Tem gente que não fala mas a cara entrega né? Eu posso ver no rosto das pessoas essa afirmação. Lá vem a chata, terrorista, nos apavorar com dados e histórias sobre abuso. Há mais de 10 anos eu falo nas redes sobre violência sexual, e aguente firme, não pare de ler por isso. Talvez esse assunto não te interesse, ou só de vez em quando. Você sabe que acontece, é ruim, gostaria que fosse diferente e ponto. Talvez te angustie por ter algo pessoal ou familiar com o tema. 

A questão é que, na média, 6 em cada 10 brasileiras podem ser estupradas durante a vida, e a maioria antes dos 13 anos – eu percebi que esse dado do Anuário de Segurança Pública era além de feminino, infantil.

É mais da metade da população feminina (e não estou incluindo assédio e importunação sexual). Quando uma pessoa sofre esse tipo de violência muita gente é afetada: seus pais, suas companhias românticas, se a vítima sobreviver. Além do fato dela poder ter transtornos, vícios, distúrbios de humor e alimentares, insônia, pesadelos, raiva, depressão, ideações suicidas, etc. A lista é longa. 

Não existe nenhuma doença que atinja tantas pessoas – já fiz essa pesquisa.  Nem as do coração, que estão no topo nacional, chegam no chinelo da violência sexual, que é fruto, no nosso caso, da cultura. Lá no início da minha jornada como pesquisadora e ativista, depois de ter passado por episódios neste sentido, ninguém queria me ouvir e entendi o motivo: conhecer o tamanho dessa violência envolve admitir que ela está muito mais perto de nós de nossas famílias do que eu gostaríamos; que existem pessoas que destroem a vida de outras e que fazem isso com crianças

Percebi que quando as pessoas passam a saber desses fatos, uma angústia se instala, junto com a sensação de que algo precisa ser feito. Mas tudo isso é doloroso, gera ansiedade e então fica mais fácil desconfiar das vítimas e dizer que meninas de 12 anos sabem bem o que fazem ou espalhar notícias falsas sobre violência, além de realizar comparações esdrúxulas com outros crimes.

Fui observando  que a violência sexual é mais uma faceta dos abusos que se modernizam muito rápido com a ajuda de indústrias inteiras. Quanto mais a gente se odeia e quer corrigir nossa aparência, por exemplo, mais vulneráveis ficamos a todo tipo de violência inclusive a sexual.

Ao nos submetermos sorrindo às agulhadas nos nossos corpos, ao acreditarmos que merecemos e até desejarmos cirurgias estéticas, mais perto a violência chega. Eu passo a entender que sentir dor (seja em um procedimento ou numa relação) é normal, faz parte e é necessário para que eu seja aceita, naturalizando a dor. 

E por que ignoramos os fatos principalmente com crianças? Doutrinar as crianças e adolescentes a aceitar e desejar tudo é uma ‘estratégia de guerra’ das empresas de consumo e da criminalidade. E isso começa muito cedo.

No último Dia das Crianças, vimos uma enxurrada de crianças, principalmente nos Estados Unidos, mas também no Brasil, pedir aos pais presentes relacionados a skincare, por exemplo. E isso por influência de ‘trends’ nas redes sociais, que viralizam produtos de forma rápida, e passam a deturpar a maneira como esse público se vê, objetificando a beleza, e desencadeando problemas relacionados a saúde mental, mas também cyberbulling, racismo, gordofobia, e outros.

A cada vídeo que eu posto de crianças que estão sendo expostas e invadidas na internet faz parecer que essa situação de exploração, adultização e sexualização infantil não tem jeito e que só está piorando. Mas isso é uma alternativa que os criminosos fazem parecer ser a única.

Chegou a hora de pegar essa realidade dura e cruel que temos e, a partir dela, sonhar um futuro mais ético, seguro e amoroso para todos. A gente não chegou dessa forma nesse mundo e não precisa viver desse jeito.

Eu tenho certeza que você vai encontrar essa maneira de viver de forma ética e saudável no presencial e no digital. Se não souber como, se junte a quem já está por aí.

É urgente. Conhecimento protege e conversar é agir. Temos a responsabilidade de construir um ambiente digital mais ético e humano, em que a ingenuidade infantil não seja explorada. Parados somos cúmplices. Mas se dermos o primeiro passo, podemos construir um futuro onde a segurança, o respeito e o amor sejam as bases para o convívio digital e presencial. 

Prepare-se para ouvir cada vez mais porque falaremos mais e mais sobre violência até que possamos compreender a dimensão que ela tem em nossas vidas.

Como ativista, acabei de lançar o livro “Respire Fundo” para crianças e adolescentes, mas que também pode ser lido por pais e educadores, além de ser utilizado em aulas e diálogos em casa. A obra conta histórias de ficção – mas que em algum momento tive contato, preservando o nome das vítimas – e explica, de maneira lúdica, os perigos do digital e do mundo real, afinal, não há separação. 

E como mudar o jogo?

Primeiro, precisamos aprender a escutar: sem mudar de assunto, sem desconfiar, investigar ou tentar deixar a pessoa mais feliz. Aprender a simples e poderosamente só ouvir. Sem começar a criar respostas na nossa cabeça. Não existe empatia sem escuta, e escutar não é concordar.  

Segundo, estudar e colocar as coisas em contexto. Nossa experiência pessoal não pode ser a base para analisarmos violência, para isso precisamos de dados para além do nosso mundo particular.

Terceiro: conversar. Esse assunto tem que ser comum a todos nós desde a infância. Escute, estude e converse, ou nós nunca conseguiremos mudar essa realidade absurda. 

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  • Sheylli Caleffi

    Educadora há mais de 20 anos, palestrante, consultora e treinadora de oratória. Ela treina quem precisa falar em público...

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