Sobre O corpo interminável: mulheres, ditadura e uma herança explosiva
Acabo de saber que o romance O corpo interminável, de Cláudia Lage, ganhou o grande Prêmio São Paulo de Literatura. E me dou conta de que tenho me visto escrevendo e falando sobre esse livro há exatamente 1 ano. Uma obra que me atravessou entre insônias necessárias, alumbramentos, faíscas de luz. Longo caso de amor.
Não é sem motivo, essa longa convivência com a obra em questão. E ela nem se deu tanto por fidelidade a um esforço de deciframento ou pelo impulso teimoso de montar um quebra-cabeças refratário ao fechamento, como de fato é esse romance. Não: tem sido muito mais pelo desejo aceso de mergulhar de novo ali, sentir mais de perto a vertigem que sua narrativa foi capaz de gerar, experimentar outra vez seu violento golpe de ar.
E digo isto num contexto em que o romance em questão parece ter se articulado a uma rede crescente de narrativas escritas por mulheres que, não por acaso, retomam e transfiguram, nestes exatos tempos, a memória ainda tão mal elaborada dos anos de ditadura que vivemos décadas atrás. Afinal, vieram à tona quase que simultaneamente um conjunto de romances que tocam nessa ferida aberta e mal ocultada a partir de ângulos muito novos e mesmo inusitados – penso por exemplo nas protagonistas extraordinárias que emergiram em Sob os pés, meu corpo inteiro, de Márcia Tiburi, nos romances da imperdível trilogia infernal de Micheline Verunsky ou ainda na perspectiva tão singular e tocante assumida em O indizível sentido do amor, de Rosângela Vieira da Rocha. Há algo vigoroso sendo tecido aí, e talvez tenha um caráter mais coletivo do que costumam supor nossas eventuais solidões.
A respeito dessa novidade que busco flagrar, há um tipo de equilíbrio nada óbvio e muito ousado no romance de Cláudia Lage que me chama a atenção de imediato. Por um lado, há nele uma consciência nítida e mesmo um compromisso ético no que diz respeito ao que pode fazer um escritor na sociedade que buscamos construir, no sentido já mais estabelecido por nossa tradição ligada ao que Candido chamou de uma “literatura empenhada”.
Afinal, o livro se propõe a trazer à tona de uma memória coletiva a experiência longamente abafada das mulheres que foram presas políticas sob a ditadura no Brasil, assim como os desdobramentos gerados por suas dores e conquistas. E fazer isto, no momento político em que vivemos, com certeza não é uma escolha casual ou leve: temos visto de perto os danos gerados por tanta história apagada, traída e mal contada.
Por outro lado, também está lá, em todas as páginas, a presença permanente de algo mais que ultrapassa brilhantemente o mero cumprimento de qualquer missão de “resgate histórico” ou a qualquer planejamento de caráter “pedagógico”. Uma espécie de salto no escuro ou um clarão. Mais ou menos como descreveu certa vez Amós Oz, ao tentar explicar à sua editora como reconhecia se o que havia escrito estava ficando bom: era preciso que seus personagens não o obedecessem demais, que o surpreendessem e até o incomodassem como um feto dando chutes na barriga de quem o carrega. Sem aquilo, nada indicaria que nos seus livros de fato havia vida.
Pois é dessa radical aventura de espírito e também de uma refinada estrutura narrativa que O corpo interminável é feito, e é sobre esse fio de navalha que ele se desenvolve. Se por um lado estabelece com clareza um casal central empenhado em descobrir e entender o passado que nos formou, por outro lado expõe o que há nesse esforço que está fadado ao fracasso, ao vácuo incortornável, à falha, ao equívoco. Se mostra os pontos de vista a princípio antagônicos de onde eles partem, também flagra a alegria improvável dos momentos quase mágicos em que ambos se tocam com curiosidade e algum alívio. Se por um lado incorpora algo de uma pesquisa documental, por outro tece sua narrativa com poderosos gestos de imaginação.
