Assistimos a um crescente número de casos reportados de violência sexual contra mulheres e crianças em meu país, a Guiné, e muitas pessoas acreditam que é a incidência que aumentou. Mas, infelizmente, este tipo de violência já existia em larga escala e de formas sempre cruéis. O que acontece agora é que, graças ao trabalho de algumas organizações não-governamentais e ao maior envolvimento da mídia, as informações sobre onde buscar ajuda e registrar uma queixa estão mais difundidas entre a população. Ainda assim, há muita omissão e as estatísticas não são confiáveis.

Podemos afirmar que a violência de gênero é um mal endêmico associado a vários fatores, dentre eles no nosso caso, os costumes sociais e a falta de legislação eficiente, ambos se convertendo em barreiras culturais e reforçando a impunidade. Perante a constituição, homens e mulheres guineenses têm os mesmos direitos, mas pela tradição e costumes, o papel da mulher é subordinado ao homem e é esta norma social que acaba prevalecendo em perante a lei. Dessa forma, por mais que a emancipação feminina esteja avançando na Guiné, ainda temos um longo caminho pela frente, pois mudar hábitos culturais enraizados é um desafio eterno.

Quando associo a cultura ao contexto de violência contra a mulher, incluindo a sexual, me refiro ao fato de que esta prática é também favorecida pelas próprias famílias, em especial na zona rural. Os casamentos arranjados fazem parte dos costumes e, em muitos casos, ocorrem entre homens de mais idade e meninas menores de 18 anos.  Há dados de 2006, por exemplo, apontando que 64,5% das meninas se casam antes da maioridade.

Desconhecendo seus direitos e sem nenhuma educação sexual, elas tendem a aceitar o casamento como parte do seu papel e assumem o dever de obedecer ao marido, sem questionamento. Grande parte delas acaba violada e/ou abusada sexualmente, sem se darem conta da agressão a que estão se sujeitando. Elas acreditam no que lhes foi ensinado, principalmente pela religião: é direito do homem, do marido.

As narrativas de abuso revelam, na sua maioria, o medo que as mulheres têm de perderem completamente tudo e ficarem à deriva na sociedade, estigmatizadas pela violência sofrida e desamparadas por suas famílias. Até porque, via de regra, a violência é perpetrada pelo próprio marido, tio, primo ou até mesmo por um vizinho próximo.

Como denunciar aquele que provem o alimento, a moradia e é responsável pelos filhos? Em quem acreditarão? Na palavra do homem, certamente. E, frequentemente, quando o abuso ‘”apenas” moral e psicológico, é difícil comprovar a violência, pois a mulher é bastante desacreditada em nossa sociedade.

Também constatamos que a violência física costuma ser o ápice da sequência de assédio moral/psicológico ocorrido ao longo de um período, muitas vezes longo. E o contexto pode ser ainda pior no caso de crianças.

Temos poucos orfanatos na Guiné e a prática mais comum é encaminhar as crianças que perdem os pais para a convivência com a família estendida ou pessoas próximas. Inclusive, em algumas situações, elas são “adotadas” por outras famílias distantes, sendo levadas para outra cidade, onde ninguém as conhece.

O que deveria ser um lar para essas crianças acaba se tornando um lugar de exploração em que elas são obrigadas a prestar serviços domésticos. É dentro dessa realidade que muitas crianças crescem, recebendo maus-tratos e sendo sexualmente abusadas, como parte rotineira da sua vida. Elas não aprendem diferente e, em geral, não reconhecem outra forma de tratamento. Guardam para si o sofrimento, sentem-se responsáveis pelo destino a que foram submetidas e nunca ousam denunciar a violência que lhes é imposta.

Em um único serviço de saúde da capital, Conakry, já chegamos a registrar 8 casos de violência sexual por semana, tendo a maioria ocorrido com meninas menores que 12 anos. Os depoimentos são acompanhados de muita dor física e emocional, e de desesperança. Por isso, o atendimento a essas pessoas busca ser integral e integrado, desde a consulta e tratamento médico-clínico à assistência psicológica e social.

Mas isto só ocorre em serviços tutelados por alguma organização não-governamental, que o fazem de maneira gratuita e com profissionais especificamente capacitados para essa tarefa. As demais estruturas sanitárias do Estado cobram pelo atendimento e não oferecem nenhuma medida de acompanhamento psicossocial, e também não dispõem de profissionais com a formação e preparo necessários para lidar com esta questão.

A palavra da mulher vale pouco. A palavra de uma menina-mulher menos ainda. Mas quando são corroboradas por um homem, acabam ganhando alguma atenção. Em um dos casos atendidos, a mulher havia sido violentada por um vizinho durante a ausência do marido, que viajava a trabalho. Não teve coragem nem de contar ao marido, mas o mesmo acabou descobrindo e, para a sua surpresa, incentivou e apoiou a esposa a registrar a ocorrência na delegacia, o que levou o vizinho à prisão.

Em outro caso, a criança havia sido abusada pelo professor recorrentemente, mas a mãe só conseguiu descobrir o que realmente estava acontecendo no dia em que, para agilizar os preparativos e levar a filha na escola, deu banho na pequena. A criança reclamou de dor porque sua vagina ardia no contato com a água e o sabão, levando a mãe a constatar os ferimentos decorrentes da agressão que sofrera. Depois de muita conversa é que tudo foi esclarecido e o professor denunciado pelos pais. Dessa vez, entretanto, sem sucesso, pois o agressor foi dado como fugitivo.

Entendo que a violência contra as mulheres, independente de sua idade, tem muitas nuances. São várias as gradações do sofrimento e incontáveis as situações em que o abuso se disfarça de norma social e cultural. Por isto, defendo a ideia de que a violência de gênero deveria ser também considerada uma pandemia. Certamente, em países cuja cultura misógina é amplamente valorizada, a realidade é ainda mais caótica.

Mas ela ocorre mesmo nos países considerados desenvolvidos, em diferentes continentes, de maneira igualmente drástica porque destrói a vida de milhares de pessoas. Ainda assim, segue sendo negligenciada pelas estruturas governamentais e legais. Sua banalização tem sido, talvez, seu maior reforço, autorizando, legitimando sua naturalização, sob todas as formas. O caminho é longo e a tarefa árdua, por isso precisamos denunciar até mesmo o óbvio!

* Versão em português elaborada por Andrea Silveira, autora da biografia da Maimouna Diallo sob o título: “Guinée Fagni: a trajetória de uma mulher africana – a história de todas nós”, que pode ser baixado gratuitamente em PDF e/ou E-Pub.

**Maimouna Diallo é nascida na Guiné, África, vem realizando um intenso trabalho em favor das pessoas vivendo com o HIV/AIDS, como coordenadora da equipe comunitária do projeto do Médicos Sem Fronteiras, em Conakry. Já esteve à frente da Fundação Esperança Guiné (Fondation Espoir Guinée) e da Rede Guineana das Associações de Pessoas Vivendo com o HIV (Réseau Guinéen des Associations des Personnes Vivant avec le VIH) e atualmente é considerada uma das referências em termos de luta para a formulação de políticas públicas da área do controle do HIV em seu

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