Ressuscitar e expor histórias muito pessoais para mim é um processo sempre doloroso, mas por vezes se torna por demais necessário. Em 2017 completou uma década que perdi a minha melhor amiga, assassinada com quatro facadas e dois tiros na frente do filho de, na época, 13 anos, à mesa de jantar.

Um crime premeditado: o assassino telefonou contando que tinha saído para comprar balas de revólver, o revólver do pai dela, que estava por algum motivo guardado na casa em que eles dois moravam com o filho – separados, moravam um em cada andar. Isso foi um sábado e estávamos juntas no meu carro. Não levamos a sério: dentro de certo limite, o ex marido era até uma boa pessoa. Porém, na noite anterior, ele havia descoberto que ela tinha um namorado. Nunca se importou com os clientes, mas saber que havia um namorado,para ele, já era demais.

A lei Maria da Penha tinha sido promulgada havia uns poucos meses, e eu recorrera a ela para dar um basta a 10 anos de um relacionamento bastante abusivo e violento. Ela cogitava fazer o mesmo e eu a estava orientando. Na tarde do assassinato ela me ligou, muito assustada. A aconselhei a sair imediatamente de casa, mas não a forcei – nem poderia. Aquele telefonema foi a nossa despedida.

Cerca de três meses depois, em liberdade provisória, o assassino já estava de volta às ruas. Soube por que o encontrei no almoço, trabalhando como manobrista do restaurante onde costumava ir com as crianças aos sábados. Como reagir? Tínhamos sido todos amigos por muito tempo, afinal – mas ele acabara de matar a minha melhor amiga.

Entrei no restaurante, acomodei as crianças (que não o tinham visto) com o padrasto e fui ao banheiro. O perdoei mentalmente nos minutos em que me isolei ali, chorei apenas o necessário, me recompus e voltei à mesa. A vida segue, as pessoas têm direito ao perdão,  ele ali também estava se recuperando do vício em crack. Era seu primeiro emprego formal depois de muito tempo. Era justo que respondesse em liberdade? Talvez. Acompanhei pouco o processo, soube que ano passado foi condenado a 8 anos de prisão em regime fechado. Recorreu, alegando legítima defesa, o juiz não aceitou.

Não gosto de ficar presa a passados e tenho a certeza de que naquele momento, mantê-lo preso por vingança não teria resolvido nada, além do que teria impedido de sustentar o filho, à época menor de idade e sem direito a auxílio reclusão – lembrando que o auxílio reclusão é um benefício devido somente aos dependentes de segurado do INSS que venha a ser preso, e o assassino não tinha contribuído por muitos anos.

Estou ressuscitando essas memórias às vésperas do Dia Internacional das Mulheres, em meio à polêmica sobre Bruno Fernandes, ex-goleiro condenado em primeira instância por matar em 2010 Eliza Samudio, com quem teve um filho. Eliza foi morta por Bruno e dois comparsas, depois de ter sido ameaçada várias vezes por ele, que não queria pagar pensão à criança – ela estava lutando pelo reconhecimento da paternidade. Após o assassinato, o corpo de Eliza teria sido esquartejado e jogado a cachorros da raça rottweiler. Seu filho, sequestrado por Dayanne de Souza (então casada com Bruno), foi encontrado pela polícia numa favela na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Na semana que passou, Bruno obteve habeas corpus e deve esperar o julgamento em segunda instância em liberdade.

O que choca em tudo isso é o fato de seu advogado afirmar que Bruno, o ex goleiro condenado em primeira instância pelo assassinato de Eliza, com quem teve um filho, para não pagar pensão, tem convites de nove times para voltar a jogar.

Longe da sanha punitivista, eu não sou contra o fato de Bruno recorrer em liberdade. Muito menos sou contra que, pena cumprida, volte a trabalhar e viver em sociedade. Não sou a favor do endurecimento das penas no Brasil, segundo país que mais prendeu em 15 anos e tem a quarta maior população carcerária do mundo. Não acredito no encarceramento como solução para reduzir a criminalidade, não acredito sequer na impunidade de que falam – as cadeias estão lotadas, na verdade podemos falar em impunidade seletiva, no máximo.

No entanto, não posso ser a favor de ver um feminicida se tornando ídolo num país em que a cada 4 minutos uma mulher é agredida e a cada duas horas, uma mulher é assassinada apenas por ser mulher.

Eliza foi sequestrada por Bruno e obrigada a tomar medicamentos abortivos. O denunciou por isso, os exames comprovaram a ingestão de substâncias abortivas. Bruno não foi punido. Se a situação fosse oposta – Elisa tentasse abortar e Bruno a denunciasse – ela seria punida.

Eliza pediu proteção pela lei Maria da Penha. Teve seu pedido negado por não ter tido uma relação estável com Bruno – apesar de estar grávida dele.

A proteção da lei lhe foi negada por puro preconceito. Eliza era uma trabalhadora sexual, atriz pornô. Me parece bastante bizarro que alguém os assista mas ainda existem vídeos com sua participação circulando na internet. Segundo consta, Eliza engravidou de Bruno numa orgia com jogadores de futebol, onde o preservativo teria rompido.

Egressos do sistema penal tem imensa dificuldade em se reinserir no mercado de trabalho formal, muitos por necessidade voltando ao crime. Um time que contrate Bruno está levando com ele toda a publicidade gerada pela polêmica.

Bruno tem fãs que o encontram na rua e pedem selfies. Bruno está tão arrependido que permite que um deles fotografe ao seu lado usando uma máscara de cachorro, numa referência grotesca ao crime por ele cometido.

Permitir que volte a atuar como goleiro, num país profundamente misógino como o Brasil e que idolatra jogadores de futebol, é um desrespeito absurdo e um recado claro a todas as mulheres: nossas vidas não importam nada. É também um recado bem claro aos homens e meninos.

Um homem mata uma mulher e recebe prêmios, pessoas tiram selfie com ele, a mídia o trata como ídolo. Não há condenação social para feminicidas.

É sobre isso que estamos falando.

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  • Monique Prada

    Integrante da Central Única das Trabalhadoras e Trabalhadores do Sexo (Cuts). Sua coluna em Catarinas trata de temas com...

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