Que morram os artistas
No ano de 1985 o diretor de teatro polonês Tadeusz Kantor estreou um trabalho intitulado “Let the Artists Die”. O espetáculo, conta a anedota, era uma provocação e reflexão acerca de um episódio que chamou a atenção do artista: com o advento do fechamento de um espaço de arte em um bairro, na França, um morador do local durante uma entrevista, proferiu sua opinião sobre o ocorrido – “que morram xs artistas”. Não quero entrar aqui em uma discussão acerca das inúmeras “mortes” da arte ao longo dos últimos séculos, as vanguardas, as rupturas ou as disputas estético-filosóficas das diferentes correntes artísticas que aprendemos. Não quero entrar aqui em uma discussão sobre uma produção artística hermética e descomprometida com o público na contemporaneidade, que criou abismos entre uma certa produção artística e a população. Minha atenção é capturada por essa frase, que encerra em si não somente um ódio gratuito à arte ou à figura dx artista, mas também um assustador espelho no qual podemos vislumbrar nossas próprias faces neste início de 2017 no Brasil.
Eu não conheço diversos mundos. Por exemplo, não entendo nada de cavalos ou de esportes aquáticos. Nem por isso saio por aí dizendo “que morram xs domadorxs de cavalos” ou “que os times de pólo aquático sejam extintos”. Confrontar-me com o desaparecimento de certas coisas que aparentemente não afetam a minha vida cotidiana não me dá o direito de desejar a morte delas. É mais ou menos a mesma lógica do clima: se cada um de nós, seres humanos, pudéssemos arrumar o termostato do clima (e deixar mais frio ou calor de acordo com minhas férias ou meu horário de trabalho), provavelmente morreríamos de fome em um mês – pois mais nada nasceria ou cresceria na terra. Ou seja, muito provavelmente, a minha opinião ou desejo pessoal sobre uma gama extensíssima de assuntos não vale absolutamente nada além de um achismo deliberado. Muito mais provavelmente ainda, se só existissem aquelas coisas que compõem meu cotidiano direto, e eu “não me importasse” que todas as outras fossem eliminadas, minha vida seria inviável em pouquíssimo tempo.
Artistas afetam a vida de muitas pessoas. Diariamente. A música que você ouve no rádio não se criou, gravou-se e espalhou-se espontaneamente. Aliás, a própria rádio não existe por criação espontânea. Inclusive a música mais simples que você ouve faz parte de um legado de mais ou menos 600 anos de sistematização de um conhecimento sobre notas musicais, acordes, texturas e instrumentos que foi passada de pessoa a pessoa ao longo dos séculos. O contato diário com a arte, mesmo aquela mais comercial e voltada ao consumo, revela que existem pessoas trabalhando o tempo todo pela manutenção de “coisas” como o teatro, a música, o cinema, a dança ou as artes visuais. Por muito tempo lutamos para sermos reconhecidxs como trabalhadorxs da cultura, profissionais que efetivamente dominam um conhecimento específico e desempenham uma função social estruturante ligada a aspectos como memória, cultura, imaginação, crítica, senso estético e até mesmo, em alguns casos, lazer e entretenimento. Mas artistas são figuras muito perigosas, porque provocam o pensamento e a crítica sobre si mesmx e sobre o mundo. Artistas duvidam, questionam, subvertem, torcem a ordem. Artistas se sentem livres demais. A arte incomoda.
