Podem me chamar de abortista, porque eu os chamarei de hipócritas
“Uma a cada 5 mulheres de até 40 anos já fez um aborto, sendo 56% delas católicas e 26% evangélicas. É a mulher comum brasileira”, afirma Débora Diniz.
Considerando-se outras faixas etárias, como crianças, adolescentes e mulheres acima dos 40, temos números ainda maiores, porque as pesquisas produzidas com o rigor cientifico necessário não abrangeram estes grupos de mulheres.
Outro dado importante a se considerar nas análises sobre o assunto, trata-se do que cientificamente chamamos de “cifras ocultas”, são aquelas que jamais aparecerão contabilizadas estatisticamente, pois são dados omitidos ou subnotificados.
Ouso arriscar que em se tratando de procedimentos de abortamento essas cifras são estratosféricas, em razão do fato se tratar de crime tipificado no Código Penal (art. 124, CP: provocar aborto em si mesma ou consentir que alguém lhe provoque. Pena de detenção de 6 meses a 3 anos).
Tema difícil, complexo, sobre o qual é extremamente necessário e urgente se refletir, mais ainda, é imperativa a manifestação da Suprema Corte.
A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, de relatoria da Ministra Rosa Weber, tem como objeto analisar a constitucionalidade do tipo penal de aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento (já citado artigo 124, do CP), uma vez que sua criminalização contraria os direitos fundamentais, assim como pactos e tratados internacionais de Direitos Humanos. Isso importará na decisão acerca de o aborto continuar ou não sendo tutelado pelo Sistema de Justiça Criminal. Caso se decida pela inconstitucionalidade da criminalização, essa incumbência passará para outros campos do direito. A Ministra utilizou-se do recurso de Audiência Pública, previsto em lei, mas pouco utilizado pelo Poder Judiciário, o qual visa estabelecer um canal de escuta da Sociedade Civil – neste caso, especialistas sobre abortamento, mortalidade de mulheres e direito.
Dado importante e provocador trazido nas falas, foi o da simples verificação dos nossos círculos sociais, que dão conta de nos responder que existe estabelecida a prática voluntária e indiscriminada no Brasil, todavia, nem sempre segura, barata e confiável.
Isso nos diz que mulheres abortam (e ponto).
Diz a pesquisa do Instituto Anis, coordenado pela Dra. Débora Diniz, que conhecemos em média 5 mulheres que já abortaram.
Motivo?
Não importa.
Repito: MULHERES ABORTAM.
Quem me conhece sabe que sou terminantemente contrária à “fulanização” do debate, pois sei que o nosso umbigo não é o centro do universo. Todavia, sinto a necessidade de contar aqui minha história – que até então nunca havia sido de domínio público -, pois além de ter contribuído para me tornar a militante feminista que sou, ela me faz enxergar a hipocrisia, o moralismo, o racismo e o classicismo posto neste debate especialmente.
***
Sou uma mulher branca, classe média, do sul do país, hoje com 44 anos. Logo, estou inserida na faixa subnotificada, ou melhor, não pesquisada.
Engravidei aos 22 anos, numa janela de tratamento entre a troca do método contraceptivo (da pílula hormonal, que me fazia muito mal, para o DIU de cobre ofertado pelo SUS – eficaz, mas que me adoeceu com o tempo). A camisinha – leia-se, método masculino –, no lapso de um mês, não foi eficiente.
Estava no inicio da graduação, tinha uma relação monogâmica e estável, na qual era prematuro constituir uma família naquele momento, muito menos um projeto do que, hoje, chamamos de “maternidade solo”. Precisava abortar, não queria e não podia ser mãe naquele momento. Mesmo amando meu namorado, ele era mais novo, também estudante. Éramos jovens e queríamos curtir a vida livremente.
Recordo-me que alguns familiares dele me acusaram de estar dando o “golpe da barriga”, já que sua família era rica e tradicional da cidade.
Mesmo entendendo ser uma decisão tão somente minha, optamos juntos pelo aborto, independente de opiniões alheias (incluindo aqui a da minha mãe, que soube, mas não sei se por falta de estrutura emocional ou conflito moral-religioso-familiar, não me ajudou naquela ocasião. Anoto que depois de feito, tudo voltou pra baixo do tapete).
Fiz isso com a ingestão e introdução do misoprostol, comprado numa farmácia ao preço comercial com uma receita azul “fria”, dada por um médico conhecido, especialista em medicina do trabalho. No dia do procedimento, não mais que seis semanas, estava com o meu namorado, uma amiga e monitorada pela minha ginecologista à época. Tão logo se deu início ao abortamento, dei entrada na maternidade para o procedimento de curetagem, sem qualquer questionamento e com muita anestesia. Rápido e seguro.
Isso aconteceu em Florianópolis, em meados da década de 1990.
O aborto também era crime, mas eu, jovem mulher branca e com algum dinheiro no bolso, não sofri qualquer violência e superei este momento sem qualquer trauma, retaliação ou crise de consciência. Vida que segue.
