Espaço de resistência da comunidade quilombola Invernada dos Negros, o prédio público foi derrubado arbitrariamente. Sociedade civil pede providências

Na última quinta-feira, 1 de abril, a demolição de uma escola pública localizada no Distrito de Ibicuí, em Campos Novos, pegou a comunidade quilombola de surpresa e causou comoção dos movimentos sociais e de representantes políticos catarinenses.

“Foi no final da tarde e ficamos sabendo pelas redes sociais. Havia vários vídeos circulando e, logo que soubemos, fomos até lá e nos deparamos com nossa escola totalmente destruída”, relata Edson Camargo, liderança na Comunidade de Remanescentes Quilombolas Invernada dos Negros, presidente do PT em Abdon Batista/SC e militante das causas sociais.

A escola abrigava a Educação Quilombola da comunidade de Invernada dos Negros, conforme Resolução da Educação Quilombola N° 0086/2019, do Conselho Estadual de Educação, em diálogo com a Coordenadoria de Educação de Campos Novos e intermediado e registrado pelo Ministério Público Federal e tinha três turmas (Ensino Fundamental I e II e Ensino Médio), com cerca de cem estudantes, sendo grande parte idosos.

Com a construção de uma nova planta, a comunidade dialogava sobre a doação do edifício para atividades da própria comunidade. “A gente vinha fazendo as tratativas junto com o Ministério Público Federal de que, quando houvesse a inauguração da escola nova, construída para a população do Distrito de Ibicuí, as instalações antigas deveriam ficar para as atividades da Educação Quilombola”, explica Camargo. 

Comunidade soube da demolição pelas redes sociais./Foto: Comunidade Invernada dos Negros.

Segundo ele, o edifício era mais que uma escola para a comunidade. “Esse espaço representava um espaço de resistência, um espaço cultural onde a gente podia desenvolver nossa cultura, desenvolver nossas danças tradicionais, etc. Chegamos a receber mais de cem pessoas da Universidade Federal da Fronteira Sul em um projeto muito bonito que fizemos há mais um menos um ano. Era o principal espaço que a comunidade tinha conquistado para o encontro e o desenvolvimento da comunidade. Sem contar os nossos alunos. Você explicar para uma pessoa de 90 anos que a gente tinha uma escola e a nossa escola foi demolida é muito triste”, lamenta o líder quilombola.

Questionada sobre a demolição do patrimônio público de responsabilidade do Governo do Estado de Santa Catarina, a assessoria de imprensa da Secretaria de Educação do Estado informou que não tinha conhecimento da demolição e que não havia autorizado a mesma.

“A Secretaria de Estado da Educação (SED) esclarece que não autorizou a demolição da estrutura física antiga da EEB José Faria Neto, em Campos Novos, ocorrida na última quinta-feira. A SED está apurando as informações e documentos a respeito da demolição e, caso necessário, tomará as medidas cabíveis”, informou a assessoria de imprensa, em nota enviada ao Portal Catarinas nesta segunda, 5.

No dia seguinte à demolição, o Movimento Negro Unificado de Santa Catarina (MNU/SC) lançou um manifesto “Em garantia dos direitos e respeito com a Educação Quilombola da Comunidade Remanescentes do Quilombo Invernada dos Negros”, no qual chama a a atenção para a ausência de diálogo com a comunidade que reivindicava o local como um espaço histórico de retomada do processo habitacional.

“Ninguém sai demolindo uma escola do estado sem que tenha a autorização de um ente gestor! Nossa grande indignação é: por que isso não foi informado à comunidade? Por que a Coordenação de Educação Quilombola do Estado não sabia nada quando perguntamos na quinta à tarde? São essas questões que nós estamos denunciando e considerando uma arbitrariedade. Não se faz nada com relação à Educação Quilombola sem o diálogo com a comunidade e o que foi feito foi contra o que estava acordado com a comunidade”, defende Vanda Pinedo, militante do MNU/SC. 

Espaço da escola seria utilizado para atividades culturais da Comunidade Quilombola./Foto: Comunidade Invernada dos Negros.

No mesmo dia, a comunidade também realizou uma manifestação em frente à empresa Iguaçu Celulose, Papel S. A., responsável pela demolição da escola. 