Incomoda a todxs. Direita, esquerda, centro, fascista, comunista, religioso, ateu, anarquista, bicho-grilo…qualquer coisa que tente se estabelecer como lógica única e excludente tem na arte e na educação inimigos mortais. Vejamos exemplos contundentes. A Revolução Cultural chinesa: a partir de 1966 o líder comunista Mao Tse-Tung instaura uma campanha ideológica entre as massas de camponeses, estudantes, trabalhadores e militares para instilar ódio e pregar a morte de potenciais opositores do regime: muitxs dessxs eram artistas e intelectuais que poderiam representar perigo à ideologia dominante. Uma campanha bem arquitetada convenceu a população chinesa de que o intelectualismo e a arte eram coisas a serem desprezadas e eliminadas da vida social, classificadas de inúteis, opressoras, burguesas, pedantes. Ódio à inteligência, ao debate, à diversidade de ideias e à liberdade de expressão. O governo nem precisou agir muito: depois de uma intensa campanha ideológica (com meios de comunicação, etc.) a própria população matou seus artistas, intelectuais e professorxs, tanto delatando e denunciando, quanto efetivamente torturando e linchando com a alegria reconfortante de servir ao bem comum. Porém, podemos diversificar os estilos e convicções político-partidárias. Ditadura Militar no Brasil, 1964. Ascensão Nazista na Alemanha, 1933. Muitos e muitos outros episódios. Incontáveis marcos históricos em que se criou uma campanha de desmoralização do pensamento crítico, da importância da arte, do valor da cultura para que apenas uma ideologia e visão de mundo pudesse existir.
Por isso me incomoda tanto que em apenas alguns meses de governo de Michel Temer, e apenas alguns dias de governos de direita em municípios de todo o país, a cultura, a pesquisa e produção de conhecimento sejam os primeiros alvos. Cortes em orçamentos já irrisórios, dissoluções de secretarias e fundações de pesquisa, fechamento de televisões públicas, rádios, institutos de pesquisa. Pela rua, nas conversas de bar, ouve-se: “em tempos de crise temos que cortar o supérfluo, todxs estão fazendo sacrifícios”. A arte, esse ramo supérfluo e desimportante, pode ser eliminada. Fechou a casa de cultura da sua cidade? Não tem importância, eu nunca ia lá mesmo. Seu filho ou filha não vai ter mais teatro ou música da escola? Agora ele finalmente vai aprender algo útil que vai torná-lo apto ao mercado de trabalho. O teatro da esquina não funciona por falta de funcionários? Ótimo, deviam ser uns vagadundxs que não faziam nada o dia inteiro.
Dessas constatações dois pontos de vista. O primeiro é uma auto-crítica: seres humanos preservam aquilo que conhecem e amam. Por isso para mim é fácil desprezar o trabalho do analista forense do Instituto Médico Legal, não conheço nem amo ninguém que faça isso, não vejo em meu cotidiano direto os “resultados” de seu trabalho. O segundo é uma constatação: 95% da população brasileira liga imediatamente a palavra artista com alguém que aparece na novela ou vira uma celebridade instantânea do reality show, ou então alguém já morto mencionado em um livro empoeirado – ou seja, uma parte bem pequena das pessoas conhece ou está em contato com xs artistas de sua própria cidade ou Estado.
Vale acrescentar que somos uma população que tem medo da arte, que se sente inferiorizada nos ditos “espaços culturais”. Que se sente ignorante, ridicularizada diante do conhecimento. Torna-se mais do que urgente entendermos as bases disso, questionarmos também qual a noção de conhecimento, arte e cultura foi vigente até o momento. Quando eu era criança, durante anos a fio fui ignorada e xingada na escola por ser CDF – e em casa, no alto dos meus onze anos de idade eu pensava intrigada: mas não é bom gostar de estudar? Porque me xingam tanto? Nunca soube a resposta. Talvez seja necessário ridicularizar para esconder falhas, para escamotear através da violência as próprias fragilidades. Porém, fizemos um salto longo demais: passamos do desprezo do outro para escamotear os próprios medos diretamente para uma apologia gratuita à burrice, à superficialidade e ao clichê.
Ah, um novo ano… boa época para parar e pensar. Nos diversos lados da moeda. No fio de Ariadne que perdemos entre nós e que dificulta o diálogo e a compreensão. Talvez presenciar a morte anunciada da arte e da cultura em nosso país – recheada de comentários clichês e preconceituosos vindos não só do ditador ou do grande político, mas dos próprios pais, avós, vizinhxs, amigxs – seja um susto necessário para rever as bases de nosso próprio trabalho. Porque a máquina de gerar ódio já foi acionada e, o pouco que podemos fazer é pensar nas práticas diárias e pessoais que podem gerar alguma diferença diante de tantos clichês, violências e indiferenças. Por enquanto, que morram xs artistas. Não conheço nenhumx mesmo.