Mesmo com mais de 18 anos, imputável penalmente, não fui algemada, presa ou processada pela prática deste crime (saliento que já prescreveu, motivo, inclusive de poder falar abertamente em nome próprio). Da mesma forma, minha rede de apoio e afeto, que ajudou uma mulher jovem em desespero, saiu ilesa.
Aliás, se hoje sou esta mulher feminista, advogada popular, professora e pesquisadora, devo agradecê-los (se lerem o artigo se reconhecerão, não tenho dúvida!), pois a maternidade poderia ter mudado significativamente meus projetos de vida, os rumos, as prioridades e, sem dúvida, as oportunidades.
***
Vejo como importante recontar minha história, por anos silenciada e por outros tantos esquecida, pois eu sou aquela mulher comum, com privilégios e de família católica, que faz aborto de forma segura cotidianamente. Da mesma forma que minhas amigas e colegas, brancas e burguesas, fica evidenciado que somos imunes à criminalização e ao Sistema de Justiça Criminal.
Diferentemente de Ingriane e as tantas outras Marias, Joanas, Patrícias, Jussaras, Margaridas, que por razões adversas e em situações de abandono e de desespero, foram vítimas fatais de abortos malsucedidos, eu estou aqui para contar o quão diferenciados são os métodos e procedimentos, que variam dada a cor da pele e o quanto se pode pagar.
A minha condição de privilégio me leva a lutar pelo aborto livre, enquanto escolha individual e autônoma, para que todas possam usufruir igualmente de condições sanitárias, de higiene, de segurança, de cuidado e de respeito.
E se lutar por vidas de mulheres menos privilegiadas é ser “abortista”, SIM(!), faço questão de ser chamada de “abortista”, caso queiram!
***
Não penso que nossas experiências precisem nos fazer necessariamente militantes ou ativistas, mas, por outro lado, deveriam nos tornar menos hipócritas, seletivas e moralistas.
Além da minha história vivida, também posso contar muito mais que cinco mulheres que auxiliei, direta ou indiretamente, em procedimentos de abortamento, os quais ocorreram de forma segura, porém não sem dor e sem conflitos pessoais. Muitas dessas MULHERES hoje são mães. Orgulho-me de ter sido solidária a elas naquele momento de extrema dor.
Por sua vez, não nutro o mesmo orgulho quando do silenciamento de muitas MULHERES que esqueceram que um dia já praticaram um aborto (às vezes até mais que um).
Aos homens e mulheres que mesmo não tendo feito o doloroso procedimento, mas que têm em suas redes sociais pessoas próximas que já praticaram o aborto com toda a segurança, e professam seus discursos morais, de ódio, criminalizantes e punitivos, eu tenho a mais profunda ojeriza, causa-me náusea.
A essas pessoas digo: HIPÓCRITAS.
HIPÓCRITAS! HIPÓCRITAS! HIPÓCRITAS!
Esses HIPÓCRITAS ignoram que na ausência de um fundamento acadêmico ou político qualificado, que ultrapasse o binarismo do contra ou a favor do senso comum, ou que transcenda o julgamento moral e religioso, contribuem à manutenção das estruturas de controle social patriarcais, classistas, machistas e racistas, uma vez que não há como se debater o aborto especialmente sem os recortes de raça e de classe.
Temos que ter a alteridade e a sensibilidade de identificar quem são as mulheres vítimas do poder punitivo, e da pena de morte indireta dada pela clandestinidade das formas de interrupção inseguras da gravidez.
Não há como enfrentar a funcional ausência de políticas públicas sem se saber a cor da pele, as posses (quando há), o grau de escolaridade, o local de moradia, as condições sanitárias, as profissões.
Em muitas das contundentes falas destes dois dias de Audiência Pública, o que mais marcou, para além dos números estatísticos confiáveis apresentados (especialmente a brilhante pesquisa do Instituto Anis, Coordenado pela Profa. Dra. Débora Diniz), foi o relato de casos concretos de mortes e mutilações. Cada nome, cada relato de procedimento, cada resultado, foi a morte de um pedaço de mim mesma.
Não sei como é e nunca estarei no local destas mulheres não brancas – e aqui falo preponderantemente das mulheres negras, indígenas e quilombolas –, pobres e periféricas, dos meios urbanos e rurais, para saber o tamanho da dor da omissão, do descaso, da opressão e da violência, todas essas dadas de forma estrutural e estruturante em nossa sociedade. Mas afirmo e reafirmo que sou e serei sempre solidária na dor e na força desta luta por vidas, pelas suas vidas, pois elas me importam e me tocam.
Não quero uma mulher nunca mais #NemPresaNemMorta.
Obs. 1. Faço a ressalva (dentre tantas possíveis): é lamentável a admissão de pessoas, entidades e representantes governamentais sem qualquer especialidade e pesquisa no assunto.
Obs. 2. No que toca à minha narrativa pessoal, há algumas falhas de memória e de lembranças, especialmente às datas exatas, falsas memórias e o mito da “verdade real” explicam.