Tantas Vozes
Acorda, vem ver a lua
que dorme na noite escura.
Dessa forma começa a Melodia Sentimental, canção de H. Villa-Lobos. Recentemente eu cantei essa canção como um presente a uma atriz, no meio de um experimento de aula. Desde que comecei a cantar, há mais ou menos vinte anos, a questão que sempre me inquietou foi: qual o sentido de cantar uma canção? Não me importava tanto se era bonita ou feia, conhecida ou não, aguda ou grave, palmeirense ou vascaína. O que me inquietou desde sempre foi qual o momento em que uma canção ganha significado para além de si mesma?
Neste ano de 2022 eu recebi um presente da companhia de teatro As Graças, da cidade de São Paulo e de minha parceira de pesquisas em voz Juliana Amaral, que foi poder fazer parte do projeto Tantas Vozes. Um percurso intenso realizado por mais ou menos vinte mulheres de diversas partes da cidade de São Paulo, com sua complexa geografia do caos e da exclusão. Eu era, como muitas vezes me cabe, Barbara, literalmente, a estrangeira. Única mulher do sul, vinda da Ilha de Desterro, com uma tarefa muito especial, que me dá muito prazer e alegria: dar aulas de vocalidade para a cena.
Agora imagine o percurso: um grupo de experientes atrizes que completou 25 anos de existência e que possuem um ônibus que vira um teatro (personagens fellinianamente fabulosas) percorreram diversos territórios da imensa cidade de São Paulo, privilegiando espaços periféricos que tivessem uma importante interface com as suas comunidades de origem.
Paralelamente às apresentações de repertório teatral, as atrizes do grupo convidaram as mulheres de cada comunidade a fazerem um laboratório de estudo de voz, com Juliana Amaral. Sete dessas mulheres, uma de cada território, foram convidadas a participar de duas residências artísticas conduzidas por mim, Maria Thaís (xamânica mulher de teatro quebradora dos potes) e Juliana, que culminaria em um compartilhamento de processo cênico a ser reapresentado nos próprios territórios de onde essas mulheres vieram.
Ou seja, no momento em que cantei aquela canção que mencionei no início, não era somente minha voz que estava soando: ela estava soando com esse monte de mulheres atrizes, produtoras culturais, musicistas, artistas da cultura popular, amadoras ou profissionais das artes; sua existência e seu trabalho imprimiam sentido e contexto para que uma canção pudesse riscar o ar da sala de aula naquela altura do campeonato.
Sua origem, suas histórias de vida, suas lutas políticas, os filhos deixados em casa, seus corpos estavam ali, disponíveis para viver aquele momento fugidio da canção. E elas cantaram para mim. E aí cantamos juntas.
E depois fomos comer, pois como mulheres sabemos que a tarefa de alimentar e cuidar de si a da outra são parte igual ao de ter “sucesso” na vida. Sucesso, para muitas dali, era estarem ainda vivas e pulsando.
Esta densidade de trabalho e de compartilhamento se deu muito pela conformação do grupo, integrado por mulheres de diversas idades e de diferentes classes sociais, pretas e brancas, do centro e da periferia. Mulheres que me sinto agradecida de conhecer e que muito me honraram por mergulharem nas práticas que propus, presenteando a sala de ensaio com vozes prismáticas, uma refletindo a particularidade da outra, em complexa polifonia.
Desde meus vinte anos de idade estive envolvida com projetos de coletividade de mulheres nas artes. Sou cria do Magdalena Project e do projeto Vértice Brasil, ambos contextos nos quais eu pude vivenciar uma rede imensa de mulheres artistas engajadas em práticas e em reflexões que colocam a existência em coletividade e a troca como pontos fundamentais a serem estimulados nas artes da cena.
Eu estive em diversos países e conheci mulheres dos cinco continentes, compreendendo desde cedo que sou uma mulher artista que mora em uma minúscula ilha ao sul do hemisfério sul. O sul do sul do mundo, com minha branquitude, minha herança colonial violenta e minha comunidade conservadora que tem capacidade de parir mulheres como a juíza que tem protagonizado as manchetes nacionais no caso das violações de direito de uma menina vítima de estupro.
O que mais me aqueceu a alma neste processo foi poder vivenciar um coletivo de mulheres organizado desta forma particular como o projeto d’ As Graças promoveu. Eu nunca teria a oportunidade de conhecer esta rede específica de mulheres se não fosse essa ocasião. Também pude contribuir com meus conhecimentos advindos da universidade pública brasileira, eu que em meu privilégio pude estudar até o doutorado e me preparar para ser professora ganhando bolsas de estudos, sendo estimulada a me especializar e virar pesquisadora nesta área. Quando uma prática artística é pensada contextualmente, visando a ampliação e troca de conhecimentos na coletividade, é esse o resultado que aparece: tantas vozes que podem existir em sua individualidade, mas também somar em cooperação. Ressonância entre os corpos ao invés de fone de ouvido.
Essas formas intensas de contato que a arte pode proporcionar têm sido o meu direcionamento desde que mergulhamos na pandemia.
O meio artístico e cultural é uma área devastada com o desgoverno dos últimos seis anos, por isso projetos como esse, contemplado pela Lei do Fomento, edição de 2021 na cidade de São Paulo, possuem a importância de criar respiros e processos de trocas em meio a tragédia que tem sido fazer e viver de cultura em qualquer cidade do país hoje.
Por isso, como professora, gosto de imaginar que minha tarefa ao pensar práticas pedagógicas da voz é uma forma de recuperar o sentido de cantar juntos e juntas, de poder vocalizar em alto e bom som. Ter tido a oportunidade de somar a essas tantas vozes d’As Graças foi uma experiência valiosa. Foi um alento ao coração dolorido com os rumos de um país em um ano tão sombrio.
Artistas e coletivos:
Dani D’eon – Cia As Graças
Dêssa Souza – Bando Trapos
Eliana Bolanho – Cia As Graças
Generosa Lima – Ocupação 9 de Julho
Martinha Soares – Clarianas
Mônica Rodrigues – Grupo Teatral Negro Sim
Monica Soares – Rosas Periféricas
Rosângela Macedo – Quilombo Sambaqui
Vera Abbud – Cia As Graças
Condução da Pesquisa Vocal: Barbara Biscaro e Juliana Amaral
Orientação de estudo cênico: Maria Thais
Produção: As Graças
Administração: Eneida de Souza
Assessoria de imprensa: Canal Aberto
Mídias sociais: Larissa Janotti
Realização: As Graças
Para saber mais: @asgracas no Instagram.