Desde que assisti à série dinamarquesa “Borgen”, costumo indicá-la às minhas turmas de Ética Profissional e de Direitos Humanos para que percebam as linhas dos jogos políticos que existem na trama democrática de um Estado de Direito. Essa série trata em torno da trajetória da personagem Birgitt Nyborg, que chega ao poder de um partido nas eleições parlamentares da Dinamarca e assume o cargo de primeira ministra do país.
Nesse caminho da série, acompanhamos o jogo político-partidário, a tensão entre posições progressistas e conservadores e, o que me interessa nesse texto, como direitos e posições são negociadas nesse jogo – revelando que interesses e posicionamentos político-partidários fazem parte de uma skin que está voltada para o jogo, e não para a concretização de direitos humanos.
Esse jogo é formado por “[…] concessões e exigências feitas uns aos outros para formar um governo estável ou para fortalecer uma oposição capaz de conter a força política do governo”. Esses partidos “jogam esse jogo entre si, às vezes cruzando a fronteira entre direita e esquerda, tentando viabilizar seus projetos políticos ou maximizar seu poder, lançando mão de estratégias e de táticas, de olho no impacto de suas ações na imprensa e na opinião pública. Eles devem manter o foco nas consequências de suas ações sobre seus eleitores visando eleições e conquistar fatias flutuantes do eleitorado para o quê devem ajustar sua retórica e ainda lidar com a imprensa”1.
Em outras palavras, vemos em “Borgen”, de uma forma muito nítida e interessante, como que pautas relacionadas a valores sociais e princípios democráticos entram como barganha nas concessões, sendo acionados como mero instrumentos para outros objetivos e não propriamente como prioridades. Afinal de contas, a prioridade não é concretizar direitos humanos relacionados a esses valores, mas sim conseguir alcançar algum determinado objetivo partidário.
Em tal contexto, os direitos humanos passam a ser meras cartas em um jogo que atende a grupos político-partidário em um jogo político que, em nome da tão aclamada Democracia e de um Estado de Direito, estrutura a organização política moderna.
A partir disso, meu objetivo é refletir sobre o contexto que vivemos no Brasil.
Estamos acompanhando esse movimento de jogos que parece brincar com a sociedade brasileira e mexer, indevida e inconvenientemente, com valores muito caros para cada pessoa. E aqui friso que, mesmo com um presidente que se coloca como progressista, esse carteado acontece.
Essas cartas do jogo, que trabalho brevemente aqui, envolvem questões relacionadas a questões de gênero, especialmente sobre direitos sexuais e reprodutivos, e em referência à descriminalização da posse/porte de drogas para consumo pessoal. A notícia da semana é sobre a redução da possibilidade de aborto legal no caso de violência sexual.
1. Questões de gênero: direitos sexuais e reprodutivos
As questões de gênero instrumentalizadas nesse jogo político aqui destacadas são as relacionadas a aborto e ao casamento entre pessoas do mesmo gênero.
No Brasil, o aborto é juridicamente aceitável em casos excepcionais: dois dispostos no Código Penal e um decidido pelo STF.
Os dispositivos legais do Código Penal estão no art. 128, que estabelece sobre a não punição do aborto praticado por médico no caso de aborto necessário (I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante); e na hipótese de aborto no caso de gravidez resultante de estupro (II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal). A terceira hipótese de aborto legal é a estabelecida pelo processo de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 54, julgado pelo STF em 2012, verificadas as condições de diagnóstico de anencefalia.
No nosso país, há a discussão social por fortes movimentos ativistas sobre a descriminalização do aborto. No campo judicial, a descriminalização é debatida juridicamente no processo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442.
A discussão judicial, que está em conclusão para a Relatoria desde 28 de maio de 2024, recebeu o voto da ministra Rosa Weber pela descriminalização da interrupção voluntária da gravidez (aborto), nas primeiras 12 semanas de gestação. Flávio Dino, com a aposentadoria de Rosa Weber, assume a relatoria do processo e já adiantou, em sua sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que esse tema deve ser discutido pelo Congresso Nacional.
Nesta semana, a notícia que mencionei anteriormente se refere ao Projeto de Lei 1904/24, que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio, cujo regime de urgência foi aprovado ontem.
Segundo a Agência Câmara de Notícias, “o projeto foi apresentado no mesmo dia em que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou a suspensão da resolução aprovada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) para proibir a realização da chamada assistolia fetal para interrupção de gravidez após 22 semanas de gestação. A técnica utiliza medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto, antes de sua retirada do útero”.
A movimentação parlamentar não é coincidência ao encaminhamento judicial do STF. Ao contrário, é um movimento impulsionado pela decisão mencionada, compondo a posição legislativa nacional e questionar as atividades do Poder Judiciário.
Obviamente, essa jogada também afronta o princípio da progressividade dos direitos humanos, buscando ancorar a questão em uma posição conservadora e de restrição da autonomia das pessoas que gestam.
As cartas do jogo relacionadas a essa questão não são recentes. Há o desacreditado projeto de lei denominado Estatuto do Nascituro, que de forma intermitente, é colocado à discussão parlamentar nacional.
Atualmente, o estatuto do Nascituro está protocolado como o PL 434/2021 (apensado ao PL 11148/2018), aguardando Despacho do Presidente da Câmara dos Deputados e designação de Relator(a) na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher.
