Por Hana Mesquita1 e Marina Gonçalves Garrote2

Veja o que proteção de dados pessoais tem a ver com o aborto; os direitos reprodutivos na mira do Estado.

Criança não é mãe” e “estuprador não é pai”. Essas têm sido as palavras entoadas nas redes sociais após vir à tona um vídeo no qual a juíza Joana Ribeiro Zimmer de Santa Catarina induz menina de 11 anos grávida após estupro a desistir do aborto legal. 

Nos últimos dias, o vídeo tem chocado o país pelas falas cruéis da magistrada – “Você suportaria ficar mais um pouquinho?” e “Você acha que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção?”. O caso representa mais um triste retrato dos esforços de criminalização do aborto no Brasil que condena à morte mulheres e pessoas gestantes3

Ainda em junho, o secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde produziu um manual que afirma que as pessoas que recorrem ao aborto nos casos permitidos em lei devem ser investigadas. O documento é categórico ao afirmar que “Não existe aborto legal” e “Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido”. O manual avança e reforça que “(…) as condições que realmente colocam em risco a vida da mulher que justifiquem um aborto são poucas, não cabendo um alargamento sem motivos técnicos.”

No Brasil, o aborto é considerado crime, exceto nos casos de gravidez resultante de estupro, quando há risco à vida da pessoa gestante ou, mais recentemente, nos casos de anencefalia fetal. Entretanto, com a presidência de Jair Bolsonaro, através do Ministério da Saúde, houve um crescente envolvimento do sistema de justiça no procedimento da saúde, em uma prática de criminalização das pessoas que recorrem ao aborto, mesmo nas hipóteses legalmente permitidas. 

Em 2020, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 2.282 de 27 de agosto de 2020 que impôs mais obstáculos à realização do aborto em caso de estupro. Primeiro, a Portaria tornava obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico. Em segundo lugar, o texto obrigava a equipe médica a informar a vítima sobre a possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia antes do procedimento. 

A Portaria foi revogada e substituída pela Portaria nº 2.561, de 23 de setembro de 2020 que manteve a obrigatoriedade da notificação à autoridade policial sob o argumento de que “como a denúncia não precisa ser feita pela vítima, evita-se o constrangimento e o medo da exposição do abuso.”

Ilustrativo da mobilização anti-aborto por políticos foi o caso da menina de 10 anos estuprada pelo tio no Espírito Santo, que ganhou repercussão nacional. A reação dos militantes anti-aborto foi radical como era de se esperar: a identidade da vítima foi revelada nas redes sociais, iniciando um verdadeiro “caça às bruxas” no qual centenas de ativistas contrários ao aborto protestaram na frente do hospital onde a vítima foi atendida. Após o alarde dos conservadores, incluindo da bancada evangélica, a menina viajou para Recife para que finalmente realizasse o aborto de forma segura. 

Além das novas normativas, as condições concretas disponíveis do sistema de saúde para aborto seguro são precárias. 

Quase 40% das mulheres que fizeram um aborto autorizado por lei no Brasil entre janeiro de 2021 e fevereiro de 2022 realizaram o procedimento fora do município onde moravam. A distância e os custos de deslocamento impõem mais um barreira para o acesso ao aborto seguro que, naturalmente, afetam mais aquelas pessoas que não possuem recursos. 

A criminalização do aborto e dificuldades impostas ao aborto seguro nas hipóteses permitidas afetam mais as mulheres pretas ou pardas. Em 2019, o Sistema Único de Saúde (SUS) registrou cerca de 195 mil internações por aborto (espontâneos e por decisão judicial ou médica), isto é, uma média de 535 por dia. Os abortos por motivos previstos em lei são minoria. A cada 100 internações por aborto, 99 foram de abortos espontâneos e tipos indeterminados de gravidez interrompida, e somente um aborto foi feito dentro das hipóteses legais. De acordo com o DataSus, as principais vítimas de procedimentos de aborto em geral são mulheres negras. De 2009 a 2018, o SUS registrou 721 mortes de mulheres por aborto. A cada 10 que morreram, 6 eram pretas ou pardas.

