A relação entre mulher e trabalho não é recente – no Brasil, sua presença é significativa em muitos setores da indústria desde o início do século XX, seja diretamente, no chão de fábrica, ou indiretamente, realizando tarefas domésticas que permitiam a diminuição dos custos de sobrevivência de suas famílias. O que pode ser considerado relativamente novo é a ‘feminização’ do mercado de trabalho, ou seja, o crescimento contínuo das taxas de participação femininas desde a década de 1970. Mais adiante, em 2015, as mulheres passam a representar 44% da população economicamente ativa no Brasil. Porém, apesar da paridade quantitativa, podemos dizer que existe igualdade qualitativa? A inserção econômica massiva das mulheres garantiu mais autonomia e igualdade em outras esferas?

Em primeiro lugar, precisamos saber que a forma pela qual a mulher se insere no mercado de trabalho é pautada por uma ordem de gênero e por uma divisão sexual cuja intenção é criar uma “separação de papeis” aparentemente determinada pela condição biológica – conferir à mulher a função primordial de cuidar da esfera doméstica, ou privada, e ao mesmo tempo atribuir a essa esfera um valor social inferior ao da “pública”. Ao produzirmos e reproduzirmos estas noções desde as etapas iniciais de socialização, fazemos com que elas condicionem fortemente as formas desiguais de inserção de homens e mulheres na sociedade, de maneira ampla, e no mundo do trabalho mais especificamente.

Basta observar, por exemplo, a valorização de determinadas atividades em detrimento de outras. De forma geral, atividades exercidas por homens (especialmente por homens brancos) recebem maior reconhecimento da sociedade – implicando, ao fim e ao cabo, maior poder e maiores rendimentos. Já as ocupações feminizadas que guardam semelhanças com tarefas de cuidado familiar e doméstico (professora, enfermeira, assistente social) geralmente são desvalorizadas – e mal remuneradas. As funções desempenhadas na esfera privada sequer têm seu valor econômico reconhecido.

Nessa divisão, geram-se resultados que impactam desde a jornada de trabalho (ao redor do mundo as mulheres têm um dia de trabalho mais longo) até a forma de inserção da mulher no mercado: ao repetirmos indefinidamente que determinadas características (paciência, docilidade, habilidade manual, cuidado) seriam ‘aptidões naturais’ e exclusivas das mulheres criamos uma situação de estreitamento das oportunidades de inserção feminina.
Ainda que possamos considerar que fatores como a divisão sexual do trabalho na família e a sexualização de percursos educativos sejam fundamentais na produção de discriminação e desigualdade no mundo profissional, vale lembrar a ressalva feita pela pesquisadora Margaret Maruani: o mercado de trabalho não tem um papel passivo. Ele não é simplesmente o lugar em que as desigualdades vindas ‘de fora’ são reproduzidas: ele próprio é um produtor de diferenças, de desigualdades, de segregação e de discriminação.

Em artigo produzido para a Organização Internacional do Trabalho, Lais Abramo enfatiza justamente que a organização produtiva e empresarial predominante é baseada na ideia de um ‘tipo ideal de trabalhador’ que esteja sempre à disposição da empresa e à qual devote uma dedicação quase exclusiva. O pressuposto dessa concepção, diz ela, é que haja outra pessoa “que cuide de todas as outras dimensões da vida: a família, as responsabilidades domésticas, o âmbito afetivo e subjetivo. Essa outra pessoa, também por definição, é a mulher”. Assim, quando a mulher também está no mercado de trabalho, esse modelo tensiona-se, muito frequentemente com um custo elevado para ela, que acumula a dupla jornada e ao mesmo tempo é vista como ‘inadequada’ ou menos produtiva.
Podemos imaginar um círculo retroalimentado cuja saída não se deu, até hoje, por uma evolução apenas quantitativa – o simples aumento de mulheres no mercado de trabalho não leva, necessariamente, a mais igualdade nesse mercado. A superação de tais condições parece estar atrelada a um projeto mais amplo que vise uma participação paritária por meio de esforços conjuntos de reconhecimento (eliminando códigos de gênero e padrões culturais difundidos) e de distribuição (alterando a estrutura econômica que gera formas de injustiça distributiva especificamente ligadas a gênero).

Esse é o segundo artigo da série “Mulheres no Mundo do Trabalho” que traça um resgate histórico e balanço das consequências da crise econômica para as mulheres.

Veja também: 8 de março: estamos prontas para marchar?

Lenina é economista, formada pela UFSC, com mestrado em políticas públicas pela UFPR. Atuou no Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e na Secretaria do Trabalho e Emprego de Curitiba.

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