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Nesse texto, há o estabelecimento de que o nascituro, enquanto “indivíduo humano concebido, mas ainda não nascido”, tem “personalidade civil do indivíduo humano começa com a concepção” (artigos 1 e 2), o que afronta os parâmetros atuais do aborto legal. Além disso, determina que:
Art. 13 O nascituro concebido em razão de ato de violência sexual goza dos mesmos direitos de que gozam todos os nascituros, além dos seguintes:
I – direito prioritário à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da gestante;
II – direito à pensão alimentícia no valor de, pelo menos, um salário mínimo, até que complete dezoito anos de nascido;
III – direito prioritário à adoção, caso a mãe não queira assumir a criança após o nascimento.
Parágrafo único. Se for identificado o genitor, será ele responsável pela pensão alimentícia a que se refere o inciso II deste artigo, na proporção de seus recursos; se não for identificado ou se for insolvente, a obrigação recairá sobre o Estado, no valor mínimo.
Com esse dispositivo, afronta a espécie de aborto legal disposto no artigo art. 128, inciso II, do Código Penal, que confere a possibilidade a mulher, sendo vítima de crime sexual, poder realizar o aborto. Por consequência, acarreta a proposta de redução da autonomia das mulheres e da proteção conferida à sua integridade física e psicológica.
Quanto ao casamento homoafetivo, também associado à questão de direitos humanos, especificamente direitos sexuais e reprodutivos, o PL 5167/2009 propõe que, no Código Civil, seja inserido o parágrafo único, no art. 1.521, com a seguinte letra: “Nos termos constitucionais, nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou a entidade familiar”.
No Poder Legislativo, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou esse projeto e, atualmente, está aguardando parecer do(a) Relator(a) na Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial.
Essa jogada política afronta a decisão do STF que, no ano de 2011, reconheceu a União Estável Homoafetiva no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132. Nessa decisão, pelo princípio da igualdade e da não discriminação, dentre outros, que as relações entre pessoas do mesmo gênero2 possuem igual valor e proteção jurídica como as relações entre homens e mulheres. Nessa sequência, a união homoafetiva também é reconhecida juridicamente como um núcleo familiar.
2 – PEC de Criminalização da posse e porte de drogas para consumo pessoal
No Congresso Nacional, está em trâmite a PEC 45/2019, que propõe o acréscimo de um inciso ao Artigo 5º da Constituição, com o objetivo de considerar crime a posse e o porte de qualquer quantidade de drogas sem autorização ou em desacordo com a lei.
Segundo notícia do Senado Federal: “a PEC, de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), foi uma reação do Congresso Nacional ao julgamento do STF que analisa a possível descriminalização da posse de maconha. No Senado, a medida foi aprovada por 53 votos favoráveis e 9 contrários”.
Esse manejo político afronta os encaminhamentos do STF no julgamento do recurso extraordinário (RE 35659) que discute a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343, de 2006), que trata das penalidades para o porte de drogas para consumo pessoal.
A discussão iniciou-se em 2015 e envolve o debate sobre a constitucionalidade do artigo 28 da atual Lei de Drogas (11.343/2006), que fala de transporte e armazenamento para uso pessoal. A maioria da Corte, por ora, defende um limite em gramas para diferenciar o usuário do traficante, o que não é definido pela lei. Assim, conduz-se ao entendimento da descriminalização da posse e do porte de drogas para consumo pessoal.
Importante destacar que as decisões do STF são obrigatórias para sociedade como um todo e para os Poderes Executivo e Judiciário. O Poder Legislativo, no entanto, não tem essa obrigação de respeitar o conteúdo das decisões do STF para a produção de leis. Essa é uma enrascada do jogo: enquanto muitos acham que as decisões do STF são “leis”, na verdade, são decisões do Poder Judiciário, poder que interpreta as leis, e que não possuem força alguma no trabalho legislativo3.
Na verdade, as decisões do STF são uma referência para esse jogo político, para o bem ou para mal. E, nesse sentido, o jogo, observado a partir dos Direitos Humanos, tem sido jogado para o mal: tem sido instrumentalizado por pequenos grupos com grandes poderes (pequenos grupos, grandes negócios) e tem reforçado direções conservadoras, afrontando valores relevantes da antidiscriminação e contrariando a diretriz de importância de evolução do sistema jurídico.
Esse jogo, em sua tangente, tem mobilizado especialistas, docentes, cientistas, ativistas, que sentem que seus esforços e energias não têm atingido, efetivamente, os seus objetivos para a concretização dos Direitos Humanos.
Esse tabuleiro mantém as forças político-partidárias e enfraquece as forças populares. Mas a compreensão disso é somente para quem consegue enxergar que essas forças são distintas e, muitas vezes, antagônicas. E essa restrição de quem entende isso e de quem não entende faz parte do jogo, visto que esse tabuleiro prevê exatamente a ausência de conhecimento sobre isso.
Notas de rodapé
1 – NAZARETH, Eduardo Fernandes. “Borgen”: a série que é uma aula de política. Revista Café com Sociologia, v.10, n.1|pp. 01-17| jan./jul., 2021.
2 – Nessa época, a linguagem jurídica ainda não compreendia a concepção de sexo e de gênero e de suas diferenças. Essa diferença passou a ser juridicamente demarcada pelo Decreto n. 8727, de 2016, e pela Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4.275.
3 – O artigo 102, § 2º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece que as decisões definitivas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade têm eficácia contra todos e efeito vinculante para os demais órgãos do Poder Judiciário e para a administração pública direta. Senado Federal.