Atualmente, não existe uma legislação, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que proteja os dados de pessoas gestantes em investigações criminais.

Aprovada em 2018, a LGPD é um marco normativo da privacidade e proteção de dados pessoais e incide sobre áreas que são um “mundo” em si mesmo, como relações de trabalho ou a proteção de crianças e adolescentes4. Basicamente, a nova lei busca tutelar os direitos das pessoas titulares de dados, apresentando salvaguardas e mecanismos de transparência e responsabilização para aqueles que utilizam dados pessoais. 

A LGPD, em seu artigo 4º, excetua sua aplicação para segurança pública, mas explicita, no parágrafo 1º do referido artigo, que a legislação futura deve prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, devendo-se observar o devido processo legal, os princípios gerais da proteção de dados e os direitos do titular previstos na LGPD. Sem proteção, tais dados podem ser objeto de vigilância do Estado e utilizados em prejuízo da pessoa gestante em eventuais procedimentos criminais por suspeita de aborto.

Um possível paralelo a se traçar para prever cenários futuros de tecnovigilância relacionados a pessoas gestantes é os Estados Unidos da América, que também passa por um processo de restrição de direitos reprodutivos e não tem uma legislação federal de proteção de dados.

Há 49 anos o aborto foi legalizado nos Estados Unidos a partir do julgamento do caso que ficou conhecido como Roe v Wade. Em 1969, Norma McCorvey, uma jovem de 25 anos sob o pseudônimo de Jane Roe, desafiou a lei que criminalizava o aborto no estado do Texas. Em 1973, o caso chegou à Suprema Corte norte-americana que julgou que as mulheres tinham um direito de privacidade, fundado no conceito de liberdade pessoal e restrições à ação do estado, presentes na Constituição. Esse direito à privacidade é amplo o suficiente para abranger a decisão de realizar ou não um aborto. Nesse sentido, os ministros decidiram que os governos não tinham o poder de proibir o aborto de maneira irrestrita. Roe v Wade representou uma conquista significativa para a luta feminista na medida em que criou o sistema trimestral, garantindo às mulheres norte-americanas o direito absoluto a um aborto nos primeiros três meses de gravidez. 

Contudo, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu em 24 de junho de 2022, em Dobbs v. Jackson,  superar o precedente de Roe v. Wade e determinou que não existe na Constituição um direito ao aborto e que a autoridade para regular o aborto cabe ao legislativo. 

A decisão não é uma surpresa. Nos últimos anos, ativistas anti-aborto têm ganhado cada vez mais espaço e celebrado as restrições e exigências impostas por alguns Estados para a realização do procedimento

Embora os esforços para controlar o corpo das pessoas gestantes não sejam novidade, atualmente o ativismo anti-aborto conta com estratégicas mais sofisticadas para constranger e perseguir: as tecnologias de coleta e processamento de dados possibilitam rastrear e identificar pessoas que buscam abortar, repassando às autoridades informações que podem levar a processos criminais.

Câmeras corporais (body cams) e rastreamento de placas de carros já estão sendo usadas para localizar pessoas que chegam a clínicas de aborto. Na era pré Roe v Wade quando o aborto era criminalizado, agentes da lei e o movimento pró-vida não dispunham de tecnologias sofisticadas de vigilância que atualmente as autoridades conseguem facilmente operar e utilizar para finalidades diversas

Vigilância, censura on-line, manipulação social e desinformação, derrubada de internet (internet shutdowns) e perseguição direcionada de usuários on-line5 são manifestações do movimento global de repressão digital, perpetrado por Estados, instituições, empresas, organizações e movimentos sociais – inclusive, pelo movimento anti-aborto. Centros de Crise para Gravidez, organizações contra o aborto espalhadas pelos EUA, fingem serem centros de saúde para atrair pessoas gestantes, entretanto não oferecem contraceptivos ou aborto seguro, propagando uma agenda anti-aborto, com informações falsas, como que aborto causaria câncer, infertilidade ou problemas na saúde mental, e não tem obrigações com a privacidade de pacientes como as clínicas de saúde. 

Nesse contexto, os aplicativos de monitoramento de ciclo menstrual (period tracking apps) são uma fonte de dados sensíveis a serem vendidos por data brokers6 ao movimento anti-aborto.

