Sete anos após o lançamento de “O Nascimento de Joicy”, livro que reúne a reportagem homônima vencedora do Esso e outras reflexões críticas e amorosas de Fabiana Moraes sobre os caminhos do jornalismo brasileiro, a jornalista lança sua nova contribuição para o debate: “A pauta é uma arma de combate”, obra recentemente publicada pela Arquipélago.

O livro já está disponível para compra no site da editora, com orelha assinada pela premiada pesquisadora Marcia Veiga. “Ao tomar este livro nas mãos, saiba que se trata da mais alta tecnologia de transformação, capaz de provocar fissuras nos modos colonizados pelos quais o jornalismo opera desde o século 19”, ela diz, anunciando o tom revolucionário dos questionamentos e das propostas traçados pela autora.

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Imagem: divulgação.

Em entrevista ao Catarinas, Fabiana Moraes discute o cenário sociopolítico brasileiro e tensiona os conceitos de objetividade e neutralidade jornalísticas, que em sua visão contribuíram para a escalada no fascismo no Brasil, fragilizando o ambiente democrático.

Jess: Você abre o seu novo livro com a artista Maré de Matos dizendo que “a emoção é um direito” – e eu achei essa reivindicação muito coerente com o seu trabalho, que há muitos anos questiona essa ideia de neutralidade que o jornalismo herdou da ciência positivista. Então, acho que a melhor forma de começarmos a nossa conversa, é entendendo de que lugar você fala e o que te atravessa.

Fabiana: Quando eu escrevi O Nascimento de Joicy, que foi lançado em 2015, essa questão da emoção apareceu pela primeira vez no meu trabalho, como um direito a ser reivindicado no jornalismo – não no seu caráter sensacionalista, pois é muito comum a gente ver a emoção ser instrumentalizada para gerar engajamento e audiência, mas como sinônimo de subjetividade. Eu acho essa reivindicação da Maré uma das mais poderosas e cristalinas que a gente pode fazer, principalmente quando nos referimos a maiorias minorizadas, emprestando o termo do Richard Santos. A gente sabe que historicamente a emoção foi um direito negado a várias populações, inclusive no âmbito do jornalismo  – e aí a gente chega nas questões de objetividade jornalística, sobre as quais eu trato neste livro novo. 

Sobre mim… Eu falo de um lugar político, a partir do Brasil. Eu não falo somente a partir de uma Fabiana nascida na periferia de Recife, ou da Fabiana negra indígena, eu quero também tentar ultrapassar ou pelo menos tensionar essas questões que nos últimos anos têm atravessado tanto a gente, as ditas questões identitárias, que eu acho que foram assumindo um caráter que às vezes me incomoda, principalmente quando se entende que são questões de nicho, o que é uma falácia.

Então, eu falo a partir de uma maioria brasileira, negra e mulher. Eu falo também a partir de uma maioria periférica, seja essa periferia localizada nas margens dos centros urbanos ou nos centros dos centros urbanos. Ou da população ribeirinha, ou da população indígena, ou da população do trabalho precarizado. Eu falo de todos esses lugares.

Eu falo também do lugar da professora universitária e da jornalista. Eu não vou me deixar instrumentalizar como se eu falasse a partir de um grupo específico, eu falo a partir de uma maioria formada por muitos grupos, e essa é uma questão central na minha discussão. Eu não vou me deixar instrumentalizar, principalmente, por tantos e tantos críticos e críticas que chamam essas questões identitárias de menores e sectárias, gente que por vezes faz parte do campo progressista ou de um centro liberal. Esta é a melhor forma d’eu me apresentar.

As suas reflexões sobre a outrofobia que alimenta o discurso midiático sobre o Nordeste, no seu novo trabalho, dialogam muito com o contexto político que estamos atravessando. Mais uma vez a região onde você vive foi alvo de xenofobia pelo atual presidente e ao mesmo tempo foram os eleitores nordestinos que nos ajudaram a garantir a manutenção da democracia brasileira. O que você observou de novo?

