Em entrevista ao Portal Catarinas, Adriana Guzmán fala sobre a criação do projeto político feminista comunitário antipatriarcal frente às violências contra os povos e as mulheres indígenas na Bolívia.

O avanço dos fundamentalismos religiosos que dão nova “cara” à exploração capitalista e colonial nos dias atuais, a necessária retomada da memória das lutas feitas por mulheres ancestrais, as avós do feminismo comunitário na Bolívia e em Abya Yala, e a necessidade da articulação das lutas feministas nos distintos territórios onde nos localizamos, rompendo com a lógica individualista e liberal do feminismo europeu.

Estes são alguns dos temas abordados nesta quarta e última parte da entrevista com Adriana Guzmán, mulher indígena Aymara da Bolívia, lésbica, feminista comunitária antipatriarcal, reconhecida pelo movimento indígena e pelos movimentos feministas latino-americanos.

Segundo ela, “a pandemia nos mostrou que sozinhas não podemos nos salvar. Que para enfrentar a pandemia precisamos estar organizadas, nem que seja com a vizinha, para que me ajude a pedir auxílio. Então, é um momento para nos articularmos. É fundamental rompermos o individualismo. Assumir que sou feminista implica me articular, e que tenho que encontrar formas de fazer isso. E o campo de luta, o espaço de luta, é um espaço de encontro”.

Leia também a terceira parte da entrevista com Adriana Guzmán:

PORTAL CATARINAS – Como os povos indígenas na Bolívia, e o seu Povo Aymara especificamente, vêm sendo afetados com o movimento de polarização política no país, o avanço de grupos religiosos neopentecostais, como parte de um processo histórico?
ADRIANA GUZMÁN – Nós temos uma resistência de 500 anos à colonização, e esta colonização se deu principalmente pela religião. Isso não significa, para nós, discutir sobre as espiritualidades, porque nós respeitamos as irmãs e os irmãos que decidem crer em determinado deus, que decidem praticar a sua própria espiritualidade. Não é essa a discussão.

A discussão é sobre as igrejas. O poder que as igrejas adquiriram e a imposição dos fundamentalismos que têm feito as igrejas. O problema não é que a minha irmã seja evangélica, por exemplo, na comunidade, e sim que ela chegue a ser legisladora, que chegue a ser senadora, que chegue a ser ministra e que esteja dentro do Estado legislando não desde a comunidade, não desde um mandato que nós podemos dar, mas desde sua religião, desde as imposições de sua igreja e de seus pastores. Eu creio que isto está se vendo claramente no Brasil, e aqui se tem tentado reproduzir no golpe de Estado.

O problema não é a espiritualidade. O fundamentalismo tenta colocar isso para que eu brigue com a minha vizinha, porque eu não creio em deus e ela crê. Mas o problema não é com a minha vizinha, o problema é com os que tem poder.

Porque no capitalismo, hoje, os empresários estão utilizando a religião para seguir alimentando a exploração. Eu não acredito que Bolsonaro creia em deus e nem creia em ninguém. Ele crê no dinheiro, e utiliza, manipula o fundamentalismo para legitimar essa exploração, para legitimar seu poder, para legitimá-lo como figura e ser presidente. Isso estão fazendo os fundamentalistas no mundo.

Na Bolívia também, e no golpe de estado que foi dado, Jeanine Áñez, profundamente fundamentalista, evangélica, abriu espaço para as igrejas. Mas tem sido possível também porque no Parlamento já havia pessoas das igrejas vinculadas com as empresas, cuidadores do capital das transnacionais que, a partir do Congresso, começaram a colocar esse discurso fundamentalista para legitimar seus interesses econômicos.

O golpe se deu assim, com a bíblia, vocês devem ter visto na televisão, decidiram retirar a Pachamama do Palácio do Governo, queimaram a whipala¹, e colocaram o país nas mãos de deus. Para nós, tem sido um golpe muito forte, por isso falamos de “um golpe ao povo”, um golpe muito forte porque sentimos a colonização, era como estar 500 atrás vendo como Colombo chegava com os padres que chegaram com ele.

Em primeiro plano, Adriana Guzmán / Foto: arquivo pessoal

Mas tampouco somos tolas, sabemos que isso não é o fundamental. Por trás estão os interesses econômicos. O que querem fazer é encobrir, colocar uma nova cara aos interesses econômicos, às transnacionais. O que fazem as empresas transnacionais, as empresas petroleiras? A primeira coisa que fazem para entrar em um território é colocar uma igreja e tentar fragmentar.

Colocam uma igreja, um prostíbulo, um lugar de prostituição de nossas filhas, para romper a comunidade. Só assim conseguem entrar para destruir os rios e retirar o mineral. Então, temos que discutir os fundamentalismos sim, mas os fundamentalismos em sua manipulação, em sua forma de ser ferramenta do capitalismo dentro dos Estados.