“Estamos aqui em nome de 19 comunidades quilombolas do nosso Estado trazendo o nosso total repúdio a tamanho banditismo que foi cometido para com a Comunidade Quilombola Invernada dos Negros. Estamos aqui pra dizer: não vamos nos calar, vamos resistir e vamos seguir em luta por nenhum direito a menos e até reaver todos os direitos que nos foram negados”, expressou Edson Camargo, diante da empresa.

A comunidade pede providências do poder público de acordo com a lei. “Se fosse um de nós, um quilombola, que quebrasse um vidro da escola, a essa hora já estaríamos presos. Mas uma empresa dessas, mostrando o poder que tem, o poder econômico passa por cima do valor humano, eles podem vir, fazer o que quiserem, e seguem a vida normal e ainda dão entrevista para a rádio local chamando a comunidade de bandido, sem que a gente tenha direito de resposta”, desabafa.

Ação judicial pode ser movida contra a empresa

A demolição arbitrária realizada pela Iguaçu Celulose, Papel S. A. foi denunciada também pela deputada estadual Luciane Carminatti, em uma de suas redes sociais. Em entrevista ao Portal Catarinas, a deputada disse que recebeu com indignação a notícia pois, além de se tratar de um total desrespeito ao patrimônio construído com recursos públicos, houve o desrespeito ao vínculo do prédio público com a comunidade quilombola.

“Em nenhum momento essa comunidade pode participar, discutir ou mesmo ser informada da decisão da demolição. Então, a nossa indignação é com relação ao desrespeito com o recurso público e o desrespeito total à comunidade”, declara.

O fato de a Secretaria de Educação do Estado ter alegado não ter autorizado a demolição também gerou dúvidas quanto à legalidade da ação realizada pela empresa. Segundo Carminatti, há todo um procedimento legal a ser instaurado quando um prédio público é desativado, já que ele pertence ao patrimônio público estadual. Dessa forma, a deputada informa estar atuando para verificar a responsabilidade da empresa que realizou a ação e garantir a educação quilombola à comunidade.

Nesta segunda, 5, a deputada encaminhou um ofício à Procurador Geral do Estado informando o ocorrido e pedindo que sejam tomadas as medidas cabíveis. “Fizemos a denúncia ao Ministério Público para que o órgão faça a devida averiguação e, se entender que há culpados em relação ao processo de demolição, que sejam adequadamente chamados à sua responsabilidade”, explica.

No ofício, a deputada informa não ter conseguido encontrar documentos que contenham a informação sobre a escritura do imóvel e a propriedade do terreno. “Não conseguimos, em nossos levantamentos, encontrar os atos constitutivos da EEB. José Faria Neto, que segundo as informações extraoficiais, são de 1973. Entre os documentos não localizados, encontra-se a escritura do imóvel onde a escola funcionava, não podendo se atestar se estava construída em cima de um terreno do Estado ou um terreno de propriedade privada”.

Assim, Carminatti questiona de quem é a propriedade do terreno, se ocorreu autorização do Poder Executivo estadual para que fosse feita a demolição, quem autorizou e qual é a base legal para que o prédio tenha sido demolido.

De acordo com informações preliminares repassadas pelo Ministério Público Federal de Caçador/SC, em retorno à reportagem no início da tarde de hoje, a escola foi demolida sem o conhecimento da Secretaria de Estado da Educação e sem o conhecimento da Coordenação Regional da Educação de Campos Novos. 

“A demolição foi feita sem o prévio aviso à Secretaria Estadual de Educação e sem ordem da referida Secretaria. A Secretaria de Estado da Educação poderá ingressar com ação judicial contra a empresa caso considere que houve danos ao patrimônio público”, informou.

Procurada pela reportagem, a Iguaçu Celulose, Papel S. A. não atendeu nossas ligações e não prestou esclarecimentos sobre o fato.

COLETIVA DE IMPRENSA

Às 17 horas de hoje, 6 de abril, o Movimento Negro Unificado e a Comunidade Remanescente de Quilombo Invernada dos Negros farão uma coletiva de imprensa sobre o caso, na página do Facebook do MNU/SC.

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  • Morgani Guzzo

    Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Hu...

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