Como explicado pela ONG Coding Rights, os chamados “menstruapps” representam um novo segmento do mercado tech.. Esses aplicativos, que estão entre os mais populares das apps de saúde, realizam o monitoramento do ciclo menstrual e auxiliam no planejamento, na prevenção à gravidez e no alívio de sintomas. O verdadeiro chamariz desses apps é a conveniência e praticidade, o que leva às pessoas a adquiri-los sem avaliar as repercussões da coleta de dados sensíveis7.

Tais aplicativos reproduzem a antiga e conhecida dinâmica de controlar a partir da apropriação dos corpos.

A exploração  dos corpos permanece como um negócio lucrativo e o barateamento e a onipresença das novas tecnologias permite uma nova forma de dominação da subjetividade a partir da precificação de dados sensíveis de saúde8

Na cruzada contra o aborto seguro, práticas de vigilância digital são validadas e encorajadas pelos Estados. No âmbito de um processo criminal, por exemplo, históricos de pesquisa podem facilmente ser solicitados a empresas de tecnologia ou consultados em telefones apreendidos de pessoas suspeitas de fazer ou fornecer um aborto, além de mensagens de texto e emails. Dados de geolocalização e demais informações sensíveis confiadas nos menstruapps podem ser solicitados por agentes da lei

Aparentemente, a tendência é de que apps de monitoramento de ciclo menstrual se tornem alvo de autoridades ou vigilantes conservadores para identificar pessoas em potencial que buscam abortos ou aqueles que os fornecem. Ativistas e acadêmicos pró-escolha sinalizam que as autoridades federais, estaduais e locais poderão utilizar a tecnologia para perseguir pessoas gestantes do mesmo modo que a utilizam para monitorar e constranger pessoas negras, indígenas, racializadas e imigrantes.  Nos Estados Unidos, o Serviço de Imigração e Alfândega (ICE), por exemplo, já contratou empresa data broker para para acessar bancos de dados de placas a fim de rastrear o movimento dos carros. Nada impede que as mesmas estratégias sejam utilizadas na perseguição das pessoas gestantes buscando aborto. 

No fim do dia, proteção de dados, privacidade, direitos digitais e direitos sexuais e reprodutivos estão imbricados. A tecnologia está constantemente modificando as estruturas de poder e inovando com modalidades de repressão digital9 que irão impactar as pessoas desproporcionalmente de acordo com uma série de atributos. 

A interseccionalidade10 para análise dos impactos das tecnologias de processamento de dados e datificação pressupõe que uma série de características interagem entre si – raça, etnia, religião, gênero, localização, orientação sexual, status socioeconômico, entre outros – e determinam a forma como alguns grupos são afetados11. Nesse caso específico, a vigilância on-line pode ser ainda mais prejudicial para pessoas gestantes pobres, periféricas e racializadas.  

Tendo em vista o atual cenário, o exemplo norte-americano tem o potencial de inspirar o conservadorismo brasileiro nos anos vindouros para utilização de tecnologias de processamento de dados e vigilância. 

O que se observa nos Estados Unidos, portanto, é a mobilização da tecnologia e de um mercado de big data altamente estruturado para atender aos interesses políticos de um Estado que intervém arbitrariamente no corpo das pessoas gestantes.

As práticas tecnológicas de vigilância do movimento anti-aborto adicionam uma outra dimensão ao histórico problema relacionado à dignidade, saúde e direito à vida das pessoas gestantes: abre-se margem para a tão necessária e urgente discussão acerca da regulação da atividade de data brokers

No Brasil, as consequências de importar tal estratégia de vigilância baseada em um marketplace de dados de saúde são consideravelmente mais drásticas. Considerando a estrutura capitalista-racista-patriarcal da desigual sociedade brasileira, as consequências de replicar e adaptar as táticas tech de vigilância anti-aborto seriam ainda mais perversas para as pessoas gestantes. 

Referências

1.Hana Mesquita é advogada e pesquisadora na área de proteção de dados e novas tecnologias. Graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e integrante do grupo de pesquisa Legalité – PUC-Rio. É pesquisadora da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa desde junho de 2021. 

