Mercado Público de Florianópolis tem origem nos tabuleiros das Pretas
Foram as quitandeiras, quituteiras e pombeiros de descendência africana que motivaram a construção do Mercado Público de Florianópolis
A história do Mercado Público de Florianópolis deve posicionar o protagonismo negro local em sua conformação. Afinal, foram as quitandeiras1, quituteiras2 e pombeiros3 de descendência africana que motivaram a sua construção, em 1851. E, mais ainda, foram essas/esses trabalhadoras(es), exploradas(os) dentro do sistema escravagista do século 19, que dinamizaram o ofício do comércio na cidade.
As mulheres de descendência africana da Freguesia do Desterro vendiam diversos produtos, como doces, legumes, frutas, comida preparada e peixe seco. No entanto, a presença dessas trabalhadoras negras no centro da capital da província causava desconforto na elite e legisladores locais, que estavam preocupados com uma ideia de embelezamento e estética da cidade.
Segundo eles, era necessário remover essas mulheres do local para garantir o “bom gosto” e a “formosidade” do espaço (POPINIGIS, 2013).
Em 1854, dos 23 espaços de quitanda disponíveis no Mercado Público, inaugurado em 1851, 20 eram ocupados por mulheres e 3 por homens. Entre essas pessoas, sete tinham nomes que faziam referência ao seu grupo étnico de origem africana, como Simôa Mina, Anna Mina, Maria Mina, Josefa Caçange, Esperança Cabinda, Luiza Cabinda, Zeferina Calabá e Luiz Congo. Nesse mesmo período, 30 pessoas pagavam impostos para exercer a função de pombeiro, sendo 16 homens e 14 mulheres: Luiza Cabinda, Anna Mina, Zeferina Calabá, Josefa Caçange, Esperança Cabinda e Margarida. Cada uma delas pagava 3.200 réis mensais aos cofres municipais (POPINIGIS, 2012).
Para Popinigis (2012), esses dados apontam para o fato de que a maioria das quitandeiras que atuavam no Mercado Público nesse período eram de descendência africana. Algumas dessas pessoas desempenhavam suas atividades tanto dentro como fora do prédio do Mercado, acumulando funções como quitandeiras, pombeiras e mascates. Os arranjos de trabalho também são evidenciados, incluindo trabalhadores alforriados e aqueles que atuavam como “negras e negros de ganho”.
Na litografia elaborada pelo viajante Josef Brüggemann, em 1867, o primeiro Mercado Público aparece como lugar de maior dinamismo da vida social da Freguesia do Desterro no século 19. Nela, o autor buscou representar também o trapiche, principal porta de entrada para a ilha de Santa Catarina naquele período. Assim como as quitandeiras com seus tabuleiros vendendo artigos de gêneros alimentícios do lado externo do mercado.
São mulheres em trânsito, deslocando-se pelas ruas da cidade, fazendo do comércio, dos mercados, das negociações não somente uma fonte de subsistência, como uma alternativa de emancipação. Assim como em outras partes do país, em Desterro as negras de ganho, ou ganhadeiras, encontravam nesse ofício a possibilidade de conquistar a alforria e, no limite, constituir um determinado patrimônio.
Na imagem abaixo, de autoria do pintor Victor Meirelles, chama-se Uma rua na cidade de Desterro, na época era a Rua Augusta, atualmente Rua João Pinto. O cenário retratado é o sobrado de João Pinto da Luz, proprietário do imóvel situado ao lado direito da imagem, esquina do então recém-edificado Primeiro Mercado Público de Desterro. Nela podemos ver representadas algumas quitandeiras vendendo seus produtos no centro da cidade, trajando panos da costa, homem de descendência africana no ofício de carregador no canto esquerdo da imagem, e outras pessoas representando a elite catarinense trajando paletó e de cartola:
O descontentamento da elite local com as barracas de quitanda e a presença das (os) descendentes de africanos motivou o debate político e a construção do primeiro Mercado Público de Desterro, com o objetivo de controlar essas pessoas, colocando-as nesse espaço, confinado-as. O comércio local encontrou nas quitandeiras, quituteiras e pombeiros seus principais trabalhadores e responsáveis pela distribuição dos artigos de gêneros alimentícios.
Contudo, a historiografia da cidade se incumbiu de ocultar o protagonismo da população negra, mesmo tendo farta menção acerca dessas presenças através dos documentos oficiais, das gravuras e pinturas, dos relatos dos viajantes e dos periódicos da época. Ainda assim, de modo insurgente, as mulheres que chefiam os mercados, chamadas de Ìyáloja em iorubá, reivindicam seus lugares na memória da cidade.
Os tabuleiros, balaios e barracas de quitandas, que tanto desconforto gerou à elite catarinense do século 19, seguem negociando com uma estrutura opressora e assimétrica a primazia dos mercados que alicerçou a economia da capital catarinense. A banca do mercado tem dois lados, nos ensina Exú, ou seja, não se apropria do que não é seu sem que o devido valor seja dado. E nessa lógica ancestral a cidade de Florianópolis possui uma grande dívida com o legado negro local, e são as filhas e filhos das quitandeiras, quituteiras e pombeiros que vieram cobrar.
Notas
1 – Termo que deriva da palavra quitanda, de origem Quimbundu (kitanda). A quitanda no Brasil surge para designar a negra que vendia gêneros alimentícios em tabuleiro.
2 – O termo que deriva da palavra quitude tem origem Quicongo (kituuti) e no Brasil pode ser compreendido como iguarias de preparo delicado.
3 – Pombeiro é aquele que compra ou atravessa, dentro dos limites do município, gêneros alimentícios para tornar a vender, a um ou a muitos, quer em tabuleiros, cestos e pelas ruas, praças, marinhas ou outros lugares públicos, quer em canoas, quer em botes a bordo de embarcações ou mesmo no mercado. “Artigo primeiro da resolução de 3 de maio de 1851, publicado em O Despertador, de 12 de julho de 1864” (POPINIGIS, 2013, p. 9).
4 – A Praça do Mercado localizava-se no Largo da Matriz, ou seja, em frente onde hoje localiza-se a Catedral de Florianópolis (POPINIGIS, 2013).
Referências
MAIA, Cauane G. A. O protagonismo da população negra nos primórdios do Mercado Público de Florianópolis. Trabalho de conclusão de curso. Ciências Econômicas. UFSC, 2023.
PASSOS, André Fernandes. Representações artísticas sobre a presença africana em Desterro (Ilha de Santa Catarina) no século XIX. Revista Santa Catarina em História – Florianópolis – UFSC – Brasil ISSN 1984-3968, v.13, n.1, 2019.
POPINIGIS, Fabiane. “Aos pés dos pretos e pretas quitandeiras”: experiências de trabalho e estratégia de vida em torno do primeiro mercado público de Desterro – 1840-1890. In: Afro-Ásia, 46. 2012.
POPINIGIS, Fabiane. Mulheres africanas e o pequeno comércio em Desterro, século XIX. In: ENCONTRO ESCRAVIDÃO E LIBERDADE NO BRASIL MERIDIONAL. UFSC. Florianópolis, 2013.
POPINIGIS, Fabiane. Africanos e descendentes na história do primeiro mercado público de Desterro. In: Beatriz Gallotti Mamigonian; Joasean Zimmermann Vidal. (Org.). História Diversa – africanos e afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina. 1ed.Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013.