Eu lembro desse dia Acordei hoje e saí da cama sem saber Superfície Adentrar o rio Mergulhar o sonho Amantes da normalidade Você me chama Há espaço entre nós Dele me chegam palavras pelo correio pela tela pelos poros O futuro é uma outra tela repleta de janelas e estratégias de sobrevivência incluem entorpecimento exercícios leituras conversas a reafirmação dos desejos a partilha dos desejos Deixar respirar Eu sinto os fios eu sinto a chama e agradeço a terra que me acolhe e sustenta O pânico do vazio te fez correr sem parar  produtividade competência sucesso e eficiência são as palavras usadas para jogar no fundo do buraco sem fundo Não olhar o oco não ouvir o eco que faz Sou perita no cultivo dos fantasmas só assusta mesmo o primeiro encontro depois vem a convivência Seres naturais O trabalho enobrece e endivida estamos sempre a dever Teu olhar me faz falta assim como o som engraçado que fica entre uma palavra e outra quando a gente conversa e se atravessa mas a vídeochamada deixa um som metálico e eu tento não escrever nos lugares errados as marcas nas paredes da minha casa indicam batidas raspões transporte de móveis atrapalhados derramamento de líquidos e apoio de mãos a pele carrega gordura do corpo e depositamos isso em tudo aquilo que tocamos agora o vírus não o velho conhecido o novo esse que desconvida tudo que cancela os planos e nos lança no vazio A quaresma acabou a quarentena não Pelo menos tivemos carnaval e o Moraes também sua carne pulsante de carnaval última vez Brilhamos ecológicas ou insustentáveis os pulos foram de verdade eu tento lembrar eu já não sei como me sinto e muitos dias não procuro ninguém porque acho que não há nada que precise ser dito Encarar silêncio e vazio mas aí você me chama eu escuto e já convoco deidades potestades sereias míticas suas filhas e seres lunares meu ritual é coletiva transmutador nossas vozes atravessadas como  peito vibrando com as batidas recriamos a vida pulsante na cara dos caretas arrepender é o sinal converter inverter testemunhar o que quiser a vida é só isso que a terra dá tanto tanto tanto saber ver teus reflexos pela janela a luz da tarde invadindo imprevistamente desnuda o pedaço iluminado de mim o teu pedaço que não parte que multiplica nossas canções você sabe serão sempre aquelas e todas as outras que entoamos meu pedaço chega sobre rodas deslizado suado apreensivo conjugamos nossos verbos líquidos enquanto discutem minúcias despautérios a bolsa sobe e desce e rompe uma gangorra as crianças se alternam para sentar no brinquedo do parque desguarnecida alto baixo meu ponto de vista oscila sem parar

* Elisa Tonon

 

 

 

Abrasabarca

ABRASABARCA se dedica à pesquisa, descoberta e (re)invenção poética. Somos um coletivo que se formou em encontros para ler poemas e falar de literatura em torno da mesa, da fogueira, do vinho, dos livros. A brincadeira de ler em conjunto o texto de outras e outros nos trouxe o desafio e o prazer da escrita autoral. Formado por Ariele Louise, Ana Araújo, Elisa Tonon, Ibriela Sevilla, Juliana Ben, Juliana Pereira e Luciana Tiscoski, realizou as publicações Abrasabarca (Medusa, 2018) e Revoluta (Caiaponte, 2019). Principais performances: Durar ou arder? (Quinta Maldita, 2018), Uma mulher o que é? (Sarau da Tainha, 2019), Como olhas? (FestiPoa Literária, 2019), Revoluta (Bienal Internacional de Curitiba/ Polo SC, 2019).

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