Essa questão da xenofobia se tornou uma espécie de novo clássico das eleições brasileiras. Em 2018, quando o Haddad foi para o segundo turno, a xenofobia também veio forte porque as pessoas relacionaram esse fato ao Nordeste. Mas, provando que estou viva, ainda consigo me espantar com a imprensa brasileira, que nestas eleições publicou um monte de matérias falando do Nordeste como esse lugar que elegeu Lula porque nove das cidades que mais votaram nele na região têm altos índices de anafalbetismo. Quando eu fiz uma pequena pesquisa sobre isso, percebi que o UOL começou com essa matéria, seguido pela CNN e pela Exame. Depois, esses jornais foram chamar o derrotado de preconceituoso.

Bem, o que a gente tem aí é uma operação mais do mesmo, onde a imprensa brasileira toca o fogo no circo e depois vai cobrir o incêndio. 

Esse preconceito em relação ao Nordeste é muito expresso pelo Bolsonaro, mas ele já foi vocalizado diversas vezes anteriormente. É como se as pessoas, agora, tivessem uma espécie de salvo-conduto pra liberar isso de maneira mais intensa, mas historicamente isso aparece quando a seca se torna nacionalizada pela imprensa, na época em que o Brasil ainda era império; e vem novamente com muita força na cobertura da Guerra de Canudos, que eu acho que é um marco para se pensar como o Nordeste é retratado pela imprensa brasileira. 

Eu acho bem interessante, Jess, que nessas matérias que relacionam o analfabetismo à maior força de Lula em determinadas cidades do Nordeste, não se fala que essas são cidades que também estão recebendo bastante Auxílio Brasil. E antes, o discurso era de que as pessoas votavam no PT por causa do “bolsa esmola”, ou seja, esse argumento cai por terra porque essas pessoas continuam a votar em Lula, só que quando não dá mais pra relacionar esse voto à pobreza, a imprensa relaciona ao analfabetismo. Ele nunca é relacionado a razões práticas como o acesso à água, o acesso à universidade, o investimento na agricultura… Isso reforça muito esse caráter preconceituoso da imprensa brasileira, que depois vai bater na sua porta, no seu e-mail ou nas suas redes sociais pedindo apoio para defender a democracia. 

Essa imprensa também é aquela que faz editoriais dizendo que é apartidária, como se política e posições ideológicas só se realizassem a partir da ligação a partidos políticos.

A gente tá fazendo política neste momento aqui. Os movimentos sociais também fazem política deslocados de partidos. Então, acho que é importante ficarmos atentos e atentas a esses discursos preconceituosos e outrofóbicos da imprensa brasileira, porque são formas políticas de se colocar, estabelecendo distanciamento e hierarquias entre grupos e pessoas. 

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Imagem: reprodução.

Ao longo da história, ouvimos muitas vezes que o jornalismo posicionado é perigoso. A sua obra vai na contramão e nos mostra que na verdade todo jornalismo é posicionado e a negação da prática reflexiva em nome dessa suposta neutralidade é que é perigosa, sobretudo para as maiorias minorizadas, emprestando a expressão que você usou mais cedo. Por quê? 

Muito se diz que quando eu me posiciono, perco o escudo da objetividade e da imparcialidade. Se eu trabalho para uma empresa ou para um coletivo jornalístico e vou cobrir um evento com diversos atores envolvidos, não posso ouvir apenas uma pessoa, sem trazer outros pontos. Isso é óbvio. Mas foi a partir dessa ideia de ouvir os dois lados que se instrumentalizou bastante a opinião pública, fazendo parecer que existia um equilíbrio de falas e representações. Isso nunca aconteceu, mesmo ouvindo os dois lados, porque é possível fazê-lo de maneira instrumental.

Eu posso dizer inclusive que foi assim que, de maneira larga, o presidente Bolsonaro foi higienizado dentro do contexto da chamada mídia de referência – a partir do jornalismo declaratório. 

A questão do posicionamento é extremamente importante quando eu penso em um país que é formado e que cresce numa estrutura patrimonialista, racista e extremamente violenta. Uma estrutura que nasce a partir da negação do genocídio de diversas populações, e que tem, por exemplo, uma polícia militar criada para proteger o patrimônio de pessoas brancas, riquíssimas, que estão relacionadas aos espaços de poder e decisão. A imprensa brasileira também nasce nesse contexto e assimila um discurso liberal e humanista de que seríamos todos iguais – discurso onde cabe muito bem o fascismo. 

