– Mas você é feliz assim?
– Assim como?
– Nesta vida, se relacionando com mulheres…
– Ah, nisso eu sou bem resolvida.
– Mas você acha que seus pais são felizes com você sendo assim?

Aos vinte anos, Aline* buscou ajuda psicológica para resolver questões pessoais, mas saiu do consultório com novos problemas. A psicóloga desviou o objeto da consulta e passou a atribuir os problemas da paciente à sua identidade sexual. “Eu era nova e ainda por cima estava com problemas de verdade, por isso estava ali. Então comecei a chorar. Ela disse que eu não me preocupasse, que me traria um livro de um cara que foi homossexual durante uns trinta anos da vida dele, mas depois conheceu a igreja, se converteu, casou com uma mulher e se tornou feliz. Disse que conhecia vários exemplos de pessoas que conseguiram vencer a homossexualidade e hoje levam vidas normais”, conta.

A infeliz experiência de Aline aconteceu apenas alguns anos depois que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou a resolução 001/1999, que orienta profissionais da área a não proporem tratamentos para a homossexualidade. Antes disso, no começo da década de 90, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia desmistificado a patologização da homossexualidade. Exatamente no dia 17 de de maio de 1990, a OMS retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças.

27 anos depois, a data é considerada dia mundial de luta pelo fim das LGBTfobias, e a cura gay segue como estandarte da pauta conservadora. Sob o contexto que mescla confunde política e religião, setores tradicionais do Congresso Nacional identificaram nova oportunidade para retomar a tramitação da proposta que considera patológicos os “desvios de orientação sexual”. Em fevereiro, o deputado-pastor Ezequiel Teixeira (PTN/RJ) pediu o desarquivamento do Projeto de Decreto Legislativo 530/16, que pretende sustar a resolução 001/1999 do Conselho CFP. Se aprovada, a matéria, abre possibilidade para que os profissionais apliquem terapias e tratamentos a pacientes diagnosticados/as com “transtorno psicológico da orientação sexual egodistônica, transtorno da maturação sexual, transtorno do relacionamento sexual e transtorno do desenvolvimento sexual”.

Violência e controle dos corpos

Audiência pública abriu a programação do dia contra a LGBTfobia em Florianópolis | Foto: Ana Claudia Araujo

Projetos semelhantes já tramitaram na casa e foram arquivados, como o PDC nº 234/2011 e o PDC nº 1.457/2014. A conselheira do CFP Rosane Lorena Granzotto defendeu a diretriz do CRP. “A resolução não impõe modo de atendimento, apenas regulamenta procedimentos éticos e científicos e impede de tratar a homossexualidade como doença, desvio ou de patologia”, disse a psicóloga durante audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Santa Catarina.

Para a presidenta do Conselho Municipal dos Direitos LGBT da capital, Guilhermina Cunha Ayres, tornar a identidade sexual patológica é um recurso da ala conservadora e majoritária do Congresso Nacional para descredibilizar e impedir o avanço das conquistas da população LGBT. “A Constituição é feita por homens heterossexuais brancos para homens heterossexuais brancos. Quando a gente conquista território e visibilidade, a gente tira espaço deles. É por isso que eles querem que a gente seja considerada doente e volte pro gueto”, afirmou.

A professora e pesquisadora Marília dos Santos Amaral, do Núcleo Margens, vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), vê em iniciativas como a da cura gay expressões de relações de poder historicamente reforçadas na sociedade. “As relações de poder têm como objetivo disciplinar os corpos, normatizar o prazer e ordenar as vidas. É um compromisso técnico e também moral que acontece desde o século 19. Naquela época, por práticas jurídica e religiosa e hoje no casamento entre Estado e religião”, afirmou a professora. Estes discursos, aponta a professora, refletem na violência vivida pela população LGBT. “Os efeitos desses discursos são os mesmos que incidem sobre os corpos cotidianamente nas violências físicas sofridas: ausência ou recusa da notificação dos casos de homofobia, violências psicológicas denunciadas nas ONGs, ameaças, privação de liberdade pela própria família, situações de estupro corretivo, expulsão de casa, evasão escolar, negação de direitos básicos como acesso à saúde, suicídios e outras situações “, exemplificou.

A audiência pública abriu a programação do Dia de Luta pelo fim das LGBTfobias nesta quarta-feira (17). Coordenada pelo deputado Dirceu Dresch, presidente da comissão de Direitos Humanos da casa legislativa, a atividade contou ainda com a participação do psicólogo Ematuir Teles de Sousa, presidente da Comissão de Direitos Humanos do CRP-12. À noite, uma mesa-redonda retoma o assunto na  UFSC.

*A identidade foi preservada a pedido da fonte.

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Palavras-chave:
  • Ana Claudia Araujo

    Jornalista (UPF/RS), especialista em Políticas Públicas (Udesc/SC), mãe de ninja.

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