“A ditadura não sai de nós. É uma fissura que jamais se fecha. Contá-la, relatá-la, lembrá-la é uma missão que jamais se esgota. Para muitos de nós, que não temos corpos, o Arquivo Nacional agora é o nosso cemitério”, declarou a jornalista Hildegard Angel, irmã do desaparecido político Stuart Angel e filha da estilista Zuzu Angel, na ocasião da entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, em julho de 2015.

A revisão crítica dos 21 anos de ditadura no Brasil, nos quais crimes contra a humanidade se tornaram práticas de Estado, é parte de um movimento político internacional que, além de atuar pela reparação de vítimas e seus familiares, busca um retrato dos fatos que sirva de lição para o futuro, contribuindo para que tais atos não voltem a acontecer.

No Brasil, a Lei nº 12.528, de 2011, criou a Comissão Nacional da Verdade com a finalidade de “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.  Tal mecanismo de reparação, aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pela presidenta Dilma Rousseff – torturada durante o regime da ditadura por defender a democracia –, estruturou-se em comissões estaduais, municipais e de instituições.

O colunista do Diário Catarinense, Moacir Pereira, que se coloca como defensor da ordem e da aplicação dura da legislação, parece desconhecer a Lei Federal ao referir-se em tom de desprezo à Comissão Memória e Verdade da UFSC.

Em nota “Atentado na UFSC”, publicada nesta segunda-feira, em que cita matéria do Catarinas sobre o relatório final da comissão, afirma que renomear o campus principal da universidade, conforme sugere “uma tal comissão da verdade”, “é uma agressão, um atentado à história e àquele que dedicou toda a sua vida pelo ensino superior em SC”.

A recomendação de rever a homenagem a um dos maiores apoiadores da repressão dentro da instituição é vista por ele como “uma notícia para estarrecer o meio acadêmico e político de Santa Catarina”.

Alvo de denúncias de improbidade administrativa, o reitor à época, David Ferreira Lima, aderiu sem hesitar à perseguição política daqueles que se opunham ao regime. Logo após o Ato Institucional nº 1, institucionalizou a perseguição aos opositores por meio da instalação da Comissão de Inquérito na universidade a fim de realizar “investigação sumária” e caça aos “subversivos”. Ainda conforme o relatório, Ferreira Lima promoveu uma gestão de base empresarial, a caminho do ensino pago, segundo os preceitos da ditadura.

Moacir Pereira também é citado no documento. No livro UFSC: Sonho e Realidade, de autoria do ex-reitor e editado pela EdUFSC, o jornalista que à época “alcançou a presidência do Sindicato da Classe” é referido como um dos “talentosos moços” de confiança da administração.  

Pereira foi professor de Moral e Cívica a partir de setembro de 1969, quando a Junta Militar baixou o Decreto nº 869 que dispôs “sobre a inclusão da educação moral e cívica (EMC) como disciplina obrigatória nas escolas de todos os graus e modalidades”.

Os objetivos dessa obrigatoriedade podem ser resumidos em disseminar “valores tradicionais e conservadores, como defesa da nacionalidade, da pátria, seus símbolos e tradições, seus vultos históricos, assim como a preservação da moral e religiosidade cristãs”.

“Questionávamos coisas mínimas, como a liberdade de imprensa, porque (…) tem o AI-5. E a gente era meio que mandado calar a boca em um tom bastante impositivo. Quer dizer, não havia nem espaço para discussão. Isso, numa Universidade, dá uma ideia do clima que era”, relatou à comissão Vilson Rosalino da Silveira, então estudante de Engenharia, sobre a aula do professor.  

A conclusão do relatório é que a ditadura não acabou. A violência de Estado, intensificada no regime, embora hoje não esteja desmontada plenamente, apenas teve modernizados os seus sistemas de controle.

A tirania persiste em cada ato de tortura e de maus tratos nos porões dos cárceres brasileiros e nas vozes que os aplaudem. Memória, Verdade e Justiça são urgentes para que possamos assumir, enquanto sociedade, consensos mínimos sobre a dignidade humana, e afastar ameaças à democracia e às nossas existências.

Ainda que iniciado tardiamente, o relatório foi apresentado em um momento oportuno da história do país: uma semana após o resultado das eleições presidenciais. Não há justificativa mais eloquente da urgência do trabalho desenvolvido pela Comissão do que a vitória nas eleições para o cargo máximo do executivo brasileiro de um homem que, em seus 30 anos de vida pública, se dedicou a fazer apologia à tortura, à ditadura e ao assassinato de opositores políticos – crimes contra a humanidade e, por isso, imprescritíveis.

Se os valores da democracia fossem absolutos neste país, uma pessoa que os insultasse de forma tão deliberada jamais chegaria à presidência da república, e tampouco assinaria coluna em jornal de grande circulação.

Há mais de uma década, o formador de opinião do único jornal estadual de Santa Catarina apresenta-se como defensor de uma moral análoga àquela perpetrada pelo regime de exceção. As doses diárias de patriotadas que acenam para violações de direitos, por parte do jornalista que foi o primeiro coordenador do curso de jornalismo da UFSC – na época em que o regime estava ainda mais endurecido –, essas sim, “deveria[m] estarrecer o meio acadêmico e político de Santa Catarina”.

Diferentemente de outros países da América Latina, o Estado Brasileiro não condenou ou sequer processou apoiadores, torturadores e assassinos do período. Só um país que enfrenta seu passado e presente de violações pode construir um futuro livre de as repetir. Agoniza a democracia quando o pluralismo não tem vez e a história segue contada pelos poderosos que teimam em minimizar os horrores de regimes de exceção. Temem encarar a História, porque a História não há de perdoá-los. Para a História, tal anistia não existe.

Atualizado às 6h44 de 13 de novembro.

 

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