Se nos lembra dos feitos mais claramente heróicos de quem arriscava a pele para defender um sonho democrático, também expõe todo o terreno pantanoso mais miúdo no qual se podia enlouquecer no isolamento dos aparelhos ou se cair num anestesiamento acomodado de discretas clausuras domésticas. Ou ainda, como bem disse o rapaz que buscava resgatar a memória de sua mãe guerrilheira, na esperança de assim não ser devorado por esse apagamento: “a verossimilhança só existe no mundo irreal (…) Aqui não, as ações se atropelam, os movimentos se cruzam, os desejos colidem, se potencializam, se anulam, sem harmonia, sem lógica, sem ordem, sem nada, tudo coexiste e se esforça para existir”.
Não por acaso, a estrutura do romance é ao mesmo tempo precisa e desconcertante: não há terreno seguro de onde se parte ou se pode chegar. Mas há, por um lado, um rapaz muito solitário tentando escrever sobre o que lhe foi ocultado por toda uma vida, se valendo de marcas quase apagadas, pedaços de fotos, os restos de vida que ele próprio herda e encarna. E há, do outro lado, uma moça que busca caminhar no sentido inverso do que lhe seria cômodo, e assim segue a intuição fatal de que, sob a aparente placidez familiar, havia um compromisso inconfessável de fechar os olhos para os crimes de Estado que se davam bem ao lado da própria casa.
Ao longo da busca que vai reunindo os dois, há cenas de um passado não tão distante que vão se materializando e se avolumando ao longo da narrativa, multiplicando personagens que podem ser a mãe perdida e seu companheiro, podem ser as amigas dela, podem ser seus torturadores e assassinos, podem ser a origem de uma vida e também o seu fim. Ou não. Porque chega um ponto em que importa menos a identidade exata de cada um e mais essa rede formada por assombrações cada vez mais presentes, reveladoras e à flor da nossa pele coletiva.
Em todo o tecido narrativo assim formado, há ainda um deslizar constante entre os polos que poderiam parecer de todo apartados. E um minucioso e incessante embate entre pulsões de morte e de vida. Há mulheres que se acolhem e se abrigam mutuamente, apesar de todos os hematomas e cortes, como há leite materno que sobe ao peito quando é preciso. Há meninas quietas capazes de ver mais do que foram criadas para ver, assim como há carinhos e desejos ainda mais definitivos do que as violações mais brutais. Há fotos rasgadas que deixam marcas na madeira onde estavam coladas, assim como há barrigas estranhamente esvaziadas e flácidas sem qualquer certeza do que ganharam ou perderam. Pudera: não se trata ali de flagrar um momento histórico em que se dava uma disputa política trivial, mas um ponto nevrálgico em que o ódio mais contingencial aos “comunistas” da vez convergia com o rancor e o medo mais profundos em relação ao corpo crescentemente transgressor das mulheres.
E quando falo em “corpo”, aqui, me refiro ao que há nele de biológico mas também de político, à sua apavorante fragilidade e também à sua força imprevista. É sobre ele que se concentram, no romance, tantas formas visíveis de tortura e mutilação, e é certamente também dele que falamos quando buscamos aqueles ossos que ainda permanecem insepultos assombrando toda a sociedade brasileira. É ele que permanece escondido ou falsamente retratado em poses traiçoeiras. E é também o corpo das mulheres que é reiteradamente recebido com uma raiva redobrada e os velhos gritos ainda hoje recorrentes de “puta”, “vagabunda” ou “porca nojenta”, com isso atestando os lugares em que uma luta mais ampla por liberdade (assim como tudo aquilo que a ameaça) atravessa incessantemente os nossos poros.
Por outro lado, é também nesses corpos que se resguardam, por vezes das formas mais improváveis e avessas ao cálculo, as sementes da vida que continuam crescendo como que à revelia dos mais tristes fatos. É ainda e sempre, em cada célula dele, que vive e se transmite (inclusive misteriosamente) alguma herança mais potente e complexa do que podiam prever todas as nossas derrotas, assim como todos os nossos mais caros e acalentados planos.