Preta,
é preciso ter leveza para lidar com tuas asas
com teu encantamento
com tua esperteza.

Início esse diálogo com os versos do poema Alvo, da escritora Anita Canavarro, pois as narrativas de si dizem muito dessa escritora, doutora, cientista, feminista negra, mãe e hoje presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadorxs Negrxos. Dentro dessa multiplicidade de identificações, de uma presença que incomoda/convoca, pois sua existência afronta os lugares pré-determinados aos corpos de nossas mulheres.

Ao negritarmos as mais diversas experiências de mulheres Pretas, seja de uma poetisa, aquela artesã maravilhosa, a cabeleireira que aprendeu a cuidar de nossos cabelos, a trançadeira, brilhamos com o sucesso da outra e desinventamos o racismo/sexismo, presentes em nossa sociedade. E, com esse intuito, iniciarei uma série de diálogos, com mulheres que rompem com lugares pré-determinados, se reinventam e tem conseguido criar fissuras. Portanto, diante de um mundo que tem como missão a exclusão de nossos corpos, elas reescrevem a realidade, criando em nosso imaginário novas possibilidades de existência.

Anita, na área acadêmica e profissional, você é doutora em Ciências e uma consolidada professora universitária. Dois campos expressamente marcados pela presença de homens brancos. Desse modo, conte-nos um pouco sobre o seu percurso e desafios como mulher preta para permanecer nestes espaços.

Anita Canavarro – A Ciência não tem gênero ou cor, porém sua versão ensinada nas instituições escolares tem uma visão deformada que se remete ao sujeito universal: o homem branco, e trata a produção científica das mulheres a partir de lugares subalternos. Não se discute a produção de mulheres em sala de aula, muito menos as influências dessas produções para a sociedade. E quando o recorte é racial não se tem notícias em currículo oficial ou material didático de qualquer mulher negra brasileira, cuja contribuição seja celebrada no mundo acadêmico. Veja o caso de Virgínia Bicudo que tem sua obra negligenciada.

As mulheres costumam escolher profissões mais próximas de como foram educadas e, assim, mais próximas ao cuidado: professoras, enfermeiras, assistentes sociais ou psicólogas. Todavia, as profissões que tratam da manutenção e preservação da vida, não por acaso, são as menos valorizadas e, portanto, mal pagas refletindo o retrato da invisibilidade feminina no mercado de trabalho e ainda a expropriação da capacidade laboral feminina, principalmente, a negra.

Mas o que é o mercado de trabalho? É a forma como a população tem acesso à renda, lugar onde se controla o acesso à riqueza, é por isso também um mecanismo de garantia do privilégio branco, pois o sujeito melhor pago é o homem branco e isso não acontece por conta da qualificação destes sujeitos (Werneck, 2016). Ora, segundo o IBGE (2010) cerca de 53% da população brasileira é formada por mulheres em idade ativa, porém menos de 45% dos postos de trabalho são ocupados por elas. Ainda de acordo com o IBGE a proporção de mulheres que completaram a graduação é 25% superior à dos homens. Porém, somente 37% destas mulheres com graduação completa são pretas ou pardas. Esta situação também se reflete nas escolhas das carreiras em Ciências. Ser uma cientista é ato de contra hegemonia, é também dizer a outras de nós que venham, que podem. É enfrentar intermináveis julgamentos de produtividade para habitar entre “os” cientistas.

Em qual momento você passa a dialogar o ensino de química com a Educação das relações raciais. Como a docência se articula com suas pautas feministas?

Anita Canavarro – Eu desenvolvi meu mestrado e doutorado em Química Bioinorgânica Medicinal, uma área em ascensão dentro da produção de conhecimento científico. Trabalhei com modificações de metalo-proteínas em modelagem in silico, um objeto de estudo altamente tecnológico. Ao final desses processos de construção um fato me incomodava e muito: os meus estavam em subempregos e a escola não lhes era um lugar muito atrativo. Desde então meu lugar de construção de identidade tem sido a docência. São onze anos que estou na Universidade Federal de Goiás, onze anos trabalhando sob a perspectiva de uma episteme não branca ou europeia nos currículos de Química.
Com a proposta de descolonizar as Ciências por meio da implementação da lei 10.639/03 no ensino de Ciências/Química, em 2009 fundei junto com meu grupo de pesquisa o Coletivo Negro (a) CIATA do Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão – LPEQI – do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás (CIATA-LPEQI/UFG).