É dentro dessa sociedade que pratica a negação do próprio racismo, e que realiza historicamente acordos que vão recalcar essa violência, que se garante que as coisas continuem como estão. Eu posso pensar aqui, por exemplo, nas anistias realizadas nos crimes cometidos por militares. E o jornalismo faz parte desses pactos. Uma estratégia para isso é justamente se vender como imparcial e não posicionado.

Ora, a gente tá sendo imparcial ao quê? Como podemos falar em isenção num cenário de completa destruição do outro? 

Eu quero chamar a atenção para um país que é extremamente desigual e a imprensa vai querer falar dele a partir de uma pretensa equidade de lugares, de poderes, de visibilidades. Eu não posso olhar pra sociedade brasileira, como jornalista, e dizer que ouvi aquela população “x” e aquele empresariado “y” como se eles tivessem posições iguais no âmbito social. Eles não têm, nunca tiveram. Pensar o posicionamento é muito importante para que a gente comece a pensar que Brasil e que democracia a gente quer, porque a ideia de imparcialidade, muitas vezes, é a negação do Brasil racista e violento que a gente sempre foi.

Você pensa que o mito da objetividade jornalística contribuiu para a escalada do facismo no Brasil?

Total – e acho que esse fantasma vai nos assombrar por muito tempo. A gente, nossas famílias e nossos colegas jornalistas, porque o buraco que a gente abriu foi largamente construído pela ideia de fim da política.

A destruição da política é o terreno mais fértil que existe para o crescimento de falsos heróis, ou messias, pegando o nome do derrotado. 

A imprensa pagou alto para a construção do mito Sérgio Moro, um cara que está atrelado ao ambiente político-ideológico de boa parte dessa imprensa de referência, que é esse centro-direita “democrático”. O tiro saiu pela culatra, não só porque o STF tirou essa capa de herói que a imprensa tinha amarrado bem direitinho nos ombros dele, mas também porque a extrema direita veio ao poder e não era nela que esses grupos estavam mirando. Esse movimento intenso e coletivo, que a imprensa proporcionou pra gente a partir de 2013, foi responsável pela destruição do centro democrático, e não das esquerdas. O PT ainda está aí, o PSOL cresceu muito nos últimos anos, forjando um líder popular como Boulos. 

Com a ascensão da extrema direita, essa mesma imprensa ficou atordoada, porque a extrema direita não se informa pelos meios correntes que até então prevaleciam na discussão pública. Ela vai para as empresas jornalísticas que estão abertamente fechadas com o Bolsonaro, como a Jovem Pan, que pretensamente mudou sua face, ou vai pros grupos de WhatsApp. Então, sim, a imprensa produziu largamente esse ambiente antidemocrático que feriu a própria imprensa. 

Dito tudo isso, é muito impressionante que a Folha de S.Paulo vá ouvir Steve Bannon sobre as eleições, no dia em que a vitória de Lula foi anunciada. Steve Bannon é um dos arquitetos da construção do ambiente da desinformação no mundo, ele foi preso nos Estados Unidos por suas investidas antidemocráticas e criminosas.

Na manchete, a Folha coloca o seguinte: Steve Bannon fala que as eleições no Brasil não foram limpas ou coisa do tipo. E aí eu te pergunto, Jess: o que dizer dessa imprensa? Isso é isenção ou posicionamento? 

Todas as vezes que eu questionei os conceitos de neutralidade e objetividade jornalísticas, na academia, encontrei entraves no diálogo, porque os meus interlocutores entendiam que repensar as bases da teoria do jornalismo significaria, por exemplo, pavimentar um caminho para a produção de fake news. Você nos mostra que essa compreensão é equivocada porque a crítica não descarta uma checagem criteriosa. Na prática, como produzir jornalismo idôneo e posicionado?

