Domingo, cinco de setembro de dois mil e vinte e um. Quando a gente pensa que machistas de plantão já esgotaram suas fúrias contra as mulheres, eles se superam. Não bastasse o caos político, econômico, social, a crise sanitária e os óbitos, a fome e a pouca esperança que grassa neste país atordoado, somos bombardeadas diariamente por estapafúrdias imagens e medonhos discursos machistas. Que inferno é este que estamos passando?
Era o último dia do mês de agosto quando um inominável deputado estadual de Santa Catarina recebeu no seu gabinete o ex-marido de Maria da Penha Maia Fernandes. A imagem fala. Deprime.
Na confraria de homens violentos, importa mais a visibilidade que o encontro entre confrades. Machistas se esforçam para mostrarem-se entre pares e/ou grupos que lhes conferem virilidade. Por que o deputado expõe esta imagem com o discurso de “outra versão sobre o caso que virou lei no Brasil”? O que lhe é “intrigante”?
Produzida de caso pensado, a imagem em disputa foi deliberadamente divulgada pelo deputado, ciente de que geraria polêmica, significados e sentidos diversos. O uso público da imagem produz visibilidade entre seus pares, porém, neste caso, é intencionalmente dirigida para desqualificar as mulheres que lutam por seus direitos e se defendem das violências.
Pergunto: por que o visitante que violentou Maria da Penha quando viviam maritalmente, a ponto de torná-la refém de uma cadeira de rodas, foi recebido no gabinete de um deputado? Por que contaria ao anfitrião sua outra versão do acontecido, se já é de domínio público com provas da violência física, psicológica e tentativa assassinato?
Retomo a importância da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/32006), que está completando 15 anos. A Lei, que criou instrumentos de proteção e acolhimento emergencial às mulheres em situação de violência, garantindo assistência social e psicológica às vítimas, homenageia a farmacêutica Maria da Penha, vítima de violência doméstica em 1983 por seu então marido. Numa das tentativas de feminicídio, ele atirou nas suas costas e a deixou paraplégica após lesões irreversíveis nas vértebras torácicas.
Depois de recuperada dessa tentativa de feminicídio, o marido machista, além de forçá-la ao cárcere privado, tentou eletrocutá-la durante o banho. Maria da Penha o denunciou. O primeiro julgamento foi realizado somente em 1991, condenando-o a 15 anos de prisão. A defesa alegou recursos e o réu ficou em liberdade. No segundo julgamento, em 1996, a condenação foi de 10 anos e 6 meses de prisão. Todavia, a sentença não foi cumprida pois os advogados de defesa alegaram irregularidades processuais. Assim são as confrarias masculinas do patriarcado.
Essa atitude do deputado é um verdadeiro acinte que escracha as lutas das mulheres. E, tal provocação foi feita justamente no dia que encerra o Agosto Lilás, quando foi lançado o site do Observatório da Violência contra a Mulher de Santa Catarina (Lei 16.620/2015), ferramenta que fornecerá dados para a construção de indicadores que permitirão o monitoramento, a avaliação e a elaboração de políticas e ações de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres.
Segundo a deputada Luciane Carminatti (PT), o Observatório é um importante e inédito mecanismo de avaliação e controle dos compromissos assumidos pelo Governo do Estado para a implementação da Lei Maria da Penha, um avanço no Pacto Estadual Maria da Penha em Santa Catarina.
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Maria da Penha tornou-se símbolo das lutas das mulheres contra violências de gênero. Sua luta recebeu reconhecimento internacional quando, em 1988, com o apoio do Centro para a Justiça e o Direito Internacional – CEJIL e do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM, denunciou o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos – CIDH/OEA. Ainda assim, o Estado brasileiro permaneceu omisso e não se pronunciou em nenhum momento durante o processo.
Só em 2001, após receber quatro ofícios da CIDH/OEA (1998 a 2001), a União foi responsabilizada por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras. Em 2002, formou-se um Consórcio de Organizações Não Governamentais Feministas, que pressionava as autoridades para a elaboração de uma lei de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Em 2006, finalmente, o então presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei Maria da Penha.
A provocação é de deboche, típico dos machistas e, pior, de um homem da esfera pública política – se o faz, é porque tem aplausos de seu grupelho entorpecido de ódio contra as mulheres. Que versão lhe terá contado o violentador?
Como provocação, teria críticas. Notas de repúdio, indignação e repulsa tomaram as redes sociais e rechaçaram a postagem. A Secretaria Nacional das Mulheres do PT, as Mulheres Socialistas-PSB (LINK5), dentre outras organizações e coletivos, manifestaram sua revolta e aversão ao ocorrido.
Muitas postagens seguiram no teor, como fez a advogada Daniela Felix. “Sobre o deputado catarinense posando com o ex-marido da Maria da Penha, não vejo nada de novo no que ele defende: o patriarcado, o machismo, a misoginia, a violência, a intolerância. Minha indignação é com os 31.595 votos de catarinenses que apoiam este projeto político de sociedade”, disse ela.
A comunicadora Gabriela Toso reagiu num vídeo, expressando sua perplexidade com a suposta ‘versão’ do nefasto que tentou assassinar a mulher duas vezes, sendo recebido por outro pérfido que desqualifica e ignora a importância de Maria da Penha e suas lutas feministas.
Concordo. É perverso o que fazem. Indignada e furiosa, emito a repulsa às alegações absurdas do parlamentar, o mesmo que se elegeu sob a fama de machista, favorável à escola sem partido. O que esperar deste intragável e vil homem que pertence ao partido mais danoso que já existiu e que elegeu um presidente lunático, psicopata e desequilibrado? Pois concorda ele com as agressões às mulheres?
Não sabe que só em 2020, 17 milhões de mulheres foram vítimas de violência e que o Brasil é a quinta nação em número de feminicídios em todo o mundo? Que no mesmo ano foram registrados 1.350 casos de feminicídios no país? Que hoje, a cada seis horas e meia, uma mulher é morta no Brasil?
É de envergonhar-se. São esses os ‘cidadãos de bem’, os mesmos que alimentam a violência e usam as mídias como instrumento de ódio? Que fazem apologia e se fotografam com arma na mão? Que ignoram a realidade de violências que agridem mulheres? Que fazem uso do bem público para o exercício da promoção da violência? Pavorosos.
Reforço o apoio à mulher lutadora Maria da Penha, bem como a todas as legislações que se sucederam e às lutas ferrenhas contra as leis do patriarcado, para eliminar as violências contra as mulheres. Sobre a imagem torpe, tomo as palavras do Deputado Padre Pedro Baldissera, ditas em plenário sobre o fato: “Não lutam para alimentar nosso povo pela cultura da paz, mas sim pela cultura da guerra, do ódio. Defendem agressores de mulheres, zombam das iniciativas que tentam minimizar este triste quadro”.
Maria de Penha me representa. Representa a todas nós.
Marlene de Fáveri, 05 de setembro de 2021. Turvo, SC.