O CIATA advoga que uma das primeiras alternativas nessa direção deve ser a inserção, nos cursos de formação de professores de Química e nas disciplinas de Química oferecida aos outros cursos de graduação, de debates e discussões que privilegiem a relação entre a cultura e a educação. Para isso, investimos na descolonização dos currículos de Ciências por meio do deslocamento epistêmico. O Coletivo é uma parceira colaborativa entre a escola de educação básica (professores em formação continuada, estudantes), a Universidade (produção do conhecimento científico por professores em formação inicial, continuada e professores formadores) e a sociedade (movimento social feminista – o Grupo de Mulheres Negras Dandaras no Cerrado) como estratégia de formação inicial e continuada no âmbito da lei no. 10.639/03.

A Química é a Ciência da transformação da matéria e a civilização humana se organizou como tal a partir de processos de transformação. É preciso tirar da invisibilidade o passado em produção de Ciência e Tecnologia dos nossos ancestrais africanos e da diáspora, pois só assim a escola será um lugar mais atrativo para todas as crianças negras que lá estão. Não sou uma pesquisadora do feminismo em si, como pesquisadora tenho me interessado por estudos sobre a condição feminina, mas os feminismos negros são pautas de minha construção social. Portanto, articular a docência nessa perspectiva é a proposta do devir do ser em construção. Esse ser que atua sob a perspectiva do marcador de gênero. As ações de pesquisadora obedecem não só uma lógica do objeto construído (projetos que contemplem a pauta das mulheres negras), mas também a lógica da sororidade, o afeto entre nós, as mulheres que habitam esse universo tão hostil.

Hoje, você é presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros/as. Uma associação que nasce tendo como objetivo criar espaços para professores/as e acadêmicos negros/as, ao mesmo tempo em que possamos discutir a produção do conhecimento a partir de nossas próprias experiências, marcando uma contraposição a uma academia que tem como eixo a exclusão de nossos corpos e conhecimento. Sendo assim, como você avalia estes 20 anos da associação e quais suas perspectivas para a sua gestão?

Anita Canavarro – Em 18 anos de existência a ABPN construiu um perfil único no país, a saber, na América do Sul, e hoje conecta 156 NEABs/NEABIs e entidades correlatas. Somos um número expressivo de pesquisadorxs negrxs distribuídos em 17 diferentes áreas científicas. Esta é uma associação moldada a muitas mãos e sua história está imbricada com a história da resistência negra neste país. São 18 anos de atuação relevante na definição de políticas de ações afirmativas no país e na América Latina e a representação ativa em diversos órgãos governamentais, inclusive em conselhos e fóruns científicos. A ABPN é contemporânea das ações afirmativas, da SECAD(I) e da SEPPIR. Desta forma, estar na gestão da ABPN é uma tarefa honrosa, entretanto bastante desafiadora, pois é preciso dar continuidade a toda essa construção. Hoje somos uma equipe formada, em sua maioria, por mulheres negras e o que nos une neste desafio é a prática da sororidade. Nossa proposta de gestão se fundamenta em estabelecer a sintonia e o diálogo entre as múltiplas determinações que nos compõe como sujeito social: entre movimento social, educação básica, Ciência e saberes tradicionais, respeitando a cosmogonia que professamos como povo negro. Essa proposta se materializa nas seguintes ações:
1) Fortalecer o elo com as diferentes representações do Movimento Social – entendemos que o cenário que a ABPN está vivendo agora é a consolidação e a continuidade de tantos outros momentos e conquistas anteriores desta associação científica. Contudo, destacamos que é preciso investir no diálogo com os diferentes Fóruns, ONGs e Coletivos Negros que se ergueram neste país.
2) Investir na Regionalização desta Associação – fortalecimento dos COPENES regionais visando construção de uma política voltada para as regiões apostando em inovação em pesquisa, principalmente no tocante as temáticas de africanidades e negritudes, assim como nas pesquisas que causem impactos diretos nas comunidades. Como estratégia, pensamos na inclusão de um espaço novo na realização tanto do COPENE quanto dos regionais, no qual desenvolveremos minicursos e/ou oficinas para a comunidade da educação básica do local por meio de parceria com a Secretaria de Educação e coletivos discentes, com vistas à melhoria da articulação entre Pesquisadores/as Negros/as e a Escola básica, buscando combater a visão única e deformada de Ciência que habita a escola: Ciência branca, masculina, europeia e de laboratório.
3) Promover ações multidisciplinares e/ou interdisciplinares na formação de pesquisadores e na produção de conhecimento – incentivar a colaboração entre pesquisadores de diferentes áreas com vistas à realização de trabalhos e formação que considere as pluriepistemias e incentive o diálogo com os saberes tradicionais. Promover iniciativas que propiciem a criação e consolidação de áreas dentro da Associação: saúde, exatas, educação, linguística e comunicação, por exemplo.