PORTAL CATARINAS – De que maneira a força do exemplo de outras mulheres indígenas como Bartolina Sissa, Domitila Chúngara e Micaela Batidas, entre tantas outras, contribui na luta das mulheres indígenas e do movimento feminista comunitário antipatriarcal em Abya Yala?
ADRIANA GUZMÁN – Quando nós nos definimos como feministas e, em pouco tempo, como feministas comunitárias, temos pensado em falar com outras feministas que falar de Simone de Beauvoir, que falavam de feministas reconhecidas, que eram suas avós, digamos. E nos perguntamos: quem vão ser nossas avós? Porque obviamente Simone de Beauvoir não é nossa avó, nem nos vemos nela, nem poderia ser nossa avó.

Então, uma das primeiras e das principais lutas foi reconhecer as nossas avós. Se realmente poderíamos dizer que Bartolina era feminista e poderia ser nossa avó no feminismo comunitário, e Domitila Chúngara, que questionava muito as feministas.

Por isso, um eixo fundamental para nós é a memória. Porque a memória não é o mesmo que a história, ou somente ler a Domitila Chúngara, mas é ser responsável com o que ela propunha, escutar seus discursos, pensar que temos uma responsabilidade com a sua luta, com a sua palavra. Eu não posso estar aqui lutando sem reconhecer o que tem feito Domitila Chúngara e sem reconhecer a luta de todo o povo que a tem acompanhado. Por isso, a memória é importante para nós.

Sim, nossas avós são Bartolina Sisa, porque Bartolina lutou contra o sistema. Bartolina não disse “vamos tirar os espanhóis para governarmos”. Bartolina propôs, por exemplo, castrar os espanhóis, porque uma discussão profunda que tinha era sobre a violação sistemática delas e de suas avós, coisas que os homens não discutiam, inclusive os Aymaras. Coisas que os homens não discutiam para enfrentar os espanhóis. Tem sido uma das diferenças, inclusive fragmentações, dentro do movimento indígena de 1781, porque as mulheres sim queriam que se punissem os estupros que temos vivido sistematicamente nós mulheres e nossas avós.

Assim, para nós, Bartolina Sisa é nossa avó do feminismo comunitário porque lutou contra o sistema, para além de que se chame ou não feminista, rompendo com a lógica eurocêntrica de que o feminismo começou na Revolução Francesa. O feminismo nasceu nos territórios onde se tem lutado contra o patriarcado, no tempo em que se lutou contra o patriarcado. Em nosso caso, desde antes de 1700. É importante, então, essa recuperação da memória porque aprendemos com essas lutas, como essa discussão que fez Bartolina Sisa contra o estupro.

A discussão que tem feito Domitila Chúngara é sobre a aliança dos homens com o sistema. Domitila Chúngara, uma mulher mineira, questionava o imperialismo mas, se os homens nos batem, se os homens nos violam/estupram, devem ser cúmplices do imperialismo, dizia ela. São servidores do imperialismo porque estão ajudando a que nos oprimam. Este é um questionamento fundamental para os homens, porque eles creem que, desde que nascem, todos são anti-imperialistas. Como são anti-imperialistas se reproduzem lógicas de opressão?

As avós, para nós, nos ajudam a fazer o caminho, a lembrar das lutas. E além disso, são uma força, são uma energia política, elas têm lutado para que nós possamos viver de uma forma distinta. Como vamos passar por essa vida sem conseguir viver de uma forma distinta? Como vamos respeitar sua luta se não vamos continuá-la? É muito importante, para nós, as nossas avós, a alimentação da memória, não somente da história. Não queremos só conhecer suas biografias, queremos nos fazer responsáveis com sua luta, com sua palavra.

Eu acho que isso falta um pouco para o movimento feminista. O movimento feminista, sobretudo na Europa, tem história, não tem memória. As feministas leem, estudam a história, mas o que precisam fazer é alimentar a memória, a energia do corpo, a responsabilidade política. Isso não se aprende lendo, isso se aprende sentindo no corpo, sentindo que as opressões à Bartolina continuamos vivendo agora e, por isso, é impossível não lutar, é impossível não ser feminista, é impossível não denunciar o patriarcado.

Com o microfone, Adriana Guzmán / Foto: arquivo pessoal

Isso é uma aprendizagem que fazemos em nosso território. As irmãs do México, por exemplo, reconheceram sua avó a comandanta Ramona, Rosa Elena Tránsito Amaguaña Alba, no Equador, María Sabina, curandeira e senadora, também do México.

É um processo de descolonização do feminismo, mas também é um processo de alimentar a memória das lutas feministas.