2. Marina Garrote é advogada. Mestranda em Processo Civil pela Universidade de São Paulo. Especialista em Gênero e Sexualidade pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

3. Usamos a nomenclatura pessoas gestantes para abranger outras identidades de gênero além das pessoas gestantes cisgêneros, que também podem engravidar e desejar realizar um aborto. O uso do termo mulheres ao longo do texto se manteve quando necessário para corresponder com a referência bibliográfica utilizada. A lei Argentina de Interrupção Voluntária da Gravidez estabelece o direito à interrupção às pessoas gestantes e pessoas com outras identidades de gênero com capacidades de gestar (https://www.argentina.gob.ar/noticias/ley-no-27610-acceso-la-interrupcion-voluntaria-del-embarazo-ive-obligatoriedad-de-brindar). Pessoas trans têm mais dificuldade de acesso ao aborto, mesmo em hipóteses permitidas por lei, devido à discriminação (https://azmina.com.br/colunas/eu-fiz-um-aborto-sou-trans-e-engravidei-depois-de-ser-estuprado/) e (https://www.opendemocracy.net/pt/trans-colombia-abortion-pt/). Existem algumas medidas de segurança que podem ser tomadas para contornar em parte a vigilância estatal no uso da tecnologia: (https://www.eff.org/pt-br/deeplinks/2022/05/digital-security-and-privacy-tips-those-involved-abortion-access). 

4. BIONI, Bruno; RIELLI, Mariana (Org). Coleção LGPD em movimento – 8 temas chave de implementação: uma visão multissetorial. Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa. 2022.

5.  FELDSTEIN, Steven. The Rise of Digital Repression. How Technology Is Reshaping Power, Politics, and Resistance. New York: Oxford University Press, 2021. 336p. ISBN: 9780190057497. 

6.  Data brokers significam corretores de dados. São empresas que coletam ou compram dados de outras empresas (como uma empresa de cartão de crédito), rastreiam a Internet em busca de informações úteis sobre usuários – legalmente ou não – e agregam às informações com dados de outras fontes (por exemplo, fontes offline). A corretagem de dados representa a prática de obter dados sobre usuários, agregá-los e aprimorá-los para vender a clientes.

7.  MESQUITA, Hana. Menstruapps e a proteção de dados sensíveis de pessoas gestantes e adolescentes. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/menstruapps-protecao-dados-pessoais-pessoas gestantes-14112020. Acessado em 14 de junho de 2022.

8.  Ibid.

9.  FELDSTEIN, Steven. The Rise of Digital Repression. How Technology Is Reshaping Power, Politics, and Resistance. New York: Oxford University Press, 2021. 336p. ISBN: 9780190057497. 

10.  Segundo Kimberlé Crenshaw,  teórica feminista e professora estadunidense especialista em questões de raça e gênero, interseccionalidade é “uma forma de pensar a identidade e sua relação com o poder. Originalmente articulado em nome das mulheres negras, o termo trouxe à tona a invisibilidade de muitos constituintes dentro de grupos que as reivindicam como membros, mas muitas vezes deixam de representá-las. As rasuras interseccionais não são exclusivas das mulheres negras. Pessoas de cor dentro dos movimentos LGBTQ;  mulheres nos movimentos de imigração; mulheres trans nos movimentos feministas; e pessoas com deficiência que lutam contra o abuso policial – todos enfrentam vulnerabilidades que refletem as interseções de racismo, sexismo, opressão de classe, transfobia, capacidade e muito mais. A interseccionalidade deu a muitos defensores uma maneira de enquadrar suas circunstâncias e lutar por sua visibilidade e inclusão”. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/news/in-theory/wp/2015/09/24/why-intersectionality-cant-wait/?postshare=5351443143466154. Acessado em 14 de junho de 2022.

11.  TAYLOR, Linnet. What is data justice? The case for connecting digital rights and freedoms globally. https://doi.org/10.1177/2053951717736335.

Canais de comunicação da Data Privacy Brasil de Pesquisa:

Site: https://www.dataprivacybr.org/
Instagram: @dataprivacybrasil
Twitter:  @DataPrivacyBr

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