Aproximadamente 30% das trabalhadoras e trabalhadores sofrem com a síndrome de burnout no Brasil, ou seja, estão esgotadas, segundo a Associação Nacional de Medicina do Trabalho. “Não é que você não seja bom o suficiente, é que o sistema em que a gente vive é uma máquina de moer gente”. O trecho é do manifesto da comunidade #otrabalhoqueagentequer, fundada pela jornalista Daniela Arrais e pela publicitária Luiza Voll, que busca transformar as relações das pessoas com o trabalho.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o país com a maior taxa de pessoas com depressão na América Latina. Cerca de 11,7 milhões de brasileiras e brasileiros convivem com a doença. A OMS alerta ainda que, apesar da doença atingir pessoas de todas as idades e nível de renda, fatores como a pobreza e o desemprego aumentam a probabilidade da pessoa desenvolver depressão, bem como, situações que causam estresse e preocupação.

Uma pesquisa da Capita, empresa que atua na área de processos de negócios, mostrou que 79% dos trabalhadores brasileiros relataram ter sofrido estresse no trabalho nos últimos 12 meses e 47% acham que é normal se sentir assim no ambiente. “Até ter a possibilidade de conversar sobre isso já é um privilégio”, lembra Arrais.

Dentro deste cenário, conversamos com a jornalista sobre as relações entre as pessoas e trabalho, com base nos princípios da comunidade #otrabalhoqueagentequer, discutindo as políticas públicas urgentes para transformar essa realidade.

Arrais atua com inteligência criativa em escrita, fazendo da palavra o ponto de partida para transformações em diferentes escalas. É jornalista e co-fundadora da Contente, primeira plataforma brasileira sobre bem-estar digital que impactou 3.6 milhões de pessoas nos últimos três meses.

No #otrabalhoqueagentequer, reimagina o presente e o futuro do trabalho em comunidade. Junto à Pomar, oferece para empresas e equipes, experiência presencial, em São Paulo, para reflexão sobre os sentidos do trabalho.

Como uma das mentes por trás do Coletivo Dupla Maternidade, Arrais não apenas articula, mas une famílias com configurações similares à sua própria, formando uma comunidade com mais de 800 mulheres de todo o país. Nascida em Pernambuco, escolheu São Paulo como lar desde 2006.

Confira a conversa:

Pode contar, por favor, sobre a sua trajetória e relação com o trabalho até chegar à criação da Contente.vc e O trabalho que a gente quer?

A Contente é uma empresa que foi criada a partir do sonho, até quase de uma utopia. Eu sou jornalista, a Luiza Voll, minha sócia, é publicitária. Nos conhecemos pela internet e logo vimos que aquele match [combinação] era muito forte. Falávamos de internet apaixonadamente, quando esse nem era um assunto tão recorrente. 

Começamos a trabalhar juntas, criamos um projeto pioneiro em vários sentidos, o Instamission, que transformou a relação das marcas com comunidades nas redes sociais, passamos a atender clientes de diversos tamanhos e segmentos.

Há quase quatro anos, passamos a desenvolver a plataforma @contente.vc também. Em nossa atuação juntas, sempre tentamos colocar o trabalho no lugar do trabalho. Algo cheio de significado e propósito, um negócio também, mas algo além: que nos nutre, que nos faz ampliar visão de mundo, que nos faz nos conectar com outras pessoas, que permite que nossos talentos sejam colocados a serviço de quem precisa desenvolver uma ótima comunicação. Mas que, também, não “suga” nossas vidas.

A vida é maior que o trabalho. Como podemos equilibrar essa relação? Se por um lado criamos o trabalho que a gente queria que existisse, por outro também fazemos parte de um cenário de múltiplas crises.

Nas redes sociais, é comum encontrar memes que retratam a aversão à segunda-feira e a ansiedade pelo fim de semana, refletindo o desgaste causado pela semana de trabalho. Amo memes de uma forma geral, quem não, né? Mas esse discurso de um cansaço extremo com o trabalho acendeu um alerta pra gente, juntamente com todos os dados que mostram como estamos vivendo um momento muito complicado em relação a esse assunto.

A sensação é de que ninguém aguenta mais não aguentar mais, como diz o livro de mesmo nome. Mas não temos muita opção, vamos precisar continuar trabalhando, provavelmente pelo resto da vida. Então será que dá pra pensar mais profundamente sobre como anda essa relação? Foi aí que surgiu @otrabalhoqueagentequer, que começou como conteúdo, se expandiu para uma comunidade para assinantes e agora se desdobra também em uma experiência presencial em São Paulo. 

A partir da comunidade, dos seus estudos e da criação dos conteúdos, como você percebe o mercado de trabalho atualmente e a relação das pessoas com ele?

Transtornos mentais e comportamentais no país subiram 38% no último ano, de acordo com o Ministério da Previdência Social. Estudo da Deloitte feita nos Estados Unidos aponta que 77% dos funcionários relataram esgotamento em seus empregos atuais. Poderia falar de muitos dados aqui, mas o mais tangível é como o trabalho virou uma conversa central nas nossas vidas. Tá difícil demais, então a gente reclama, se conecta, tenta achar alternativas.

Compartilho nosso manifesto, que resume bem nossa visão sobre o assunto:

Se te perguntássemos como anda sua relação com o trabalho, o que você diria?

Que na segunda já espera o fim de semana? Que a ansiedade virou lugar-comum e que não sabe a última vez que fez algo sem ser correndo? 

A internet colou o trabalho ao nosso corpo, 24h por dia. 