PORTAL CATARINAS – Para terminar, gostaríamos de saber sua percepção sobre como é possível que nós, que estamos localizadas nos centros urbanos, no jornalismo e nas universidades, que somos feministas, antipatriarcais, anticapitalistas, mas que não temos uma conexão, muitas vezes, direta com a luta das mulheres indígenas e dos povos das florestas, por exemplo, como podemos fortalecer e articular as nossas lutas? Como fazer esse movimento de aproximação de uma discussão mais profunda antirracista e decolonial? 
Eu compartilho de sua reflexão. É necessário nos articular. Não podemos seguir em lutas fragmentadas. O sistema o que tem feito é nos dividir em lutas ecofeministas, da via campesina, as que lutam por aborto, as animalistas, as anti-especistas, e cada qual em seu lado. Eu creio que este é um momento de muita crise, mas é um momento também de muitas possibilidades frente ao sistema. A pandemia nos mostrou que sozinhas não podemos nos salvar. Que para enfrentar a pandemia precisamos estar organizadas, nem que seja com a vizinha, para que me ajude a pedir auxílio. Então, é um momento para nos articularmos.

Agora, “como?” é a grande pergunta. Porque as lógicas coloniais nos tem fragmentado. As lógicas coloniais no sentido também de culpa e vitimização. Aqueles que vivem nas cidades ou não trabalham na terra, geram muita culpa também. Isso de falar dos privilégios permanentemente também me parece uma estratégia perversa em algum sentido, porque nunca iremos nos encontrar, porque vocês têm privilégios e nós não, então o que fazemos com isso? O que fazemos?

Para mim, é fundamental rompermos o individualismo. Assumir que sou feminista e isso implica me articular, e que tenho que encontrar formas de fazer isso. Em segundo é o campo de luta, o espaço de luta, é um espaço de encontro. Vamos poder nos encontrar na medida em que tenhamos lutas.

Não que vamos ajudar na luta de ninguém. As cidades são territórios ancestrais. As cidades não têm empresas mineiras no centro, mas têm a grande indústria imobiliária que está destruindo esse território onde se teria que habitar de forma digna. Estes edifícios, estas casinhas onde colocam as pessoas, a exploração e o empobrecimento que gera insegurança, que é parte do sistema, onde filhos e filhas precisam sair de casa e, muitas vezes, a roubar porque não há outra forma. Esta criminalização das favelas, a criminalização dos bairros e das vilas. O gatilho fácil que se aperta nesses espaços. Aqui também há uma criminalização das e dos jovens nas cidades.

Então eu creio que o campo de encontro é a luta. Há lutas profundas nas cidades que, para mim, devem ser lutas por território também. Porque a luta contra a indústria imobiliária é uma luta por território. A luta para recuperar a organização no bairro, porque ninguém se importa, todos estão trancados porque pensam que irão roubá-los, não se importam se há luz, se há água, se há polícia, se a polícia mata. Essas são as lutas que se devem fazer nas cidades.

As comunidades são importantes, e estamos lutando há muitos anos, defendendo a água, defendendo o território. Mas as decisões políticas se fazem nas cidades. Os presidentes se elegem nas cidades. As leis se transformam nas cidades. Então é isso que está faltando. Com certeza vamos nos articular com as cidades quando nas cidades tenham lutas profundamente antipatriarcais. Não tenho uma resposta, mas tenho a mesma preocupação e a mesma certeza que vocês, que temos que fazer as lutas articuladas.

A descolonização do feminismo passa por questionarmos essas lógicas individualistas e liberais que são impostas pelo feminismo europeu. As lógicas dos direitos. Não podemos dizer que os feminismos são somente a luta pelos direitos das mulheres. O feminismo é a luta contra o patriarcado. O patriarcado usa o sistema de direito, muitas vezes, para legitimar sua exploração.

A descolonização nos desafia a construir feminismos que respondam aos nossos territórios, sejam comunitários, territoriais, das favelas, seja como se chamem. Precisamos construir essas ferramentas de luta contra o sistema. Uma das coisas que temos que fazer nesse processo que, para mim, é de descolonização, é descolonizar o idioma, descolonizar o território das palavras, porque algo que nos dificulta para articular com as irmãs no Brasil é o idioma. Que aqui falamos castelhano e vocês português.

Mas podemos nos entender. Haverá coisas que serão mais difíceis, mas precisamos romper com esta imposição de estarmos fragmentadas por não falar português ou por não falar castelhano. As coisas que estão passando no Brasil nos afetam em toda a Abya Yala e vice-versa.

Precisamos romper com isso ou, melhor, restaurar essa ruptura que tem sido feita a partir do idioma pelo menos dentro do feminismo. Não podemos seguir caminhando em duas lógicas distintas. Nos faz falta nos encontramos.

Leia as outras partes da entrevista, começando pela parte 1:

* Esta série é resultado de uma entrevista realizada com a Adriana Guzmán, mulher indígena lésbica Aymara da Bolívia. Dividida em quatro partes, apresentamos suas reflexões sobre a formação do Feminismo Comunitário Antipatriarcal na Bolívia, a importância da autonomia, o lugar da luta pela descriminalização do aborto, a discussão política sobre os fundamentalismos religiosos que tentam subjugar os povos indígenas e o exemplo de mulheres indígenas que lutaram contra o poder colonial até os dias atuais. É um convite à reflexão a partir de uma das referências latino-americanas na luta contra as opressões e as violências contra as mulheres.

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