Uma jovem egípcia, muçulmana, trajando hijab, coberta da cabeça aos pés, apresenta um papiro a um possível comprador, que “brinca”: “Elas gostam é do bem duro. Comprido também fica legal, né?”. Uma brasileira, funcionária de uma grande entidade, é chamada à sala de seu chefe, que também “brinca”: “Você se masturba?”

“Foi só uma brincadeira. Eu passei um pouco dos limites. Foi imaturo da minha parte, mas não teve maldade”, eles dizem. As falas do médico Victor Sorrentino e do presidente, agora afastado, da CBF, Rogério Caboclo são violentas, repulsivas e criminosas, mas, para eles, apenas brincadeiras. Estamos falando de dois homens ricos, brancos, heterossexuais, detentores de privilégios sociais, que se que sentem no direito de “brincar”, tal qual um predador com sua presa.

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 O medo, a humilhação e o constrangimento impostos a essas mulheres são somente o exercício do poder conferido pelo patriarcado aos homens. Nessa relação, eles são sujeitos, já as mulheres, objetos, desprovidos de humanidade, dignidade e reconhecimento. Essa coisificação das mulheres não é um fenômeno específico desses casos, mas do cotidiano das mulheres e das violências invisibilizadas.

Imagem: rede social da organização Speak Up que denunciou o assédio ao mundo

A pesquisa “Percepções sobre a violência e o assédio contra mulheres no trabalho” (Instituto Patrícia Galvão/Locomotiva, 2020) aponta que 39% das mulheres, no ambiente de trabalho, receberam de homens convites para sair ou insinuações constrangedoras e 12% sofreram assédio sexual ou estupro. Isso nos aponta que o caso de Caboclo não é excepcional, mas um comportamento usual e raramente punido. De acordo com a mesma pesquisa, entre os casos denunciados, apenas em 34% a empresa ouviu o relato da vítima e puniu o agressor.

Ainda sobre os dados da violência, não à toa o comportamento de Sorrentino é percebido por muitos como apenas uma piada: 97% das mulheres dizem já ter sido vítimas de assédio em meios de transporte (Segurança das mulheres no transporte, Instituto Patrícia Galvão/Locomotiva, 2019). Isso nos passa uma mensagem clara: você é uma vítima em potencial. Cuide sua roupa, seu comportamento, onde você anda. Mas, mesmo se você estiver toda coberta, trabalhando, cuide! Você é uma mulher e sua integridade não tem valor.

O que diferencia esses dois casos entre tantos outros é a ampla divulgação. Duas mulheres, em contextos culturais completamente diferentes, sofreram assédio de homens que julgavam que nada poderia acontecer em razão de seus atos. Uma encontrou apoio em uma rede de ativistas, que divulgou amplamente a agressão, expondo o agressor e exigindo das autoridades públicas sua punição. A outra, após reiterados episódios de assédio moral e misoginia, denuncia seu agressor, tendo como estopim um caso de assédio sexual.

Essas denúncias e seus desdobramentos não dizem apenas desses dois casos, mas de um movimento maior, que luta pelos direitos e liberdades das mulheres. Em nossa cultura, mulheres são educadas para evitar a violência, para evitar que o alvo seja posto nelas. Há o cuidado com o horário, as roupas, as companhias, o local, as palavras e o consumo de álcool.

Mas e os agressores? Esses passaram (e ainda passam) recebendo as desculpas de que são assim mesmo, têm instintos e de que não fazem por mal. Essa cultura reverbera nos dados de um dos crimes mais graves: estupro. No Brasil, no ano de 2019, um estupro foi registrado a cada 8 minutos (14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, FBSP, 2020). Esse número já seria suficientemente grave não fosse a constatação de que, pela subnotificação do crime, esse número pode ser até dez vezes maior.

O medo, a vergonha e a revitimização fazem com que mulheres silenciem diante das violências. O caso recente envolvendo o jogador Neymar e uma funcionária da Nike elucida esse fenômeno. A mulher afirma ter sofrido uma agressão sexual em 2016, relatando à empresa apenas em 2018, mas pedindo garantias de confidencialidade. No ano seguinte, resolveu prosseguir com a denúncia. Contudo, somente no ano de 2021 o assunto veio a conhecimento público, eis que, apesar da investigação ter sido inconclusiva, o jogador teve seu contrato encerrado por não ter colaborado com o caso.

Os casos não são do médico, do presidente da entidade ou do jogador, não são de homens que estão só brincando. Mas de mulheres, da força de um movimento que está exausto do silenciamento, do grito de basta, da insurgência contra uma cultura misógina, de quem está exausta de ser alvo e resolveu ser autora de sua história.

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  • Lívia de Souza

    Feminista, doutora em Ciência Política, mestre em Direito e pesquisadora no Grupo Violência, Gênero e Saúde, na Fiocruz...

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