A sensação é de que não há tempo a perder, precisamos ocupar todos os espaços. Se não, “alguém” tomará nosso lugar. 

Estamos exaustos. Colapsamos. 

Ao mesmo tempo, nunca esperamos tanto do trabalho. 

Nós desejamos que ele nos dê tudo: além de dinheiro e uma carreira, senso de propósito, de pertencimento, significado. 

A cultura reforça nosso vício em fazer, em buscar sempre mais utilidade para a vida. Enfraquecemos nossos laços de afeto e comunidade enquanto corremos feito hamsters na rodinha que nos promete chegar lá. Existe linha de chegada, aliás?

Se não nos encaixamos no ritmo, sentimos que a culpa é nossa. 

Transformamos um problema coletivo em uma questão individual. 

Não é que você não é bom o suficiente, é que o sistema em que a gente vive é uma máquina de moer gente. 

Dá pra continuar assim?

Precisamos ressignificar nossa relação com o trabalho.

Por isso, temos um convite.

#otrabalhoqueagentequer é uma comunidade para reimaginar a forma que trabalhamos, trilhar práticas de transformação e participar das conversas mais importantes sobre o presente e o futuro do trabalho.

Trabalhar não deveria ser tão horrível. 

Como podemos mudar essa realidade sobre o trabalho “ser tão horrível”?

A gente precisa pensar sobre. Falar sobre. Tentar buscar respostas.

Fazer isso coletivamente muda tudo, porque deixamos de ver nossos problemas como individuais e entendemos que a questão é coletiva. Vale lembrar, claro, que até ter a possibilidade de conversar sobre isso já é um privilégio.

Em quase um ano de Comunidade, fizemos diversas conversas, clubes do livro, encontros presenciais e percebemos como a transformação pode acontecer. Ouvimos relatos de pessoas que se sentiram apoiadas pela comunidade para fazer uma transição de carreira, por exemplo. Toda semana tem gente falando sobre limites, sobre como equilibrar o trabalho com as demais áreas da vida. 

Também começamos a levar a conversa para as empresas. A estreia foi no Google Brasil. Na experiência, a Contente constrói pontes de diálogos entre equipes, mapeia em conjunto as possibilidades de melhoria do trabalho e ajuda equipes a encontrarem os seus próprios ideais do que é #otrabalhoqueagentequer. 

 Como funciona a metodologia:

– Arquitetura do sonho: abrimos um espaço para a imaginação radical em exercícios de utopia e reconexão;

– O colapso do mundo do trabalho no pós pandemia: uma roda de conversa sobre fenômenos como quiet quitting [demissão silenciosa], conflito entre millennials [aqueles que nascerem, aproximadamente, entre 1980 e 1995] e gen Z [aqueles que nascerem, aproximadamente, entre 1995 e 2010] e movimento anti-ambição e como eles têm moldado as relações corporativas;

– Por que “desconexão” e “desengajamento” se tornaram as palavras de ordem no mundo do trabalho?;

– Momento de criação coletiva: produção de um manifesto que potencializa rotinas individuais e coletivas, repactuando o compromisso das equipes com um trabalho que esteja centrado no bem-estar e na eficiência humanizada.

Existem questões que precarizam ainda mais o mercado de trabalho, como dupla e tripla jornada em casos de mulheres, a “uberização” de profissões e/ou preconceitos de raça, sexualidade e gênero. Como pensar a mudança da atual realidade do mercado de trabalho considerando também essas desigualdades?

Não consigo pensar em outra resposta: precisamos repensar o sistema em que vivemos. É o que Ailton Krenak fala: os homens conseguem pensar no fim do mundo, mas não no fim do capitalismo. Que loucura, né? Desse jeito só está bom pra alguns poucos. Como pode ficar melhor pra mais gente?

Entre as discussões recentes que vocês trouxeram nos perfis, estão, por exemplo, a questão do Trabalho do Cuidado e da redução da jornada de trabalho. Quais são as principais políticas públicas que você acredita que precisamos nesse momento em relação ao trabalho?

Precisamos pensar em jornadas de trabalho onde a vida caiba. Precisamos tratar o trabalho do cuidado com o devido valor que ele tem. 

Quando a gente fala de trabalho e tempo, principalmente considerando experiências de pessoas que se deslocam para os seus empregos, uma das propostas mais interessantes atualmente é a reforma trazida pelo movimento VAT, que sugere o fim da escala 6×1.

Não dá pra pensar em melhores condições de trabalho sem passar pelo fato de que ter apenas um dia de descanso, em toda a semana, é inviável e insuficiente para dar conta das outras áreas da vida, como saúde, bem-estar, cuidados domésticos e com filhos. 

Como você bem pontuou na pergunta, é fundamental também reconhecer e valorizar o trabalho do cuidado, especialmente o entendimento da dupla jornada feminina como trabalho. Muitas mulheres desempenham múltiplos papéis, conciliando o trabalho remunerado com as responsabilidades domésticas e de cuidado.

Nesse sentido, para começar uma transformação, acredito que a implementação de licenças parentais igualitárias é uma das medidas possíveis para promover a igualdade de gênero no mercado de trabalho e incentivar a participação de todas as partes nos cuidados com os filhos desde os primeiros dias de vida. 

Além disso, é importante investir em infraestrutura de creches e centros de cuidado infantil de qualidade, como nós bem sabemos, nem todo mundo pode contar com uma rede de apoio ou pagar por uma.

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  • Daniela Valenga

    Jornalista dedicada à promoção da igualdade de gênero para meninas e mulheres. Atuou como Visitante Voluntária no Instit...

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