Planejar cooperações entre estas áreas visando ações inter/multidisciplinares. Salientamos que a revista da ABPN tem papel importante nesse diálogo e nessa integração. Por sua vez, é importante considerar que a formação multidisciplinar é necessária para podermos contribuir na solução de problemas globais, de grande porte e complexos que se apresentam nos tempos presentes.
4) Endossar a discussão sobre ações afirmativas – garantir a continuação do protagonismo da ABPN nos espaços de controle social, tais como os Conselhos Nacionais.
5) Transparência financeira – manteremos as ações de transparência financeira como as que nortearam as gestões anteriores. Concomitantemente, divulgaremos quadrimestralmente um boletim de prestação de contas, assim como ao final de cada ano divulgaremos as planilhas com os balanços anuais.
6) Internacionalização da ABPN – busca-se, nesta meta, uma relação mais próxima e consolidada com sociedades científicas internacionais fundamentalmente do eixo Sul-Sul. Em especial, para esta meta construiremos programas de cooperação entre a ABPN e demais sociedades científicas, visando colaboração e ações conjuntas.
Entendemos que a ABPN tem potencial para atuar na proposição de políticas, cenários e mecanismos que propiciem o fomento dessa perspectiva. Exemplos desta situação é a participação da ABPN na criação e consolidação da Associação de Investigadores Negros da América Latina e Caribe, efetivada na gestão anterior.

Quero aproveitar o espaço e fazer uma convocação aos pesquisadorxs negrxs: junte-se a nós para resistir e lutar contra a expropriação da capacidade intelectual de cientistas negrxs.

Como surge o grupo de Mulheres Negras Dandaras no Cerrado, e quais as principais pautas do grupo?

Anita Canavarro – O Grupo de Mulheres Negras Dandaras no Cerrado foi criado no início da década de noventa (1991) sob o nome: Grupo de Mulheres Dandaras no Cerrado. Tratando-se de uma Organização Não Governamental (ONG) feminista. Nesta época, realizava trabalhos comunitários, cultivando, divulgando e comercializando produtos orgânicos com objetivo de estimular a alimentação alternativa, a preservação da saúde e do meio ambiente. Tendo também como foco a inclusão social, educacional, profissional e o resgate à cultura negra. Atendendo mulheres, homens, crianças e adolescentes. Foi oficializada constituindo seu estatuto somente em 2002. Essa construção é ação direta das Griõs Marta Cezario de Oliveira e Anadir Cezario de Oliveira.

Hoje o grupo tem como missão contribuir para a construção de uma sociedade justa, plural, antirracista, sexista e solidária, afirmando o direito à cidadania a partir de uma perspectiva feminista, no contexto das ações educativas em gênero, raça, mulheres negras bem como o combate a violência contra a mulher.
Atualmente, a Organização desenvolve cursos de capacitação na área de emprego e renda, realiza, participa de exposições, oficinas, debates, palestras, seminários e conferências. Faz parte do Fórum Nacional de Mulheres Negras, do Conselho Estadual da Mulher, do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial, do Conselho Estadual das Cidades – COMCIDADES. E tem participado de vários eventos e projetos que valorizam a cultura afro-brasileira.

Mesmo com todos os desafios, o Grupo de Mulheres Negras Dandaras no Cerrado não desiste e acredita na existência de uma sociedade mais justa, pluralista, solidária, igualitária e antirracista. Há muito que se fazer para atingir esses objetivos. Diante dessa realidade é necessária a contribuição e a participação efetiva de toda a sociedade. Por isso, não somente para o Grupo de Mulheres Negras Dandaras no Cerrado: a luta continua!
Para além de qualquer descrição o Dandaras é para mim lugar de acalento e aconchego. Lugar de fortalecimento e luta onde crio meus filhos, partilho meus sonhos e me reconstruo, eu, minha mãe e minha filha com laços forjados em reexistência de mulheres negras.

Sendo poetisa, tem poemas publicados, nos Ogun’s Toques Negrxs, Além dos Quartos: Coletânea Erótica Negra Louva Deusas, nos Cadernos Negros. Referências muito importantes, para o fortalecimento da literatura afro-brasileira. Como descobriu-se poetisa e o que a poesia representa em sua vida?
Anita Canavarro – Eu escrevo desde criança, foram diários, cartas, histórias para ninar e histórias para guardar e ler no futuro, em outro tempo. Depois da minha experiência com o roncó resolvi publicar e tive o feliz encontro com esses coletivos que são ato e representação, movimento e construção. Escrever é se estender, é diluir tempo-espaço em soluções ousadas, em rabiscos de verdades conflitantes, é se mostrar ou não, é convocar. É fazer voos curtos em territórios partilhados. Minha escrita é parte de mim sim e parte dos meus anseios do ser feminino em construção. A Oguns, a Louva Deusas e os Cadernos Negros são espaços políticos de letramento de resistência, mas são também lugares de estar entre nós.

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  • Cristiane Mare

    Conselheira do Portal Catarinas, é mestra pela PUC/SP em História Social, atua como pesquisadora associada no Núcleo de...

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