O caso Lázaro Barbosa é bem interessante pra gente falar dessa questão, porque na cobertura apareceram os velhos fantasmas das formas como populações negras e religiões afro-indígenas foram visibilizadas no Brasil. No começo, se falou muito sobre “magia negra”, terreiros – aquela ideia de terreiro como algo negativo, e não positivo –, associando essas “seitas” ao assassino de uma família. A imprensa colocou tudo no mesmo balaio e as pessoas começaram a apontar como essa cobertura estava sendo racista. 

Um pai de santo teve o terreiro invadido pela polícia e as pessoas lá dentro, inclusive o babalorixá, foram agredidas. Os objetos de culto foram destruídos e a polícia os fotografou para enviar à assessoria de imprensa, como se tivessem sido encontrados no lugar onde Lázaro fazia seus rituais satânicos. Essa foto saiu no Estadão, no G1, no Metrópoles, e se multiplicou pelo Brasil. Veja, era a foto de um terreiro de candomblé, não de uma seita religiosa satânica. 

Essa cobertura foi feita por profissionais da chamada imprensa profissional, que simplesmente pegaram um material publicizado pela polícia e repercutiram esse material sem fazer as devidas perguntas, ou seja, também sem apuração, porque a polícia é uma fonte poderosa e importante, mas a gente sabe quem é a polícia brasileira e que também é uma polícia racista.

Então, o que pensar sobre uma cobertura que se diz profissional, mas reitera o racismo contra populações de terreiro, quando a gente sabe que tem vários terreiros sendo invadidos e quebrados por evangélicos extremistas? De que cobertura, de que posicionamento estamos falando? 

Se eu receber uma imagem da polícia, de um terreiro de candomblé sendo relacionado a uma seita satânica, que eu pergunte à polícia de onde vem essa imagem e que eu atribua à polícia a disseminação de informações racistas. Isso é posicionamento e boa apuração, porque a polícia estava divulgando imagens falsas. Aquele terreiro não tinha nada a ver com Lázaro, isso sim é uma desinformação. Então a gente tem aí uma forma muito simples de o jornalismo se posicionar e ao mesmo tempo cumprir melhor o seu papel de apuração, estando mais próximo dos fatos. Nomear as coisas pelo que elas são é uma forma de se posicionar e também é uma forma de fazer um jornalismo que conversa com o campo democrático que a gente tá tentando conquistar – ele não está dado, ainda está sendo disputado. 

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Imagem: reprodução;

Eu não tenho dúvidas de que propor uma dimensão ativista para o jornalismo é um desafio e tanto, seja na academia ou nas redações. O que te dá a gana de fazer?

Acho que é parecida com essa que vocês sentem no Catarinas, viu, Jess. Sem nenhuma pretensão heróica, porque essa transformação das pessoas em heroínas fez muito mal pra gente e pra nossa democracia, eu prefiro fazer parte de um coletivo, mas acho que o que me faz contribuir pra esse debate público é a completa certeza de que o Brasil é um país foda e que a população brasileira é de uma beleza muito rica.

De perceber, por exemplo, o Nordeste como esse espaço de negociação, de tensão, de política, de festa, de comunhão, e forte também, muito posicionado.

Acho que olhar a partir daqui é muito importante pra mim. Acho que é sempre importante a gente sublinhar a posição de uma subalternidade insurgente, não de uma subalternidade vitimizada ou vitimista, ou amedrontada, ou meramente sectária e combativa. Eu consigo, a partir daqui, traçar lugares que concorrem com essa ideia do universal que foi estabelecida pelo pensamento iluminista. Eu não me sinto menos universal do que alguém que tá falando a partir de Oslo ou de São Paulo. Este é um redesenho simbólico-geográfico muito forte, e eu percebo que muita gente vem fazendo isso, como Neon Cunha faz em São Paulo, no ABC. Eu não acho que ela fala a partir do lugar de mulher transexual, ameríndia, ativista. Acho que ela fala de um lugar universal, e eu também tô falando a partir dele. Essa percepção me fortalece muito na hora de escrever e fazer parte do debate público. 

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  • Jess Carvalho

    Jess Carvalho é jornalista e pesquisadora da bissexualidade. Atua como editora, repórter e colunista no Portal Catarinas...

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