas de violência sexual, que muitas vezes são culpabilizadas enquanto seus agressores seguem impunes”. Para ela, “A pobreza e a vulnerabilidade social são os principais fatores que levam crianças e adolescentes para esquemas de exploração sexual”. 

Não há perdão para estupradores, aliciadores, abusadores. A dor, o sentimento de culpa, as cicatrizes que sangram, o abandono, o silêncio e o medo acompanham as mulheres pelo resto da vida, vítimas que em geral têm seu futuro arruinado. O Brasil tem mecanismos legais para reprimir tais crimes, todavia não dá conta porque as violências de sexo e gênero são estruturais – não pensemos que este caso dos proprietários das Casas Bahia é isolado. Acontecem todos os dias, em diversas corporações empresariais, escolas, nos parlamentos, nos clubes esportivos e até nas igrejas. Sabemos que sim. E a pandemia só fez aumentar essas violências, o que é torturante. 

As mulheres que se encorajaram e denunciaram seus patrões exerceram a cidadania, o que não significa que, perante a justiça, tiveram ou terão suas dores e tormentos reparados. Nossa justiça é machista e, muitas vezes, tenta fazer com que pareçam normais os fatos na concepção de um mundo de varões que se protegem e se beneficiam. 

“A violência é uma constante na vida das mulheres no capitalismo”.
(Silvia Frederici)

Marlene de Fáveri, 25 de abril de 2021. Florianópolis. 

Marlene de Fáveri

Marlene de Fáveri, natural de Santa Catarina, Historiadora, professora Aposentada do Departamento de História da UDESC. Membro do Laboratório de Relações de Gênero e Família (LABGEF), do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), do GTGênero (ANPUH Brasil) e da Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil (AJEB). Autora de artigos, capítulos de livros e artigos de História, Gênero, Feminismo, Divórcio, Mercado do Sexo, Mídias. Foi processada em 2016 por ex aluna no teor da ‘escola da mordaça”, vencedora no processo. É feminista, poetisa, escritora e militante pelos Direitos Humanos e cidadania, com foco nos direitos das mulheres. Participa do Grupo de Poetas e Escritores Mario Quintana, fundado em Itajaí em 1988, com publicações em coletâneas e diversas premiações, como para o Off Flip 3023. É colunista no Portal Catarinas - jornalismo com perspectiva de Gênero. Em 2021, publicou dois (02) volumes de Crônicas da incontingência da clausura – cotidianos da pandemia (Letras Contemporâneas) uma série de 54 crônicas escritas no calor dos acontecimentos da pandemia, com foco no feminismo e nas fissuras de viver num tempo pandêmico. Em 2022, escreveu e organizou o livro O Ultrarrealismo na cena literária de Itajaí (Traços & Capturas), e o livro de poesias feministas: Se pulsa, arde e resiste (Infinitta Leitura).

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